O alfaiate

Imagem de alfaiate a trabalhar. Picture of a tailor at work.
Fotografia de Salvador Godoy

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Antes de o calor se tornar arquejante, pode-se aproveitar no máximo duas ou três horas de frescura. Pela porta e pelas janelas abertas corre uma aragem agradabilíssima, um ventinho que amacia os pensamentos, que às vezes carrega o cheiro das praias e do mar, outras vezes traz subtilmente o aroma verde das hortelãs e dos tomateiros, e que é, em todo o caso, o melhor do dia.

O calor cada vez mais excessivo nos meses do estio é a causa deste ódio do alfaiate Iñigo Larraona à terra ancestral. Nos sonhos – se sonhar pode dizer-se do desconcerto de imagens e de pessoas na sua cabeça durante a noite – caminha amiúde por inóspitos carreiros de pedra calcária, sempre descalço, com a planta dos pés e a garganta num ardor igual, violento, de maceração e agonia. As cabras deambulam debaixo do sol em busca de uma sombra ou de arbustos que lhes matem a sede.

Iñigo conhece um sítio onde a água pode ser encontrada, água leve e límpida como toda a água boa. Fica para lá do pinheiro manso solitário, numa das encostas da colina que tem de subir a muito custo. Há um opérculo de madeira, meio escondido pelo giestal, que tem de remover. Depois há uma corda que puxa e que traz do fundo um pequeno pote de barro. Pode então saciar-se.

A sensação é ambivalente: bebe com sofreguidão, lava o rosto, molha a sola dos pés, volta a engolir o manancial prodigioso empoçado nas rochas. A água escorre, ardeja, silencia o clamor da pele. Mas é então que regressa o pânico. Onde estão todos? Onde se enfiaram os amigos? Que solidão é essa que o cerca aí de todos os lados e se torna um pesadelo tão poderoso capaz de o expulsar de si e da sua infância?

Antes de o calor cair com toda a força no país, Iñigo Larraona regozija-se com a paz das manhãzinhas. Na mesa larga do seu ofício, confirma os números com a fita métrica, empurra com gentileza o giz sobre o tecido, recorta as peças, alinhava-as. A brisa faz empolar suavemente o volume de papéis. De quando em quando interceta o fumo de algum cigarro transeunte, ou o aroma dos pêssegos capturado na frutaria da esquina. O alfaiate sente uma pena imensa que estas coisas durem tão pouco e que não as saiba guardar. Não é fácil limpar-se dos pesadelos, ou calcular com precisão o poder que eles detêm, ou compreender a razão por que tantos anos depois continua a sentir-se vazio, descalço, perdido no meio da vida.

Depois, quando o grande lume deflagra nas vidraças e necessita de encerrar as persianas, o sufoco é maior. Não lhe apetece nada, tudo é uma agressão contra si e contra o mundo. Não escuta a voz de nenhum dos vizinhos, nem o ganir dos cães. A solidão encurrala-o sem misericórdia. Não lhe apetece nada, exceto fechar os olhos. Receia, no entanto, que se o fizer, possa sentir os pés em chamas e a garganta torturada por uma sede insatisfazível.

É um homem comum, em suma. Temos razão para acreditar, ainda assim, que todas as criaturas comuns possuem um hemisfério sombrio, ctónico, sem dúvida merecedor de atenta psicanálise e da melhor literatura.

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Logótipo Oficial 2024

O castigo

Foto: Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier
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Nesta época do ano, as manhãzinhas são docemente cruéis. Quem acorda gostaria de continuar a dormir. É a única altura do dia em que uma correntezinha fresca alivia a casa, atravessando como um bálsamo os corredores e o pátio. Depois o sol assenta sobre a terra e o calor massacra, obriga homens e animais a procurar refúgio no meio dos hortos ou dos poços, ou das grutas, ou das caves, ou das adegas húmidas. A Andaluzia é um inferno de junho em diante.

À noite, as janelas são escancaradas. A imensa massa de ar quente precisa de ser expulsa das paredes, dos recessos, dos sótãos, do interior dos armários, da própria alma. Sente-se uma quietude a que os forasteiros jamais se poderão habituar, mas que às gentes de cá confunde a mágoa de uma vida tão árdua. Para lá do lintel das portas ergue-se então um vasto mundo de sombras, de alcáceres, de castelos mouriscos, de montanhas, de ecos de batalhas que o tempo não apagou ainda.

De madrugada, não muito longe, aqui em Escañuela, ouve-se o acelerar de uma moto de alta cilindrada. Uma ou duas por vezes semana, este despudorado atravessa as ruas da aldeia e acorda quem tarde se deitou e cedo tem se levantar. Não contente com a velocidade, com o fazê-lo a desoras, com o ruído partido do cano de escape, nunca repete a trajetória nem as noites em que decide apunhalar o silêncio geral.

Na cabeça de Emilio Morales correm pensamentos assassinos. Imagina uma desforra, uma lição brutal, um exemplo para quem desafia o sentido da responsabilidade cívica e abusa da liberdade. Esta moto é todo o seu ódio de estimação. Há momentos em que ela se afasta e outros em que ela se aproxima. Em todos, o cano de escape parece soltar, além de fumo, um longo pernáquio trocista. Emilio perscruta o chiar dos pneus, o furioso cavalgar do motor ao longo das retas de alcatrão aquecido. Não consegue desligar-se desse movimento agressivo e traiçoeiro: mesmo nas madrugadas em que o pária não vem, ele aguarda-o, aguarda ansioso o momento em que o seu descanso seja interrompido pelo sopro da máquina, o momento em que essa vinda maldita termine de vez com a angústia da espera, porque adormecer antes dessa vinda pode significar por ela ser acordado e é esse o seu maior pavor.

Em agosto, porém, o ar pode mudar bruscamente. O ar abafado é substituído num par de horas pelo soprar dos ventos da tempestade. Assiste-se a um formidável fender de relâmpagos desde as camadas mais elevadas da atmosfera, pingos grossos cobrem as gretas do solo e fazem deslizar e transbordar as gorduras do asfalto, o cheiro da terra seca invade os quartos sobreaquecidos. Chamam a este perfume petricor. Há muito que os poetas andaluzes o cantam e anunciam ao mundo, mas as palavras não bastam para exprimir a grandeza deste espetáculo.

Escuta-se o zumbido de uma moto. Ela aproxima-se. O trovão do cano de escape parece querer competir com as forças da natureza. Emilio descarregou a sua praga, e nela o seu rancor. Vem à janela ver o criminoso. As luzes da moto lá estão, um olho vivo no meio da treva e da chuva, monstruosamente idêntico ao do gigante ciclope. Mas subitamente os pneus guincham, não é a derrapagem costumeira, deliberada, provocatória. É mais o estertor de uma manobra imprevista, o som desesperado de um erro de cálculo. Eleva-se o estrondo de uma queda, o replicar cavo e o raspar metálico, durativo, de um embate.

Na Andaluzia o luto tem sempre a dignidade pesada de um tema que não se arquiva.

Na manhã seguinte contam a Emilio os pormenores: o desgraçado teve morte imediata. Sofreu tantos cortes e tão profundos quantos os que a imaginação permita adivinhar. Os railes afiados são uma faca, particularmente se contra eles somos impulsionados.

Emilio Morales rejubila em segredo. Sente que se cumpriu uma espécie de justiça divina, fulminante, atraída quem sabe pelo para-raios das suas preces.

Mas agora tem pesadelos todas as noites. Vê o diabo em pessoa a arpoá-lo com o tridente, a empurrá-lo ao encontro de lâminas atrozes. Vê do outro lado do quarto labaredas altíssimas, cujo sufoco parece persegui-lo das unhas dos pés ao pescoço. Acorda em água, não se sabe aos berros, mas julga que sim.

Aproxima-se da janela aberta e volta a escutar as trevas. O silêncio é total, somente interrompido de quando em vez pelo ladrar dos cães ao longe. .