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Em Joã, freguesia do antigo município de Sarnacosa, vivem trezentos moradores. Melhor, trezentos e um. Ou, por outra, trezentos!
Nas ruas desta aldeia há, como em todas as ruas grandes e pequenas de Portugal, cães dóceis e gatos bravios, gente curiosa e gente apressada, tipos cheios de massa e tipos remediados, vizinhos bons (quase todos) e um forasteiro, um grandessíssimo filho da… Nesta terra, como em todas as outras do país, vive-se daquilo que se tem e do que se pode, daquilo que aos pais se herdou e do que em França se conseguiu, do que se ganha ao dia ou do que no final do mês (quase sempre com grande sacrifício) chega à algibeira.
A figura maior de Joã é o Professor. Um velho benevolente e honesto, cuja vida se encheu de livros e de viagens e que agora se espraia por infindáveis horas de meditação no meio do seu horto e jardins, entre árvores magníficas e ervas exóticas. Apesar do silêncio que prefere cultivar, o Professor detém um vasto saber acerca de tudo e acerca de tudo o mais, não deixando nunca sem resposta quem lhe procura palavras urgentes ou conforto. De resto, dá gosto descortiná-lo com um chapéu de palha, observando candidamente os rebentos das ginjeiras, ou afagando com ilécebra os caules tenros do aneto. Muitas vezes, adormecido no banco de madeira sob o caramanchão coberto de glicínias, ou na companhia da sua gingko biloba transformada em luz (pelo ouro das folhas outonais) os vizinhos veem-no com a Ilíada nas mãos e veneram-no. Com a barba branca e o olhar terno lembra um sábio ou um santo.
Em Joã a exceção é o tipo novo, esse que veio não se sabe bem de onde, esse gordo fala-barato que daninhamente se mudou para cá e parece contaminar já os mais novos. É um grosso, um homem inimigo do trabalho, um manipulador em volta do qual esvoaça – como a mosquitagem dos pântanos – gente feia, gente estranha, gente foragida como ele, gente que consigo comercia à porta fechada, à noite, às escondidas, gente que lhe vem buscar estranhos sacolinhos medidos ao grama, gente aprendiz da manipulação e da estupidez, gente que Joã desconhecia e que ultimamente aparece cada vez mais, cada vez mais amiúde, cada vez mais ameaçadora, cada vez mais ousada e maligna.
Há tempo, não há muito, o tipo pôs-se a convencer a aldeia dos poderes sobrenaturais dos seus amavios e da rijeza implacável dos seus feitiços. De forma que a gente feia duplicou de tamanho em Joã e os lucros do intruso gordo decuplicaram.
– Joã converte-se a cada dia que passa num vaivém de bandidos… – disse o presidente da junta.
– Não será tanto assim… – discordou amavelmente o Professor.
– Oh, esse homem que para aí veio é ruim pessoa. É um burgesso!
O Professor achou graça à palavra. Já a tinha escutado antes, mas caída do pensamento do autarca parecia mais de mármore e de ferro.
– Sabe o senhor presidente que esse diabo me tem assaltado os jardins?
– Você o que me diz, Professor?
O ancião narrou:
– O burgesso (para me servir do termo do senhor presidente da junta) parou o jipe aí à porta. Saiu a apertar muito o cinto e a atacar as calças, com a pança a rebentar-lhas. Entrou-me pelo horto adentro cheio de empáfia e sem pedir licença. Lá tive de explicar ao caro senhor que esta casa tem dono e que quem aqui entra o faz com a minha autorização.
– E ele que queria?
– Olhe, é um ignorante, com a mania que percebe de mezinhas. Anda a roubar-me plantas. Corta-as a esmo, fitoterápicas, veneníparas, sem distinção. Leva as que fazem bem e as que podem fazer o contrário, sabe?
– Espalham por aí que ele é bruxo…
– É um estúpido, senhor presidente. Só isso… Como vossa excelência diz, é um burgesso!
– Mas ele não pode avançar pelo que é dos outros. Era só o que faltava!
– Saiba que o tipo me respondeu: «Não te comi pedaço nenhum, ó velho do c…! Pode ser que aprendas um dia destes a respeitar quem manda!»
– Estou varado!
O grande mal de uma terra sã acontece-lhe quando um usurpador assenta arraial nas suas faldas e principia o ofício predatório de todos os vermes. O gordo inchou em Joã em pouquíssimas semanas, depressa, sem piedade. Ninguém sabe bem como.
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Esta manhã (falamos de uma esplêndida manhã de domingo) duas notícias estão no coração e nos lábios dos trezentos moradores desta pequena paróquia das Beiras.
Todas os talhões de alecrim e angélica, camomila, monarda, basílica, todos os canteiros de begónias e cíclames, rosas, gardénias, jacintos, cravinas, todas as macieiras e a bela magnólia, os sicómoros, os renques de amendoeiras e o laranjal, todo o verde e todo o colorido que o Professor semeou, plantou, adubou, regou, podou, afagou durante a sua vida de recato surgiu à luz do dia numa mirração apocalítica, como se sobre a sua propriedade tivesse durante a noite caído uma chuva de enxofre. Os criminosos não tiveram sequer o empenho de esconder os bidões.
O professor – garantem – palpou a barba nívea sem uma palavra. Todo o seu horto é um monturo de talos, hastes e ramagens calcinadas. É doloroso, quase inverosímil, inexplicável de tão cruel. Joã condói-se, geme, comenta. O padre veio consolar, as irmãs francesas não deixaram de expressar solidariedade, o presidente da Junta prometeu braços firmes para reconstruir.
A outra notícia:
O forasteiro apareceu morto no jipe, perto do casarão onde vivia. Pelos cantos da boca escorriam-lhe fios de espuma. No rigor mortis os olhos abriam-se-lhe contorcidamente, como espantados da sua própria estupidez, como a imagem pura e destilada de quem foi surpreendido no cálculo errado de uma peçonha.
– O tipo há semanas que me levava estramónio…
– Estramónio, senhor Professor?
– Ou figueira-do-diabo. Ou figueira-do-inferno, se quiser. É o mesmo. Extrair a linfa desta planta é uma arte tão árdua quanto ancestral, tão deliberada quanto exigente. Apurar-lhe as doses é coisa para matar…
O Professor é de opinião que aquele homem idiota experimentou o sumo maléfico em si mesmo. Custa a acreditar. E quando o fez tentou ainda pedir ajuda, mas tarde demais. Realmente, burgesso é a palavra certa. Razão tem o presidente da junta.
No momento em que Joã se livra de um mal tão grande, não será talvez motivo para festejar?
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