Pobrezinhos velhinhos

Nico Ouburg
Fotografia de Nico Ouburg

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As casas dos pobrezinhos começavam ao pé da escola primária. Eram pequenas e coloridas, com portas e janelas sempre abertas e soleiras maravilhosamente gastas, onde se vinham sentar, à vez, os pobrezinhos e os cães dos pobrezinhos. Havia muitos cães diferentes, porque havia também muitos pobrezinhos. Que eram sempre muito atenciosos. Apesar de pobrezinhos, não lhes faltava que dizer quando vínhamos a correr para casa («Adeus, meus meninos!», «Deus vos abençoe, meus filhos!», «Ide com cuidado!»), ou quando, a passo lento, pontapeando o invisível, meditabundos, desprovidos de vontade, regressávamos pela manhãzinha à escola («Bom dia, meus meninos!», «Aprendei muito, filhos!», «Portai-vos bem!»).

Aflorava-lhes frequentemente uma lágrima ao canto do olho. Já então reparava muito nisso. Porque os pobrezinhos, na sua maior parte, eram também velhinhos. Sem reforma (e, portanto, não engrossando a mole da «peste grisalha» que se abateu sobre o país, segundo o augusto deputado Carlos Peixoto). Sem reforma, mas com aquele olhar vago que os velhinhos pobrezinhos normalmente exibem quando não pensam em nada e pensam em tudo.

Além da lágrima, havia o catarro. Porque essas almas boas se punham a falar, por cima dos muros, para os vizinhos, dos netos ausentes. Diziam, por exemplo «Tenho lá em França dois da idade destes rapazitos». Ou «A minha Laurinda tem lá um tratante como este aqui!». Ou «Vêm agora nas férias. Que Nossa Senhora mos traga direitinhos!»

Os pobrezinhos velhinhos possuíam, ainda, cada qual, a sua mulher. Que era uma velhinha de lenço preto na cabeça, sentada numa cadeira, com um ar tão calado e fixo que, ao meditar as cinquenta ave-marias do terço, lembrava um coelho a ruminar alface. Ao contrário dos maridos, as velhinhas não diziam coisa nenhuma, como se os seus olhos
indiferentes e baços nos não pudessem alcançar. Eram a imagem mais próxima do que mais tarde chamaria tristeza. Uma tristeza que se colava à pele e que transportávamos muitos metros, até que o canto de um grilo, o cheiro do pão fresco ou a súbita aparição das amoras num silvado nos distraía de novo.

Enquanto caminhávamos (a pé, fizesse chuva ou fizesse sol), gostávamos de contar histórias uns aos outros. Às vezes trocávamos segredos. Dizíamos muitas mentiras. Que eram um compêndio de pura amizade e lírica dissertação sobre os sonhos. Todos queríamos muito ser alguma coisa. Ser alguém. Aliás, era o que os velhinhos pobrezinhos nos recomendavam em primeiro lugar. «Estudai muito para serdes engenheiros, meus filhos!». Ou «A barriga é a casa melhor, a cova a que dura mais e a escola a mais importante!». Ou ainda «O que agora aprendeis ensinai um dia no dobro!»

Estas frases intrincadas eram ditas sem solenidade. Porque os velhinhos, de foice em punho, ou munidos de uma tesoura da poda, filosofavam ao mesmo tempo que aparavam os galhos de uma macieira ou podavam as vides. Eram ditas com uma tal sinceridade que o tempo não foi capaz de as engolir. Nem sequer soterrar com frases mais elucubradas, vindas dos cartapácios de Wittgenstein e Heidegger, Russell e Popper.

Quando um destes amáveis homens desaparecia e a porta e as janelas de sua casa se fechavam num silêncio de tapume, os nossos passos arrastavam-se mais. Era a melancolia a despontar. Sentíamos uma pena enorme. Porque naquele bocado do caminho se acabava um pouco do sol que nos iluminava a alma e nos fazia viajar com alegria. E a alegria era uma palavra com peso. Porque nessa época ser-se alegre era o mesmo que ser-se saudável. E os velhinhos pobrezinhos, quem havia de pensar, tinham a sua quota-parte de responsabilidade na nossa saúde!

O último desses exemplares de excelente humanidade deixou-nos há dias. Espantei-me da sua longevidade. Tão velhinho que dois dos cinco filhos o tinham antecedido na morte. Tão pobrezinho (o dinheiro é sempre pouco neste país de pobres) que o seu último desejo, contaram-me, era chegar ao tempo do vinho doce e poder beber dele um copo! E nem isso lhe concedeu o destino! Avaro destino, o dos pobrezinhos! A sua casa, colorida, escassa, com as suas árvores de fruto, o seu muro pequeno e muito branco, lá ficará em silêncio. Com a porta e as janelas fechadas. A soleira muito gasta. O cão triste e latindo. Sem perceber como pode o destino ser tão cruel para certas criaturas.

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Lembro-me de tudo

Fotografia de Örvar Atli Þorgeirsson

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A praia esvaziava-se até à melancólica reunião das gaivotas. Era então uma profusão de sulcos em forma de cunha e gritos selvagens. O ronco do mar, com o ir vir das ondas, desfazia-se num som borbulhante de espuma e cansaço, como se também o mar arquejasse e pedisse a noite. O vento erguia nuvens de poeira e tornava-se cada vez mais forte e frio, fazendo oscilar as bandeiras das marcas de gelados e as tolhas coloridas, ao longe, nas varandas dos prédios. Era essa a hora amada. Um pouco antes do sol-pôr, na travessia final do dia para a noite, quando podia caminhar praticamente só pelo areal e sentir os pulmões inchar com a mescla de elementos contrários, húmidos e enxutos, vindos das entranhas do oceano e das dunas áridas, onde rizomas resistiam e abrigavam um sem-número de ervas aromáticas.

Da planta dos pés às circunvoluções do cérebro, todo o meu ser habitava ali e ali se deixava habitar pelo tempo e o espaço. Às vezes a brisa fazia enfunar o casaco de malha e o capuz parecia tenso, como a vela de um navio. Não raro, a respiração do sargaço fazia-me recuar até à infância mais remota, até antes das minhas primeiras memórias, aquietando-me num pensamento infindável de paz e bem-estar. Era como se tivesse sempre pertencido a esse instante e tudo antes não tivesse passado de um desvio involuntário. Eu era aquela ali!

Caminhava primeiro para norte e depois em sentido oposto. O calção arrepiava-se com os salpicos de alguma onda mais veemente, álgida, cansada. E depois com os salpicos quentes de alguma represa pueril, deixada para trás, no seu tortuoso desenho de canais e torres de areia molhada e onde permaneciam agora algum caranguejo ou alguma estrela tresmalhados e sem vida.

Foi assim que nos conhecemos. Julgo que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. O primeiro vislumbre aconteceu numa dessas evasões de agosto, quando me deixava guiar pelos cheiros e pelo recorte azul acinzentado das montanhas galegas.  Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. Não sei qual das duas reparou primeiro na outra. Nem como chegámos à palavrosa descoberta das coisas comuns. Tudo singelo e doce, como numa canção. Sem sobressaltos. Sem a urgência de um reencontro, de um nome, de um perfume. Tudo crepuscular e delicado, como blandícia de uma voz ou de uma brisa.

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim que nos conhecemos. Saía do meu casamento. Devorada pela incompreensão, adendo devagar, esboroada pela dor e pelas traições, pelo nojo… Caminhava sempre com os olhos enregelados, como se um vidro maldito os tivesse aprisionado e subjugado. Caminhava a essa hora, em que o dia e a noite dão as mãos e se despedem e nos pedem uma derradeira prova de coragem. Dizias amiúde:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

Foi assim que nos conhecemos. Até que eu própria descobri o meu amor por ti. Quando tive a certeza de que talvez pudesse não voltar a ver-te e me queimou uma sensação precoce de perda.

‒ Não quero que partas!

E tu sorriste. E o teu sorriso era um lugar dentro da paisagem, onde, como num pingo de âmbar, se deixava antever o futuro, selado e transparente, irremediavelmente perto e intocável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que cada instante vivido contigo era agora um acumular de memória. E eu sabia que aquele primeiro vislumbre se parecia eternizar, mais vivo do que tudo o que vivera.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu revia o teu vestido salmão, a tua pele morena, os teus pés descalços, o teu olhar penetrante, meigo, inquiridor, faiscando como um pequenino carvão indecifrável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que partirias primeiro, que te velaria numa mágoa sem fim, que regressaria a este areal, que caminharia só, nesta hora de abandono, em que uma espécie de espuma gélida se segrega do ventre rumoroso do mar.

Lembro-me de tudo. Das noites que se seguiram. Dos rostos sombrios sobre nós. Dos paredões de ódio contra o nosso amor proibido. Das incertezas e dos choros. Das noites que se seguiram. Da solidão que é maior quando ousámos enfrentá-la. Da praia vazia. Das nuvens ofegantes e dolorosas, carregadas de grãos de areia. Dos anos que vivemos recompreendendo tudo. Da felicidade inesperada que nos abriu, qual gazua omnipotente, o sentido de todas as coisas. Lembro-me de tudo.

‒ Amor e morte andam sempre por perto. Como a terra e o mar. Como o dia e a noite…

Lembro-me de tudo. Das palavras que dizias, vindas de não sei que país inabitável. De que premonição terrível. De que sabedoria tua, temível, temida…

Foi assim que nos conhecemos.

E quando soube que amar-te era possível, deixaste-me. Aos poucos. Primeiro, no cimento intransponível de uma casa onde me não deixaram entrar. Depois, nas paredes brancas de um hospital, onde me aceitavam, fugaz e criminosa, como um gato. Porque era proibido o nosso amor, e eu soube que era possível amar-te.

Lembro-me de tudo. De saber então, quando aqui partilhávamos o lusco-fusco, que um dia, passassem os anos mais depressa ou mais devagar, este lugar me serviria de refúgio. De saber então, quando a felicidade crescia e me curava as lentas feridas de um outro tempo, que um dia regressaria aqui, como regressam todos os que amam aos lugares onde descobriram o amor. Lembro-me de tudo!

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim. É sempre assim. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. E tu dizias, dizias muitas vezes, e eu queria que o dissesses:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

E eu sabia (sempre o soube, desde a primeira vez que nos vimos) que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Mesmo contra rostos sombrios. Mesmo obrigando-nos a quebrar paredões de ódio e de betão. Mesmo depois da morte.

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Crónica de um amor sem tempo certo

Dmitry Borisov
Fotografia de Dmitry Borisov

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E foi assim que nos vimos de novo ao cabo de tantos anos. Uma ânsia capaz de guindar as tripas à boca. Sorriso miudinho. Nervoso. Incerto. Palavras curtas, entrecortadas, cheias de salamaleque. Tu, quase sem rugas, com o estupendo ar de quem regressa de uma viagem pelas ilhas gregas. Eu, mais frágil, curvado, capaz de jurar que o tempo passou em duas velocidades por nós. O que tens feito? O que fizemos? Passou tanto tempo. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém falar de beleza, que é, segundo a tua própria lição, efémera e enganadora. Eu continuo a dar aulas. Tu vens de Bruxelas, não é assim? Ainda no Parlamento Europeu? Mãos incertas, passeando-se pela mesa, sobre os joelhos, nos braços cruzados e descruzados. Apetece um cigarro. A beleza pode provocar calafrios. Foi já há tanto tempo. Como pode acontecer-nos? Acontecer-me isto? Corriges. Não, Miguel. Trabalho na Comissão. O Parlamento é em Estrasburgo! Claro. Desculpa. Confundo sempre. Uma ânsia destas parece um terramoto ao longo das vísceras. Bolas, estás estupenda. Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. De algum modo foste sempre uma criança na minha cabeça. Mesmo durante o breve amor que tivemos. Nessa altura éramos um puzzle impossível de preencher. Olha-te bem, agora. Rosto sereno. A pele tratada. Unhas longas e delicadas. O sorriso esmaltado e branco. O ritmo das frases. O tom seguro com que pedes. Conta-me coisas! Casaste?

‒ Não casei.

‒ E tu?

‒ Mais ou menos!

E as chávenas de café chegam dolorosamente para interromper a primeira revelação. Sempre odiei o amor. Sempre achei que todos se amavam neste universo de sete mil milhões. Todos menos eu. Todos odiamos o amor. Até que um dia alguém nos faz acreditar que uma pequena porção da sua loucura nos foi reservada. E aí amamos o amor. Pertencemos ao exclusivo clube dos que têm sorte. Dizemos que talvez tenha valido a pena o sacrifício, a espera, a deceção…

‒ Então. Conta lá!

‒ Vivi com uma pessoa durante algum tempo.

‒ Ah, sim?

Mas tu esquivas-te. Do assunto fugimos ambos. Porque há coisas que não se explicam. Melhor assim. Seguras a chávena com ambas as mãos, ao teu estilo. Sopras juntando amorosamente os lábios. Depois pedes uma pedra de gelo e um copo e canela em pó. Tinha-me esquecido desse teu ritual. Acho-o delicioso, deliciosamente presente, aqui e agora! Gosto de te ter. Pedes-me que te contes coisas, a vida, a minha disponibilidade para talvez amar. Sou incapaz de omitir-te seja o que for. Conto-te tudo…

‒ Não casei… Nunca vou casar… Sou avesso a tudo o que me querem…

‒ Miguel, Miguel… E as mulheres que não te largam… Como lhes explicas isso?

Uma súbita tristeza abate-se sobre o granito da esplanada. Sobre as paredes da igreja. Contra as casas e as janelas e as sardinheiras resvalando das varandas. Escureceu. As nuvens cortinam a luz forte de maio. Não sei como responder-te. Talvez não queiras uma resposta. Talvez não devêssemos ter perguntado sequer. Quantas vezes é melhor ignorar os factos, ir às cegas de encontro ao porvir, ser uma folha apagada, ou, quando muito, com os vagos sulcos de coisas escritas a lápis. É melhor assim. O silêncio prova-o. Atesta-o o embaraço, as sísmicas convolutas das vísceras sem lugar no lugar das vísceras. És a mulher mais bela que conheci, sabias? Mas não falemos de beleza. O amor é um mito para lá da beleza. És ainda a minha antiga aluna de secundário e já outra mulher. Ainda e já um outro tempo no meu tempo. E talvez deva dizer, enfim, qualquer coisa como isto.

‒ Nunca te esqueci, Eunice!

‒ Claro que esqueceste, Miguel!

‒ Nunca!

Apetece um cigarro. Apetece cair, sair, partir. Odiamos o amor quando o amor nos ignora. Ignoramos o extenso combate de palavras e de sentidos em cada palavra e sentido que se diz e se sente. Tremo. As mãos incertas desejam tocar-te e fogem, querem acariciar-te e fincam-se, procuram o perdão e mostram-se frias. O amor mente com as mãos. Apetece um cigarro. E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Lembras-te daquela canção dos Morphine? Até que um dia alguém nos faz acreditar que talvez nunca tenhamos odiado o amor. Olhos enxutos, rosto sorridente, coração limpo. O que tens feito? O que fizemos? Passou já tanto tempo, Miguel. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém dizer tudo. Talvez não se deva dizer coisa alguma. Continuo a dar aulas. E tu? Bolas, estás estupenda, Eunice… Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. És outra mulher, agora. O que é feito de ti? E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Às vezes é preciso ser assim. Devagar, tão devagar que o tempo para. E aí vemos tudo com minúcia. Quer dizer, onde encaixar cada peça, como acabar o puzzle. O amor não é outra coisa. Não é, pois não?

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Cada um de nós viaja para o lugar de todos

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Helmut Newton_young woman
Fotografia de Helmut Newton

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No preciso instante em que o autor destas palavras escreve a vírgula à direita, zarpa em direção a um ponto cada vez mais minguado no horizonte um batelão. Nele vai um moço de quem me afeiçoei nos últimos anos, moço generoso, antigo aspirante a um posto na Marinha, com ideias próprias, porém com um desgosto a morder-lhe o coração desde que em Itália, num bordel, conheceu uma dessas mulheres fatais, sicilianas, mistura de sangue latino e mourisco, capazes, como o próprio diabo, de roubar-nos a alma indefesa e de elevar-nos à condição imerecida de mártires. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? 

‒ Eu falo sempre de amor, meu caro jovem. 

‒ O senhor começa a parecer um poeta… 

‒ E tu começas a parecer-me um bom ouvinte! 

‒ Bem, o senhor diz as coisas de um modo… 

‒ A mim só me interessa perguntar e nunca dar respostas ou ter certezas… 

Lisboa ofende-se facilmente com as opiniões de um velho. Não digo toda a Lisboa, não pelo menos a que atraca aqui, neste antro de gente de mar e rio sem nome, sem passado, sem destino certo. Gente que vem beber aguardente e cismar ao pôr-do-sol, estivadores corruptos, marujos desencaminhados, antigos pescadores de olhos baços, com medo da saudade do mar. 

Uma tarde o moço sentou-se no outro lado da mesa. Vinha bêbado já. A conversa durou menos do que um braço-de-ferro contra um maricas. 

‒ Você aí, com esse ar de intelectual. Está-me a foder a paciência… 

Não respondi. Não foi preciso. Puseram-no imediatamente na rua a pontapé. Meia dúzia de chapadas depois, o moço voltou para pedir desculpa. Mas estava tão bêbado que se pôs a chorar. Chegara de Messina havia três semanas. 

‒ Deixei de acreditar nas pessoas… 

‒ Isso não é uma doença, meu amigo. Isso é a cura! 

No coração do próprio universo, nas cordas incandescentes dos triliões de sóis sobre as nossas cabeças e debaixo dos nossos pés há sempre o rosto de uma mulher. Que ela possa incendiar-nos de alto a baixo, em profundidade, para sempre é coisa que não me surpreende. Sou já tão cheio de idade que todas as histórias diferentes me parecem aos poucos a mesma história. 

À minha frente, caído numa ridícula prostração de macho abatido, um desgraçado ensarilha-me na sua história. Escuto-a sem pressa, sem perturbação, sem surpresa, com os seus ziguezagues, com os seus parênteses, com as suas heroicas fanfarronices: uma mulher de beleza inigualável, o ciúme, a promessa de vingança, o ajuste de contas, facas, um tipo no chão (ou dois), uma fuga precipitada até a um cais sórdido, depois o tribunal marcial e o castigo, a expulsão, e agora somente a rememoração de lençóis interditos, somente o macho com cio e com saudade… 

‒ Nunca mais tive paz… 

‒ Nada do que contas é assim tão extraordinário, meu rapaz… 

‒ O que mais me dói é a falta que me faz o perfume dela. 

‒ O perfume? 

‒ O cheiro do corpo. Não conheci outro paraíso até hoje. Um homem aninha-se nele e deseja morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez. Mas o senhor não ia entender isto, nem que lho explicasse mil vezes… 

Tão néscio és, meu caro jovem. As regras do amor são eternas. Valem tanto hoje como no tempo de Cleópatra. Tão verdadeiras neste instante como no dia em que o primeiro marinheiro fugiu da Sicília, amaldiçoado pela peste. Como se um homem chegado a esta idade, como se este corpo mirrado não tivessem conhecido a mesma inexplicável sedução que te faz enlouquecer no interior da tua própria masmorra. Como se o amor, girando eternamente na mesma calha em espiral não fosse o ADN da espécie. 

Passaram-se entretanto três anos. No preciso instante em que escrevo estas palavras já o batelão se dissipou com o nevoeiro dourado do horizonte. Duas vezes por semana nos reencontramos. Às vezes a aguardente é toda a linguagem que temos em comum. Às vezes, como um relâmpago inesperado de verão, tu recomeças a litania. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? Por uma puta? 

‒ Falo de amor, meu caro. Falo do teu amor!

‒ Sabe lá o que é o amor! 

Com nostalgia leio nos teus olhos a nostalgia. Há sempre o rosto de uma mulher. Essa mulher que te consome as entranhas. Olhos negros como corredores mal alumiados e perigosos, a pele macia e perfumada, os seios duros. A mesma labareda que um dia nos lambe o coração virgem e nos abandona, em cinzas, nus, expostos, à miséria de sobreviver-lhe e de lhe acalentar a memória. 

‒ O cheiro do corpo dela… É dele que me recordo todos os dias… 

Leio nos teus olhos a nostalgia, a impotência e o ciúme e a loucura de três anos de distância, três anos de homens possuindo-lhe o corpo, três anos de álcoois e peixe frito, três anos em que tornaste num igual a estes farrapos que aqui entre semeiam os crimes de saguão, a desobediência militar, o contrabando, a vingança… 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez… Não ia entender nem que lho explicasse mil vezes.

‒ Estou certo, meu amigo, que somos o movimento oposto das árvores. Dos ramos crescemos para as raízes… Com o passar do tempo cada um de nós viaja para o lugar de todos. Esse lugar, essa terra quente e apaziguada, espera-me há muito. O nevoeiro vem chegando, penetrando cada vez mais os meus ossos. Mas tu és jovem. Tu ainda podes tudo. Tens de lancetar essa ferida terrível e tresloucada.

‒ Deixei de acreditar nas pessoas.

‒ Basta! 

Conheço uma só forma de curar o mal do amor. Que é multiplicá-lo! 

No preciso instante em que anoto estas últimas palavras, regozija-te, meu caro amigo. Todos os meus pertences couberam numa caixa, numa chave. Leva-la contigo, sem compreender. A italiana, posso corrobora-lo é ainda muito bela. Bom trabalho me deu encontrá-la, trazê-la, instalá-la, deixá-la de presente a quem precisa de fé. O tempo ensinou-me a errar todos os caminhos para encontrar apenas um. A mim nunca me importaram as respostas ou as certezas. Sou um homem descrente. Mas por uma vez desejo não ter-me enganado. 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez.

Não precisas sequer de explicá-lo, meu bom amigo. As regras do amor são eternas. Eternas! Não ias entendê-lo agora, nem que to explicasse mil vezes.

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O mais puro amor entre todas as formas possíveis de amar

Salomé
Fotografia de Rodrigo Sena

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E de um momento para o outro damos connosco a embalar uma bebé nos braços, recuperando velhas canções esquecidas e antigos berços de madeira, reaprendendo tarefas tão simples como uma muda de fraldas ou lidando com outras bem mais complexas, como a gestão do tempo ou a míngua de horas de sono. Porque quando nos nasce uma criança e nos impõe a prioridade absoluta de a amarmos e protegermos, a vida nunca mais é igual, nem o significado da palavra pão, nem o modo como se escreve um poema, nem sequer muito significado do tempo que ficou para trás, com todas as arcas e álbuns de memórias escarninhas. Porque quando nos nasce uma criança o único tempo verbal que importa é o futuro!

Ando às voltas contigo no colo, experimentando uma e outra forma de adormecer-te, às vezes adormecendo primeiro do que tu. O «Frère Jacques» faz-me passar pelas brasas, enquanto tu ficas, como pensativa, sondando com olhos mal inaugurados o mundo em volta. És tão bela, bebé! Desespero-me por gravar estes dias, estes dias que um dia não hás de recordar de tão distantes, porventura os melhores, estes dias que a inocência e um branco esquecimento anterior à capacidade de lembrar não permite que resguardes. Ando contigo às voltas no colo, escutando-te o ternurento som da chupeta, o leve ressonar de erva tomada pela brisa, a respiração delicada de alma sem mácula ou remorso. Às vezes dá-me uma volúpia de te apertar nos braços, de te esmagar, de te morder, de te beijar com sofreguidão… És tão bela, bebé!

Cumprir a hora da papa e do banho diário, distinguir os cremes, destrinçar e compreender os motivos do choro, aspirar o teu cheiro inefável, albergar todo o teu maravilhoso sorriso desdentado, maravilhar-me com todos os teus guinchos de satisfação, aprender os ciclos, adestrar-me na arte de te despir e vestir nas circunstâncias mais imprevisíveis, nos lugares menos prováveis, sim, tudo isso passou a fazer parte de mim, como o orgulho que se sente nas semelhanças físicas e nas de carácter, como o prazer de pronunciar uma e outra e outra vez o teu nome próprio, invocando a vida que és e te tornaste na minha vida!

Nunca fui capaz de compreender até este ponto o significado da existência. Nenhum filósofo, nenhum poeta, nenhuma crença, nenhuma canção me ensinou tanto como tu, tu que me abriste os olhos para a verdade oculta de e em todas as coisas. E, por isso, te levanto ao alto nos meus braços, como o faz a luz desde o fundo dos olhos. E, por isso, abençoo e agradeço a dádiva. E, por isso, como nas tribos de África, sou um homem diferente a quem o tempo passou a venerar, como se venera a árvore ou o rio, como se venera o amanhecer e a sombra e todas as coisas que se multiplicam em silêncio.

E de um momento para o outro dei comigo a embalar-te nos braços, vendo crescer de semana para semana o duplo queixo e as bochechas coradas, sentindo os teus dedos nédios prender a minha mão, escutando-te a incompreensível e tosca cantilena dos sons que serão em breve as primeiras palavras e as primeiras pedras de uma ponte entre e ti e mim e nós…

Ando às voltas contigo no colo, na penumbra da casa, regredindo aos primórdios do meu próprio tempo, ao aconchego de braços que me acalentam e embalam e me ensinam o significado do amor, deste que é o mais puro amor de todas as formas possíveis de amar. Um dia, quando deres por ti, terás percebido tudo o que escrevo agora e se há de perder, como se perde toda a luminosa essência de um beijo, ou se nos escapa uma lágrima furtiva.

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Ingrid, alguma verdade é ainda possível

All i have is this picture in a frame (Rolland Flinta)
Fotografia de Rolland Flinta

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Ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso sistema de organização de transportes sueco. Em muita da sinalética espacial lê-se a palavra hub, que significa grosso modo coração de uma rede de comunicações, viárias, aéreas, marítimas, mas no caso também digitais, cibernéticas, por satélite. Os suecos, como todos os povos do norte da Europa, viajam muito, viajam depressa, viajam com conforto e dentro dos horários. Nada que me tivesse apanhado de surpresa. Mas sobretudo viajam discretamente, desatentos aos parceiros de banco ou de carruagem. Usam ostensivos e poderosos headphones que lhes concedem o dom do ensimesmamento ou, aos meus olhos talvez, o terrível autismo que é a capacidade de ninguém trocar palavra com ninguém durante, digamos, uma viagem de duas horas…

Quando comentei com Ingrid esta caraterística tão luterana, espantou-se que ficasse muito admirado por “ser assim na Suécia”, porque julgava que era assim em todo o mundo civilizado. E não via nesse individualismo um sinal de frieza, antes de emancipação.

– Desde o período da fome, ou talvez mesmo antes, ninguém se mete na vida de ninguém. Não toleramos sequer a ideia de que alguém se intrometer na nossa vida, ou muito menos que nós nos intrometamos na vida de alguém…

– Mas, e se alguém, por exemplo, precisar de uma palavra amiga?

– Então, deve marcar uma consulta no médico… percebes?

Ocorreu-me que num país como Portugal esta convicção pudesse ser interpretada como um feroz sinal dos tempos modernos, muito distante daqueles dias em que era possível assistir a uma animada conversa entre vizinhas à varanda, ou a um ternurento oaristo junto a um carro de feno. Mas ocorreu-me também que em Lisboa, numa estação de metro, nada é diferente do que acabo de assistir neste país belo e frio.

– Ingrid, sou de uma região onde ainda é possível despoletar um colóquio animado com um perfeito desconhecido, a propósito do tempo que faz, sobre uma notícia lida em voz alta no jornal, ou por causa de um gato que sai disparado do interior de um talho com um pedaço de fiambre na boca…

Ingrid ri, ri com vontade do meu gato sorrateiro afiambrando a sua oportunidade, como um desses vadios que rondam os cais de todas as cidades de mar. Mas presume anacrónica, para não dizer improvável, uma vida urbana capaz de reunir ao mesmo tempo universidades, hospitais, bares, cinemas, teatros ou museus e gente que sem mais nem quê se volta na cadeira de café e pede ao senhor da mesa ao lado para tomar parte num coro de protesto contra o governo ou contra o árbitro de futebol tendencioso…

– Garanto-te que no Norte de Portugal não é nada estranho que duas pessoas, que nunca se viram em toda as suas vidas, nem se conhecem de lado nenhum, possam entabular uma saudável cavaqueira sobre o assunto mais inesperado e mais banal que possas imaginar. Chegarão por certo, e no andamento dessa conversa, a partilhar intimidades…

– Não posso acreditar!

E di-lo num inglês que traduzo mal, porque deveria antes verter num NÃO POSSO  ACREDITAR!

Explico o significado afetivo da palavra cavaqueira, intraduzível como tantas palavras que, retendo alguma semelhança com outras palavras, não significam exatamente o mesmo. E ao detalhá-lo com pormenor, com recurso ao folclore bairrista de uma cidade como Porto, Braga ou Guimarães, dou-me conta da espécie de criaturas proto-históricas com quem me imagina convivendo diariamente esta bela loira de olhos azuis, e que agora me ouve desfiar peripécias da minha terra como extraídas de um alfarrábio das Mil e Uma Noites

– Compreendo que as coisas aqui tenham evoluído tremendamente. Basta ler os contos de Selma Lagerlöf ou de Stig Dagerman, ambos nascidos na província, para percebermos o avanço da secularização na Suécia, da capital para a periferia…

– Secularização?

– Sim, secularização de uma sociedade, que era ainda há pouco mais de um século profundamente dependente da agricultura e das tradições… Olha, ainda não há muito li as memórias de Tomas Tranströmer e ele di-lo exatamente nesses termos…

– Bem, julgo que não teria esta conversa com o Lasse ou com muitas outras pessoas que conheça, João. Embora respeite a tua paixão pelo medievalismo, não creio que a Suécia se tenha propriamente esvaziado de espiritualidade… Ou de religião… Pelo contrário, somos um país cheio de múltiplas crenças em pacífica convivência…

Sim, sim, sim! Agrada-me discutir factos, apreender ideias, pôr à prova a verdade das minhas próprias convicções. Ingrid, uma jovem professora de Malmö em trânsito por várias cidades da Escandinávia, seduz-me profundamente com esse seu perfume de saber nórdico, que sempre se apõe e nunca se impõe, igual a um avô, ou a um amigo, que nos ralha sem jamais levantar a voz. Mas preocupa-me que esta geração de europeus, ofuscados pele denominador comum da americanização (outra forte palavra esgrimida entre nós), não seja capaz de albergar o antigo, o autêntico, o tradicional, nem esteja predisposta a preservá-lo das múltiplas invasões que o ameaçam…

– Falas dos chineses, dos islâmicos, dos indianos ou dos africanos?

– Ingrid, falo somente daquilo que não é capaz de dialogar connosco! Daquilo que invade a Europa e não a respeita!

– Dos chineses, dos islâmicos, dos indianos e dos africanos, portanto?

— Penso que entre eles haverá quem possa significar uma ameaça à Europa, sobretudo os extremistas, como se tem visto! Mas prefiro não designar grupos, porque sabemos que isso é uma questão complexa e provavelmente mal delimitada…

— João (e delicia-me o esforço de ditongar a palavra Joau), existe preconceito e é esse preconceito a verdadeira ameaça àquilo que chamas de “integridade europeia”. Se é que há uma “integridade europeia”.

– Corro o risco de ser mal compreendido…

– Porque o Breivik fez o que um dos teus terroristas não foi capaz, certo?

Sinto-me cansado. Viajamos para o Parque Nacional de Dalby, num Volvo de última geração, devidamente credenciado por uma entidade independente, a quem cabe a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento de um sistema que preconiza a segurança como prioridade absoluta. E, no entanto, sinto que é esta segurança que não deixa ver ameaças ideológicas e, decerto também económicas (que Diabo, como não falar delas, se vivo num país cheio de dívidas), espreitando já dos nichos dos bairros operários das maiores cidades de uma das melhores nações do mundo. Ou começo a duvidar de uma qualquer minha paranoia (e quando digo minha, digo nossa, do sul).

– Admito que precisamos de prestar algum cuidado em relação a grupos de estrangeiros muito específicos… Mas a alma deste país é a tolerância. E a tolerância é uma conquista que não se pode desperdiçar de qualquer maneira… Compreendes?

Compreendo, evidentemente. Mas eu não disse outra coisa, nem penso noutra coisa desde que iniciámos esta curta viagem para sul. Pelo que volto atrás para clarificar, para impedir males-entendidos.

– Sou profunda e sinceramente aberto à convivência com outras culturas, aliás muitas vezes desafiei a minha gente a respeitar a diferença e calar anedotas e comentários racistas… Mas não me sinto tranquilo neste momento, em que pessoas vindas de fora não respeitam as leis estabelecidas por séculos de luta e apuramento ideológico, por constituições soberanas e por sã convivência das suas comunidades.

– Falas, por exemplo, daqueles que obedecem somente à xaria?

– Sim, Ingrid. Esses, por exemplo!

A minha condutora fica pensativa, faz o volante deslizar suavemente ora para a esquerda ora para a direita, acompanhando as curvas e contracurvas de uma estrada decalcada de algum anúncio publicitário. A sensação de conforto contagia, a cada quilómetro percorrido faz-nos desejar pertencer a ela para sempre, como não tivéssemos nascido senão para obtê-la e fruí-la e defendê-la com unhas e dentes. Mas isso porque nasci em Portugal e não na província de Skåne… E ao pensá-lo, enquanto os olhos de Ingrid se concentram na condução, dou-me conta da terrível cortina que principia a remover-se diante os meus próprios olhos. Porque esse conforto que me embriaga, faz-me divisar por momentos a aspiração que, sem dúvida (e outra não podia ser), divide e sempre dividiu todos os povos que existem e existiram sobre a Terra.

– Penso que a posse do conforto demarca insanavelmente aqueles que toleram daqueles que se rebelam e extremam posições…

– Desculpa, amigo, não percebi!

– No fundo no fundo, o que distingue as civilizações é a posse do conforto ou a agonia de ter de lutar por ele. Os que sempre conheceram um conforto, igual por exemplo ao que sinto aqui dentro do teu carro, não precisam de lutar em nome de nada, nem de Deus, nem de uma qualquer ideologia. Porque o conforto é o máximo a que podem aspirar na sua existência humana. Já o encontraram. Ao passo que todos os outros, os que não podem aspirar a mais do que uma desforra divina, ou a uma desforra bélica, ou a uma desforra qualquer, esses nunca poderão transigir com os afortunados. É uma questão tão simples, Ingrid…

– Tão darwiniana, queres tu dizer!

– Exatamente!

Suponho que obtive algum alívio, porque as argumentações improvisadas me deixam sempre prostrado, a meio caminho do que penso e do que gostaria de poder dizer. Mais ou menos como alguém que tivesse penetrado na escuridão de uma mina até meio do seu percurso e não sabe se deve regressar ao princípio, ou se pelo contrário deve avançar até ao fim…

Suponho, também, que no final de cada conversa me fica este desconforto. Um desconforto irritante, porventura análogo ao que sentiram os amantes da ciência após o descrédito das leis deterministas e o advento de Einstein ou Heisenberg. Falo do velho catecismo das minhas convicções, das velhas ideias feitas, que repetidas em voz alta se começam a parecer estúpidas, serôdias e incompreensíveis. E o desconforto é o resultado de duvidarmos agora de tudo.

– Achas-me uma pessoa provinciana, não é verdade, Ingrid?

– Não, amigo. Penso que és uma pessoa atenta. Talvez devêssemos estar mais atentos a tudo o que nos rodeia… seguir-te o exemplo!

– O exemplo?

– Sim. Imitar essa tua atitude inquiridora, ou inconformista!

Fico calado, observando ao largo o Atlântico, o mesmo Atlântico que conheço desde bebé, estranhando quiçá ver-me tão longe de casa. Além, as ruínas de um antigo forte, tão semelhante aos escombros que adornam a costa portuguesa, também ela permeável a milénios de itinerância e invasões. Acontece-me muitas vezes: preciso de tempo para digerir e aceitar o que é ainda provisório, rebelde e novo. Não tão novo que o não devesse ter pensado antes. Ter pensado, por exemplo, nos gloriosos séculos de escravatura infligidos por um império que nos encheu de vaidade e de igrejas. Porque tudo é relativo e cruel, quando visto e pensado à luz soberana de um ângulo diferente… E é como se prova haver entendimentos terrivelmente dissonantes nas nossas palavras.

Ingrid estaciona o carro. Sorri complacente a tudo o que em vinte minutos de caminho se disse e contradisse. Mas já as palavras voam para o limiar do esquecimento. Uma fila de visitantes aguarda a compra do ingresso, famílias inteiras câmaras a tiracolo, disfrutando do sol macio de um verão curto mas vívido e limpo. Penso nos poemas de Lindqvist, nas belas descrições que aqui, agora, se tornam carne na minha própria carne.

Agora, um mês depois, ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso contraste dos suecos com os outros povos. Seguros da sua segurança, respeitam-na em vez de a defenderem histericamente como os americanos, ou de a contestarem violentamente como os latinos, por exemplo. E tudo isso é uma impressão difícil de articular em pensamento, ou sequer em palavras.

Julgo que passamos a vida a influenciar-nos reciprocamente, sem podermos jamais encontrar o norte magnético de alguma verdade. Se fosse possível existir alguma.

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