A última vez

Edd Carlile
Fotografia de Edd Carlile

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para a Ângela, in memoriam

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Entrei no hospital dominado pela vertigem da fraqueza, por imagens incontáveis, em ebulição, incapazes de fabricar entre si um único pensamento. Suponho que fiz um esforço, que soube manter-me firme. O maxilar dorido. O coração acelerando. As mãos subtil, sub-repticiamente suando. Disseram-me «Coragem, João». Nos corredores as pessoas choravam. Disseram «Aqui é sempre assim». Uma covardia incomensurável atravessando-se-me nas pernas, nos ombros, nos olhos. Ainda a tempo de voltar para trás, disseram «Ela está tão fraca, João». Depois o espaço ficou curto, muito curto, uma nesga, um braço, uma unha. Depois, como quem num mergulho de apneia, respirei fundo. Depois tu. Deitada, olhos fundos, sumida, lívida, transparente, como uma lua minguante. Que tristeza tão grande.

‒ Estou no fim, João!

A doença. Essa doença maldita. Nem um ano desde que me contaste.

‒ Arrumada, João!

Os meus dedos tocaram os teus dedos magros. Os meus braços apertaram o teu corpo cadavérico. Precisei de aguentar o primeiro embate, de suportar as cócegas no nariz, de descobrir as palavras certas, de absorver oxigénio suficiente. Paulatino, um arremedo de outrora. Tão perto e tão remotos os dias em que discutíamos o Benfica, os livros, os lances da vida…

‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…

A doença. Essa doença maldita. Faláramos dela. Sabias o que aí vinha, sabias de cor cada exame médico, cada reação, cada porção de ti que se apagaria em cada sessão de químio, cada dia de inferno que se seguiria a cada dia de inferno. Sabias como tudo seria lento e veloz, inadiável e doloroso, fatal e tristíssimo.

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…

Tinha-te prometido um livro novo, vários livros novos. Havia uma próxima vez para as francesinhas. E outra para o teatro. E tantas conversas para pôr em dia sobre tantas coisas irremediavelmente banais e perdidas, como a poesia e o amor e a tua paixão pela fotografia. Tinha-te imaginado com um homem decente, casada, com filhos, feliz.

‒ Ainda tens tanto para viver, ouviste?

As palavras batiam em ti como num cântaro vazio. Cavas. Grotescas. Inúteis. Batiam em ti, mesmo se procurasse (e eu procurei tanto) que não batessem. Batiam em ti de um modo absurdo, como quando as palavras batem e queríamos apenas que acariciassem, que anestesiassem, que mentissem, que mentissem com o seu láudano piedoso. Elas batiam. E eu em pânico, ao dar-me conta que queria dizer «Como pudeste tornar-te tão frágil?». Assustado com o poder sussurrar «Como pôde isto ter acontecido?». Mordendo a língua para calar todas as lágrimas que borbulhavam desde o sopé da garganta. «Como?», «Como?», «Como?».

‒ Esta doença é tramada…

E sorriste. Sorriste do modo como sorrias sempre às verdades. Como quando me disseste uma vez que «Os lençóis são o lugar onde mais se mente», porque «Enquanto o diabo esfrega um olho já o fizemos a um amante, a uma criança ou a um doente». Sorriste do modo como sorrias sempre ao desencanto e à fatalidade das coisas. Do modo como sorrias no fim de me contares sobre as tuas viagens, sobre os teus sonhos antigos, sobre um gasto supérfluo. Sorriste do modo como quando sorrias para dentro, do modo como sorrias aos pensamentos e imagens desencontradas da memória e uma profunda tolerância descia sobre  ti e te aceitavas e sabias que «Tudo passa».

‒ Perdemos tanto tempo com coisas que não prestam… Olha, por exemplo, nunca disse à minha mãe «Mãe, eu amo-te!». Porquê, João?

Porque o tempo nos confunde.

‒ Porque não dizemos às pessoas que as amamos, João?

Porque o tempo nos distrai.

‒ E depois o tempo falta-nos…

Porque nos julgamos eternos. Porque nunca se está preparado para outra coisa que não o agora e para sempre. Porque.

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva, João.

E o nariz tremeu. Cócegas, prurido, uma careta imensa. Essa doença maldita. A magreza insuportável do corpo, o crânio despido, o respirar roufenho dos pulmões, as intermitências da razão.  Sabias o que aí vinha. Sabias de cor cada passo de cada passo.

‒ E depois o tempo falta-nos…

Os olhos exorbitados e tristes, tristes e exorbitados como todos os olhos que se despedem. Pequenas frases arfantes, truncadas, cheias de nostalgia, penduradas à boca como um resto.

‒ Estou no fim, João!

Essa doença que continua a doer. Mesmo depois do depois. Mesmo depois.

‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?

E tu sorriste. Daquele modo como sorrias sempre. Com infinita tolerância, como quem sabe que nunca se regressa de um encontro com a morte. Como quem sabe que ela está à espera, a uma nesga, a um braço, a uma unha. Como quem sabe que o tempo confunde, ainda agora e já. Como quem nos vê pelos nossos olhos, uma porta que deixámos de reconhecer,  o elevador, o parcómetro, as ruas, o céu crepuscular…

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Só para te agradecer, Vicente

Serban Mestecaneau
Fotografia de Serban Mestecaneau

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Gosto da tua maneira simples de pensar. Simples, clara, objetiva. Entras-nos pela vida dentro como um canalizador, trajando fato-macaco, com a mala das ferramentas na mão, verificando o problema, passando os dedos pela comissura da boca e, antes mesmo de haver a possibilidade de uma queixa, atirando a resposta.

‒ O teu problema, Zé Carlos, é que te metes sempre com miúdas… Estás a precisar de uma gaja a sério…

Peço-te para falares mais baixo. Há gente a olhar. O que não se dá hoje em dia por uma boa novela ao vivo e a cores? Mas tu ignoras os decibéis apropriados a uma intervenção de fundo em áreas tão sensíveis. Tu és mais de descarregar a ferramenta toda, de te pores à volta dos canos martelando-os com uma chave de fendas, franzindo o sobrolho a cada pancada seca, fazendo aquela careta de quem está prestes a dar com a ratada), tu és daqueles que não engonham, dos que têm sempre uma imensa certeza profissional.

‒  Meu amigo, isto é assim: ou mandas tu, ou mandam elas! Mulheres e carros são iguais: as novas trazem mais eletrónica, mas deixam-nos ficar mal em qualquer barranco… Já as velhas, pá; as velhas aguentam tudo! Até levar no…

‒ Caramba, homem! Fala mais baixo…

Sei que no fundo tens razão. Sei que no fundo sou um fraco. Quando me divorciei da Dulce as coisas pareceram-me o fim do mundo. Mas tu, qual anjo do Apocalipse, apareceste carregando uma trombeta dourada.

‒ Olha-me só este marmanjo! Só te falta chorar e pedir que te limpem os moncos!

A princípio odiei-te. Odiei-te como se odeia um inimigo. Quis esmurrar-te a cara. Tive ganas de exigir respeito. De marcar território. Mas sou no fim de contas um fraco. E tu tens o diabo do calão e os trejeitos de um cómico a teu favor. Falas das coisas como se passasses descalço pelas brasas sem te queimares. Sabes fazer-nos a caricatura sem maldade, mas com malícia.

‒ Meu amigo, isto é assim: as gajas são como as caldeiras de aquecimento. Primeiro avaria-se o radiador, depois a bomba de circulação. Quando dás por ela fodeu-se a centralina, depois a sonda da temperatura, por fim o acumulador… Por muito que queiras consertar a coisa, aquilo já não aquece. Mais te vale comprar uma nova! Entendes-me?

Sei que no fundo tens razão. As coisas não podem marcar-nos para sempre. Um indivíduo precisa de levantar a cabeça, entender-se consigo mesmo, rebuscar o sopro das coisas passadas, encarar o futuro, vencer… Mas eu sou daqueles que preciso de um empurrão. Sou daqueles que só lá vai com um pontapé no traseiro. E quando te peço a opinião já a conheço. Adivinho sempre o que dirás, mas preciso de escutar tudo. Preciso que fales grosso, que me agarres pelos colarinhos, me insultes, me ponhas em sentido.

‒ Mas porque te enfias tu na cama com essas tipas mimadas, pá? Nunca ouviste dizer que quem se deita com miúdos…

‒ Acorda molhado…

‒ Mijado, Zé Carlos! Acorda todo mijadinho, pá!

Conto-te as coisas, explico o desta vez, defendo-me. A voz às vezes treme, some-se. Quero falar grave, mas um soluço vem espreitar como a cabeça de uma lagartixa. E tu, que és um tipo impecável (tolo, mas impecável), lá me confidencias coisas que talvez sejam mentira…

‒ Pá, a Dulce está um caco! Dá-se mal com o outro gajo… Vi-a há duas semanas… Está um caco, pá!

Os amendoins custam mais a engolir. A cerveja parece ferver. Porcaria de cerveja. Fazem-na cada vez pior… E tu dás a estocada final.

‒ Sempre te digo que tipos como tu merecem o melhor! As gajas gostam de bater com a cabeça, pá… Problemas delas… Tu mereces melhor!

Nunca te disse isto. Mas preciso de dizer que te admiro! Nunca to disse, mas hoje vou dizê-lo. Mereces que to diga isto como se diz uma mariquice, como uma golfada de água límpida e abundante, vinda lá das entranhas da terra.

‒ És um tipo impecável, Vicente!

‒ Ora, deixa-te lá de coisas!… Então, pá? Que é isso?…

Porque a vida nos faz viajar quilómetros. Porque a vida nos empurra devagar e ao mesmo tempo depressa, como se empurra uma manada, para o centro do seu próprio labirinto. E um indivíduo acorda às vezes com a sensação de já não conhecer o caminho de volta.

‒ És um amigalhaço Vicente!…

‒ Está bem, está bem… Deixa-te de coisas, pá…

Porque às vezes acordamos com aquela sensação de habitarmos um inferno. E o inferno é (ou tem-me parecido), a alienação, o esquecimento, a perda. E quando sabemos exatamente o que vale ao todo a nossa existência ficamos a olhar do alto de um abismo a pequenez que nos coube em sorte.

E por isso gosto da tua maneira simples de pensar. Simples, clara, objetiva. Entrando-nos pela vida dentro sem tardar e sem filosofias, como um canalizador com a mala das ferramentas, mastigando o palito, confiando o bigode, sabendo antes mesmo de ver de ver o problema a solução.

‒ Precisas de uma mulher a sério, Zé Carlos!

‒ Preciso, Vicente! Preciso, sim!

Porque às vezes acordamos com aquela sensação de habitarmos um inferno. E mal podemos imaginar o anjo da guarda que, miraculosamente, algo ou alguém guardou para nós. Mal podemos imaginar… mal podemos…

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