O macho

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Fotografia de Viktor Cherkasov

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Duas vezes por semana vinha Nicolau Balestra a cambalear ao longo da linha do comboio, muito bêbedo, muito zangado com o governo, muito capaz de tirar o cinto das calças e de começar a espalhar amor pela casa, vergastando indiferentemente um dos dois rapazes ou uma das quatro mocinhas bonitas de tranças loiras, que a mulher parira e que em pouco ou em nada se pareciam com o pai.

O braço firme de Rosalina Pires é que o travava sempre. Um mulherão esta Pires, uma mulher de pelo na venta, uma desenrascada.

Na aldeia todos conheciam o modo de vida desta gente. No dia de Nicolau receber a jorna, havia azeite, bacalhau seco, arroz na despensa. A seguir recompunha-se a miséria, que só não era maior porque Rosalina a seu modo encontrava meios de ir buscar o dinheiro que Balestra esbanjava na bodega com os quartilhos, com amásias, com o jogo da sueca.

Nicolau era pedreiro-alvenel. Afora isso não era coisa nenhuma. Rosalina por sua conta tinha a lavoira doméstica, o gado, a prole, a casa. E não sendo pequeno o afã, quantas ocasiões tivera ela de abandonar tudo e de meter-se noite cerrada pela beira do caminho de ferro e ir buscar o homem à taberna.

Todos conheciam o proceder da matrona. Entrava e quedava-se em silêncio à porta, segurando um grosso cacete nas mãos pendidas. Nicolau assim que a via, ou alertado pelos parceiros da jogatina, agitava-se profundamente:

– Bem, meus senhores, esta é a última… É para acabar…

E saía não muito depois da tasca, de cabeça baixa, com ar de quem adivinhava o pior, não sem antes ela lhe atirar sem piedade ou pejo à cara:

– Tens-nas certinhas!

Nicolau e Rosalina Pires habitavam uma casa antiga de pedra, bastante rústica e sem conforto que se achasse, de dois andares. No primeiro ficava a loja: ocupavam-na inteiramente as cortes, as coelheiras, os toros de eucalipto empilhados, o giestal seco, o lugar húmido das pipas e das alfaias agrícolas. Era aí que estava pendurado o jugo e levantada a carroça que a junta de bois devia puxar. Em cima era os cómodos, a cozinha, a saleta, os três quartinhos. Havia também uma retrete. Tudo aninhado e esquálido, pequeno demais, sujo demais, frágil demais.

Comiam o caldo à vez, que a mesa perto da lareira era para quatro e não para oito. E rezavam o terço ao lume, um terço mastigado e triste, a maior das noites recitado pelo pai de família. A menos que Rosalina tivesse pressa. Nesse caso, era ela quem tomava as contas do rosário e impunha a disciplina às ave-marias e às santa-marias. O marido já em ceroulas e a meter-se entre os cobertores da cama, ouvia-a em sobressalto:

– Rais parta. Tenho de ir lá abaixo apanho penso para a bicharada!

– Agora?

– Tu o que queres, homem? É um instante e fica feito!

Nicolau Balestra gostava pouco daqueles esquecimentos de Rosalina. Ela ia e às vezes demorava-se. Ia e regressava com o rosto afogueado, como se tivesse estado a malhar na eira. Não raro, Balestra adormecia mesmo e acordava num repente, como se acometido pelo susto de uma alma penada ou pelo gemido penetrante de um gato com cio.

– Ó mulher, demoras? – berrava Balestra de cima para baixo.

– Já vou, homem! Estou a apanhar para hoje e para amanhã! – resmungava a Pires de baixo para cima.

Em Póvoa de Santa Cristina todos conheciam aquela canseira. Dificilmente se ignora numa aldeia a balança torta dos machos fanfarrões ou a conduta torcida das fêmeas fanchonas.

Havia alturas em que a altercação em casa destes dois se ateava como uma fogueira alta. As moças fugiam de casa aos gritos e os rapazitos ficavam no cancelo à espreita, tão apavorados quanto as irmãs.

– Ai… ai… ai – chegava a planger-se nas paredes de dentro. Era uma voz lastimosa, de pessoa surrada, em apuros.

Foi num serão desses que os militares da guarda republicana apareceram. Apareceram mansamente, a pé, com os pesados capotes e a baioneta embainhada, com a curiosidade a estalar.

– Ó Balestra! Ó da casa!

Os ais interromperam-se logo, colhidos pela surpresa.

– Ó Balestra, podemos subir?

Nicolau assomou à porta da cozinha enfumarada, a esfregar as mãos, cheio de solicitude. O que desejavam os senhores guardas? Claro que lhes assinava o visto da ronda? Oferecia-lhes até um copo de vinho e, se os senhores guardas esperassem, ainda comiam bolo com sardinhas e um bocado de pão, que se estava a cozer e não tardava a ir para a mesa.

O segundo sargento Martins declinava. Que assinasse e eles iam à sua vida, ainda a patrulha tinha muito quilómetro pela frente. Nicolau voltou-se para a mulher e declarou brutal:

– Assina aqui tu, anda lá… Senão continuas a comer, sua filha da …!

Ela, que já havia lavado as mãos, secava-as entretanto no avental. Assinou. Depois, num tom nada amigável, deu a ordem:

– Enche aqui dois copinhos de aguardente a estes homens.

Balestra foi buscá-los ao armarinho. Nas costas do seu colete de flanela, desenhada várias vezes a torto e a direito, ainda cheia de farinha peganhenta, via-se a pá do forno.

O Balestra insistia com cara de mau:

– Só assim, minha filha da …! Só assim tu aprendes…!

E serviu a aguardente aos dois da ronda noturna, muito senhor da situação e com as costas quentes.

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O cemitério

Wilderness, Mikkel Wejdemann
Fotografia de Mikkel Wejdemann

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O cemitério paroquial de Ancohuma, na província boliviana de Larecaja, situa-se a mais de seis mil metros de altitude. Pese os nevões contínuos que se abatem sobre ele a maior parte do ano, aí celebra-se a vida como num campo de girassóis. No lugar onde cada mulher e cada homem da aldeia foram sepultados erguem-se lápides de madeira colorida, pintadas em tons de amarelo vivo, mel, limão ou ocre, com dizeres rememorativos a respeito dos defuntos e não sobre a eternidade ou acerca da dor dos que ficam e que podem ainda contemplá-las:

«Aqui mora Hernández, que gostava de comer bem e cujos peidos enchiam a taberna», «Neste lugar jaz a pequena Emília, que sabia já escrever o nome quando o Pai Celestial a chamou para junto da sua lareira», «Esta é a campa de Eva, mulher de Pablo e depois de Juan Alonso, mãe de tanta filharada como a primeira que veio ao mundo», «Aqui enfiaram os restos mortais de Romero, forasteiro encontrado em Ventanas Rojas com estricnina na boca. Dizem que era um biltre. E era».

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Via-se bem

Mulher idosa, por Panfil Pirvulescu.
Fotografia de Panfil Pirvulescu

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A velha, via-se bem, lacrimejava. Não havia meio de acender o fogão maldito. Já por duas vezes os dedos trémulos haviam precisado de imiscuir-se no buraco do serrim e de retirá-lo aos bocados. Recolocou o bastão numa das bocas e pela terceira vez, via-se bem que com irritação, pôs-se a peneirar a serradura para o seu interior. Depois com o cabo da foice começou a comprimir as aparas lentamente no espaço em volta. Vinha-lhe à cabeça a história do aerograma: que dor tão funda para aquela família! Retirou o bastão com cuidado, de modo a aguentar o espaço aberto no miolo do serrim e de seguida lançou pelo largo orifício um bocado de papel a arder. Era uma tarde inusualmente fria, não se recordava de um julho assim. Curvou-se mais um pouco e recomeçou a soprar. Fazer deflagrar a chama exigia perícia, paciência, temperança. A velha não tinha filhos, mas não os ter tido não significava que não se doesse da dor dos outros. De dentro do tubo mole das aparas começou a crescer uma língua de fogo. Dentro da cozinha às escuras, o fumo rodava, entretanto, mais espesso, mais azul, mais implacável. Fazia arder os olhos. A velha, via-se bem, chorava.

Os rapazes iam para África a mando do governo. Iam e às vezes não voltavam. Como se governavam lá não o sabia a velha, que fora sempre apenas senhora do seu mundo, enterrada desde a infância nos campos e nos montes, nas singelas coisas das pessoas simples. O filho da Aninhas foi dos tais: levaram-no de pé e trouxeram-no dentro de um caixão selado com chumbo. Uma mulher, ainda que velha e solteira, dói-se dos destinos funestos dos outros. Na solidão da cozinha podia soltar as lágrimas, ainda que lágrimas dolorosamente paridas no silêncio lágrimas e talvez estéreis. Sobre as bocas do fogão colocou as grelhas e sobre as grelhas as pequenas panelas enegrentadas. África é longe, a infância é longínqua, a morte é ainda mais distante, ainda mais intransponível. Pobre rapaz!

À hora habitual, a moça subiu o lanço de escadas e deu a fala acostumada.

– A bênção, madrinha!

– Oh, filha, Deus te abençoe!

– Venho da casa da Soledade. Venho parva…

– O que foi?

– Não sabe o que aconteceu ao Sê Pereira e à Aninhas?

– Já soube, filha. Já soube…

– Chegou um aerograma da Guiné, do Torcato.

– Já sei, filha. Já sei…

A velha regressou ao bolso do avental. Limpou o canto dos olhos com o mesmo pedaço de tecido esquálido onde se assoou a seguir. Seria um daqueles gestos mecânicos que repetimos sem pensar. Depois serviu-se de uma bacia com as batatas e a cenoura que descascou com uma tristeza doente. Que espinho para uma família receber um aerograma do Ultramar um mês depois de fazer o funeral ao filho que o enviou!

– Acho que foi para uma gritaria ontem à noite. Coitados…

A velha soergue o rosto sem dizer nada.

– O Torcato mandava dizer que estava bem, que graças a Deus já pouco faltava para acabar a comissão… que neste Natal já cá estaria para casar com a Rosalina e começar a construir a casa…

Lá atrás, num dia de nevoeiro, uma mulher bastante jovem vê-se engolida pelo desespero. Uma outra, mais adulta, sopra sobre um pedaço de pedra, onde o serrim teima em não arder. «Tudo se há de arranjar, tem calma rapariga.» O fumo circula como uma cortina ofensiva, dá volta às paredes mascarradas de uma cozinha onde o mais belo fruto da vida está guardado, envolto num cobertorzinho macio. «Tem calma, rapariga. Tudo se há de arranjar. Essa criança terá um pai e uma mãe e tu terás uma vida pela frente.» «Como será isso?» «Confia em mim. Se vais para a França, deixa-a a comigo. Tudo se há de arranjar.» «Vossemecê o que fará com o menino? Cria-o por mim?» «Não te aflijas. Nosso Senhor pensa em tudo, ele há de ter pai, mãe e casa.»

– Ai, madrinha. Uma pessoa fica maluca. A Aninhas queria tanto que o marido livrasse o Torcato da tropa… Dinheiro não lhes falta, nunca faltou.

– Sabe Deus o quanto ele tentou.

– Olhe que não é o que se diz por aí…

– O povo o que sabe? O povo fala com peçonha, que é para isso que o povo serve.

– Oh, madrinha. Se ele quisesse… O moço ainda agora estava vivo!

– Cala-te, rapariga! Não sabes da missa a metade… O Pereira bem quis untar os beiços a muita gente, mas os do governo não deixaram…

A noite demorava. A velha retirava de outra bacia as folhas carnudas da troncha para as inspecionar. As palavras, via-se bem, saíam-lhe penosas, amaras, pesadas. O nariz, via-se bem, pingava. Os olhos, via-se bem, pareciam pedrinhas em brasa. Uma devastação nova caía ali, como um pesadelo renascido. Talvez dissesse à rapariga para meter um punhado de caruma e uma pinha na lareira e umas achas e um toro. Não se lembrava de uma tarde de julho assim tão fria.

Dentro da sua cozinha, apenas alumiada pelas duas bocas do fogão rudimentar, sentia-se fulminada por uma estranha traição. Vinham-lhe sempre à cabeça o aerograma, as esperanças do rapaz, as malditas quelíceras da guerra, os homens do governo que arrancavam filhos às famílias para os lançar na imensa África dos caixões numerados e chumbados. A velha, via-se bem, secava a amargura. Era preciso, em todo o caso, suportar a vontade de Nosso Senhor, fazer o caldo, sobreviver.

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O sapateiro

Shoemaker. Sapateiro.
Fotografia de Antonio Grambone

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O disco do esmeril continua a girar um bom bocado. É esse som que enche a oficina quando o velho a abandona por alguns instantes e vem para a mesa de pinho no pequeno átrio pregar as tachas. Lá dentro deixa tudo à mão de semear e de colher, a porta escancarada, a lampadazinha acesa, o garrafão de vinho posto entre as coisas frescas do chão.

Não há outra loja de sapateiro na aldeia, nem nas aldeias vizinhas. O velho Faustino goza do prestígio de todas os artesãos únicos, é o que faz, não se conhece da sua pessoa mais do que os gestos rápidos, decididos, vigorosos, com que cose as peles, cola ou substitui um tacão partido ou lixa e arranja as chancas dos lavradores. Toda a sua existência cabe neste casebre onde se encafua longas horas do dia, casebre no interior do qual se alinham meia dúzia de estantes carregadas de botas, sapatos, chinelos, galochas, calçado novo, velho, assim-assim, saído recentemente das suas mãos, não reclamado, esquecido, bonito, feio, elegante, miserável, consertado, sem conserto.

No verão põe uma pequena mesa de pinho à sombra de um cipreste e é aí que se queda, sentado num mocho, duas tachas presas aos lábios, as mãos trabalhando de cor na peça, sem a ajuda dos olhos que só de longe a longe voltam ao ofício, tão sôfregas estão ao movimento geral da ruinha e da praça em baixo e das outras ruinhas mais ao fundo. Dentro, a banca é caótica. Nela, além dos tornos e das serras, atropelam-se formas e formões, martelos e latas repletas de pequenos pregos, facas e tesouras, alicates e torqueses, sovelas e tiras de couro, rolos de linha, colas e pincéis, espátulas, lixas e toda uma horda de utensílios com puas, lâminas, cerdas e cabeças metálicas. O velho Faustino parece não dar pela sua presença, mas no momento certo sabe dar-lhes uso. Nunca com maior prazer do que quando acompanhado por algum outro velho, intrigado por alguma notícia, espevitado pelo lance dramático de uma coscuvilhice nova.

– Então, a tua mulher zangou-se com a irmã, Martins?

– Olha, Faustino. A minha cunhada é douda varrida. Ninguém a atura, nem o homem!

– Oh, que diabo. Não me digas…

O Martins dispõe-se a contar e o outro a ouvir, mas os dedos do sapateiro sentem um alto, avaliam uma desconformidade, determinam uma urgência. Lá precisa ele de reentrar na loja e de pedalar no rebolo. A pedra do esmeril principia a desbastar a língua de uma fivela, que o Faustino quer direita e no tamanho certo, não seja ela para umas sandálias em cabedal puro, de encomenda. As chispas e o ruído calam temporariamente o Martins, mas o sapateiro reaparece, o disco do esmeril continua a gemer uns instantes no escuro e a conversa é reatada.

– O Senhor nos dê juizinho até à hora da nossa morte, ó Faustino!

– Mas então?

– A minha cunhada de há uns meses para cá vem a minha casa todos os dias. Chateia. Pela-se por tudo, pede à minha Isabel um cabo de cebolas, um chapéu de palha, um vaso de manjericão, um casaco, um litro de azeite. É uma chorona, Faustino. Aborrece…

– A tua Isabel que a mande à bardamerda, Martins!

– A minha mulher tem a paciência de uma santa, mas a irmã azucrina. Deu, imagina tu, em querer-lhe uma panela…

– Uma panela?

As mãos habilidosas do sapateiro não querem acreditar que uma panela possa estar na origem de um cisma familiar. Interrompem-se com grande admiração, para logo de seguida procurarem uns desperdícios imundos que besuntam com graxa e correm no couro.

– Uma panela, das de cobre que tempos dependuradas lá na cozinha…

– A sua cunhada, desculpa-me ó Martins, é mas é apanhada!

– Tanto lha pediu que a Isabel perdeu a cabeça e agora não se falam.

A sapataria do Faustino fica numa ruinha de casas baixas, de alvenaria rústica. Não se pode dizer que a não visitem fregueses mais importados em aliviar os padecimentos da alma do que em cuidar das necessidades dos pés. Também, por isso, não se pode negar ao velho o talento de um confessor, ou de um médico, ou de um barbeiro.

– Mas ó homem, diz-me cá: o que fez a tua mulher? Deu ou não a panela à irmã?

– Não deu.

– Ai não?

– Deu-lhe foi uma desanca.

Fascina que de uns pedaços de pele, de umas tabuinhas de madeira, de umas aparas de latam nasçam umas alparcas tão bonitas. O Martins esteve para lho confessar, sabe que o mestre sapateiro é um daqueles homens raros que nos conquistam, mas empolga-o o resto da sua história, quer finalizar o que começou.

– Imagino, Martins. A Isabel deve ter-lhe dito das boas!

– Pois disse! Virou-se para ela, e não leves a mal as palavras, que são dela e não são minhas: olha, Lucinda, tu és uma pedincha. Se cobiçasses a piça dos homens como cobiças as minhas coisas, eras a mulher mais puta da freguesia!

O velho gargalha. O riso é, com o martelar e o chiar do esmeril, parte da casa, enche-a, às vezes transborda, ecoa no pátio, contorna o cedro, estruge nas paredes, faz levantar as cabeças. Todos sabem que o riso do Faustino é o prémio da sua arte. O riso – sem menosprezo pelas demais agudezas do espírito e das perícias manuais do homem – é um sinal de génio.

Muitas vezes, felizmente, do demónio também!

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Um explorador

Pierre Pellegrini
Fotografia de Pierre Pellegrini

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Durante a noite Emerenciano Castanheira voava. O corpo descobria-se livre e leve, abria os braços e punha-se a subir e a esvoaçar à volta da casa, cada vez mais depressa, cada vez mais alto, cada vez mais amplamente, em círculos, como um pássaro enlouquecido.

Era um sonho recorrente. Emerenciano via-se a encostar a escada de eucalipto à parede nascente, junto ao limoeiro, a trepar por ela até ao telhado, como se fosse limpar uma chaminé, e depois, empoleirado sobre uma das empenas, contemplado o casario ao redor, acontecia exatamente o que se disse atrás: Emerenciano batia os braços e voava.

A vertigem da ascensão compensava-a a vista: tudo tão pormenorizado, tão realista, tão coerente que não podia ser senão verdade: o defeito das telhas, a casota do cão lá em baixo, e o animalzinho com as patas de fora, os grandes postes de eletricidade com ninhos de cegonhas, a torre piramidal da igreja que afinal se parecia um quadrado cortado por um enorme X entre os ângulos, a copa dos grandes choupos e as veias averdiscadas dos arroios pelo meio da terra ocre, tudo coerente, realista, pormenorizado, até chegar ao branco das nuvens e aí se perder de susto, na confusão láctea do nevoeiro.

Quando despertava, Emerenciano Castanheiro sentia-se muito bem-disposto. Orgulhoso até. No final destes seus voos oníricos, a vida parecia-lhe outra, mais divina, mais sabedora de coisas indiscretas (nos sonhos, a sua visão de ave atingia amores clandestinos de mulheres casadas com moços da tropa, negócios proibidos de candongueiros de café e cigarros, roubos nos alambiques e nos lagares de azeite, até as lágrimas que as mulheres camponesas engoliam, quando triplamente vergadas pela condição de género, do trabalho, de mães pobres). Do alto apanha-se tudo e os braços valentes e os olhos acutilantes de que Emerenciano Castanheira dispunha eram armas nada despiciendas. Numa palavra, sentia-se um explorador.

Admitamos que um felizardo, também. Quantos de nós não gostaríamos de, no despudor dos sonhos, ampliada pela lente destes voos, termos da vida e da vizinhança uma visão tão certa?

Felizmente, Emerenciano era ajuizado e discretíssimo. As palavras precisam de um travão e ele sabia-o. O que à sua cabeça vinha na sua cabeça ficava. Era melhor assim. Muito melhor!

Quantos de nós não gostaríamos de um tal poder?

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Uma primavera

Kanenori
Fotografi de Kanenori

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Nesse ano a primavera manifestou-se muito cedo.

Em meados de dezembro, em vez do frio e da chuva, os aldeãos, veem as mimosas a amarelar e no mês seguinte já as magnólias vão despontando, tal como a flor das cerejeiras. Não chove e o sol atordoa as velhas, que se põem a namorar os pássaros debaixo das parreiras cobertas de glicínias.

– Isto é o fim do mundo! – repete aos saltos um doido sem eira nem beira.

Os anciãos benzem-se, os novos (se os houvesse) não se interessariam nem por estes, nem por aquele, tão pouco pelo cio precoce dos pardais que enchem os telhados. Em que pensam os novos nunca se saberá, sobretudo se os não há por perto.

Aqui tudo o que é longe não existe. Os benefícios da civilização pararam na eletricidade e na água que cai das torneiras. Antes era preciso andar de cântaro ao ombro e acender velas e candeeiros de petróleo. As modernas formas de escravidão ainda não chegaram aqui. Todos caminham de olhos levantados e falam diretamente pelo ar, de porta para porta, ou da rua para a janela, no meio dos campos, entre cancelos e taludes. Há somente um telefone, que toca uma ou duas vez por semana. Por ele mantém-se a aldeia informada das novidades de fora e os forasteiros inteirados da normalidade das coisas por cá.

Um pequeno arroio atravessa o amontoado de casas. Nos dias gélidos sobe por ele um vapor puríssimo formando uma cortina esbranquiçada, que durante a noite (acesa pela claridade da lua) se estende pela paisagem, penetrava as frinchas de xisto e se acerca das camas. Todos aqui estão acostumados a esta presença óssea.

– Isto é o fim do mundo! – repete, cheio de entusiasmo, o doido dos saltos.

Caminhando sem pressa, com a foicinha entalada na omoplata, um dos idosos transporta debaixo de um braço a erva para o gado. Outro põe carqueja sob a trempe para acender a lareira. Uma das senhoras, ainda com olhos jovens, tricota uma tira de lã grosseira (sabe Deus o que dali virá).

O silêncio envolve todas estas imagens. O silêncio é um manto poderoso. Se algum destes moradores geme, ou chora, ou fala em voz alta para que os ouvidos oiçam uma voz, não o escutam os outros. O silêncio esconde decerto o grande pensamento comum: este estranho fenómeno da primavera vinda tão fora de tempo.

Os perfumes do gelo e da lenha molhada (natalícios por direito próprio) não vieram. Em vezes deles, a paisagem cheira à tépida alegria de março, às mornas flores de abril.

– Isto é o fim do mundo! – há de repetir, ainda, o doido dos pulos.

Nós, que nada compreendemos de coisas raras e estranhas, diremos que o mundo está voltado do avesso. Nem o Paraíso escapa.

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Um novo dia

Fotografia de Robillard Laurent
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Na cama ouve a chuva a cair, às vezes tocada pelo vento com uma tal intensidade que o seu corpo, por instinto, adota a posição fetal. Depois adormece, sonha com um caminho enlameado em direção à escola primária, põe-se a conversar com velhos simpáticos que trabalham nos campos e lhe dizem adeus. Algo em si (mecânico e enigmático) confessa-lhe que naqueles rostos há somente agora um lastro enganador de vida. Mas de repente um som truculento, insistente, metálico, produzindo um efeito de vergasta (a campainha da escola, o despertador no telemóvel) faz desaparecer toda aquela paisagem antiga e bucólica, todos aqueles homens e mulheres dobrados sobre a sachola, todos aqueles estreitos por entre o mato e os giestais. Laura é sacudida, atirada para a realidade, exposta a um tempo duro, a um lugar inexoravelmente seu no mundo.

Levanta-se, empurra para trás o edredão e o lençol, abre a janela, fica um instante imóvel, de olhos fechados, como procurando despedir-se de si noutra existência, como procurando encontrar o melhor percurso de si até si mesma.

O cheiro de chuva principia a invadir o quarto, a expulsar o ambiente saturado de odores corporais. Apesar de fria, a aragem é agradável. Nestas ocasiões ocorre-lhe sempre a expressão «cheiro verde da chuva». Gosta da combinação das quatro palavras, do que nelas sobressai de sinestesia, de metáfora, de onomatopeia, de aliteração. Gosta de imaginar que é verde o cheiro da água precipitando-se sobre a terra, embebendo-a, fazendo-a germinar, cobrindo-a de musgos e de líquenes. Sobretudo em abril, especialmente quando os perfumes nascidos da noite são profusos, indescritíveis, capazes de entontecer.

Sempre essa mistura de ervas, flores, árvores, frutos, fungos, minerais lhe pareceu um cântico formidável de criaturas silenciosas, um hausto de primavera, um íman de poesia, chamemos-lhe petricoraldeiasaudadevida.

Mas é tudo muito rápido. Rapidamente os olhos reabrem, rapidamente a cor feia da manhã nascente e acelerada a obriga a menear-se. Tem de vestir-se, pentear-se, maquilhar-se, beber o café, sair. A magia não dura quase nada.

Nada é um bom termo. Sintetiza a ideia que sempre nos fica quando observamos as nossas memórias à luz imparcial da eternidade. Tudo é igual a nada, somos um punhado de coisa nenhuma. O nosso empenho, a nossa felicidade, o nosso sofrimento, a nossa morte não passam de um detalhe.

Nas curvas que a linha do metro descreve, pontualmente apertadas, obrigando a mão a segurar-se com firmeza no apoio, estas frases soam-lhe com particular dureza. Tudo é igual a nada. Somos um punhado de coisa nenhuma. A nossa grandeza é um pingo dessa chuva que resvala para as sarjetas imundas da cidade.

Laura sabe que as manhãs de abril, especialmente estas em que o sol não brilha, são enganadoras. Fazem subir uma espécie de nevoeiro que oculta os prédios mais altos. Deprimem. De resto, a sucessão de guarda-chuvas, gabardinas, botas, galochas coloridas enerva-a. Inversamente ao sonho, a viagem para o trabalho parece-lhe cruel, concreta, inescapável, como se fosse ela (e não os velhos da sua meninice) uma pessoa morta.

Quando as composições param e as portas se escancaram em simultâneo, Laura e dezenas de outros passageiros voltam a estugar o passo. Depois sobe no tapete rolante, esquecida já de todos os pensamentos anteriores, viva, sonâmbula, anestesiada, preparada para o novo dia, cheia de pressa, em rigor para lado nenhum.

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