Fósforos

Fotografia de Svetlin Yosifov

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O velho recolhia todos os paus de fósforo que podia encontrar. Primeiro julgaram-no um desses artesãos que constroem castelos e navios. Mas ninguém lhe viu vez alguma arte ou obra, e por isso com o tempo passaram a ver nele um doido.

Os pequenos paus ardidos dão uma impressão bela do que é a nossa vida e do que a nossa morte é. Alguns são facilmente decapitados, outros mantêm inteira a cabeça cínzea e o tronco chamuscado. Unidos uns aos outros com paciência e vagar, eles erguem paliçadas, pontes, jangadas entre o reino dos vivos e o reino dos mortos. São como poemas escritos para durar um instante de milagre e para sempre de tristeza. É preciso compreendê-los.

Em dezembro, quando os dias se apagam mais cedo, muito próximo do Natal, encontraram o velho morto em casa. Jazia estendido no chão, no interior de uma gaiola gigantesca, composta por milhares e milhares desses encantadores pedaços de madeira queimada. Era um pobre mausoléu.

Nele se guardava ou prendia o velho, ninguém até hoje foi capaz de decifrar de quê ou porquê.

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O diospireiro

Fotografia de Ernesto Scarponi

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Nessa Consoada não houve neve, apenas chuva e vento. À volta da lareira não foram postos os potes de ferro, nem se escutaram vozes concordantes, extasiadas e nostálgicas. A velha cozinha recebeu somente um hóspede. Viera para cumprir o voto: enquanto fosse vivo, ainda que por uma noite no ano, aquelas paredes sairiam da ténebra e do silêncio e seriam adoçadas pelo brasume e pela sombra cada vez mais tremelicante das suas mãos. Tinha esse dever.

Sobre a longa mesa de pinho abriu a garrafa, desembrulhou o jantar, sentiu o abandono garroteá-lo, mastigou sem gosto. Os talheres enferrujados da casa, a lareira mascarrada e mal desentupida, a ausência de cânticos, a falta do aroma da canela pareceram-lhe a parte significativa e incompreensível do seu destino. Era o último, tinha essa obrigação!

Estendeu ao comprido do soalho, paralelo ao lume, um saco-cama, deitou-se nele e ao cabo de muito tempo adormeceu. Quando horas mais tarde abriu as janelas, foi surpreendido pela luz lavada, veemente, puríssima da nova manhã. Havia rútilos e revérberos macios e dolorosos, que os olhos aceitavam e rechaçavam ao mesmo tempo.

Saiu então para o pátio, caminhou pelo horto, andou no meio das ervas e das árvores, seguindo os regatos e os trilhos da murta. O cheiro do verde era tão intenso que em mais do que uma ocasião se sentiu compelido a descer as pálpebras e a aspirar em longos haustos o que da terra invisivelmente se erguia. A dada altura parou a contemplar um diospireiro. Estava ainda carregado de frutos: velhos e encarquilhados dióspiros, repletos de bolor, iluminavam os ramos quase secos, dando-lhe uma cor de cobre e de fogo e uma feição amicíssima.

O homem espantou-se. Não podia entender como, ao invés de todos os outros em volta, aquele diospireiro não tivesse sido despojado pela intempérie ou pelos pássaros famintos. Comovia aquela visão do tempo miraculosamente adormecido. Com algum esforço de imaginação, o homem conseguiu ver o desenho e o amor das árvores incontáveis que nessa altura do ano as crianças decoram com enfeites, luzes e flocos de algodão. Sentiu então que não estava só, que nalguma parte deste ou do outro mundo o aconchegavam.

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O vendedor

Kharinova Uliana
Fotografia de Kharinova Uliana

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Era ali que ficava a casa. Câmaras de vigilância sugavam a toda a volta dela os latidos da rua e os sussurros da bisbilhotice. Nada escapava ao cuidado do vendedor. A mulher tocou à campainha. Vinha de longe. Aquele homem foi-lhe recomendado. Tocou mais vezes. Teve de esperar.

Por fim, um gordo com porte bovino abriu-lhe o portão. De seguida fê-la entrar no seu gabinete, observou-a com interesse, achou de imediato na sua magreza um modo de a consolar.

‒ Minha filha, tu estás muito doente…

A mulher contou tudo, chorou. Todos os obstáculos do mundo pareciam ter-se abatido sobre ela em simultâneo, vinha de longe, alguém lhe dissera que ele a podia ajudar.

Depois foi a vez de o gordo discorrer. A doente escutou palavras complicadas, que a tornavam alvo de uma conspiração de maus-olhados, sortilégios, vilezas sem fim. O gordo explicou que seriam precisas paciência, força de vontade e, sobretudo, a sua ação mediadora.  Não disse que o dinheiro tinha o poder de um antídoto. Disse que o poder das orações, das suas orações, junto com uma miscelânea de alecrim, incenso e terra de um cemitério conseguiriam curá-la.

‒ Entende ‒ disse ele num modo de advertência ‒ estas forças malignas são obra de um inimigo poderoso, de alguém que te deseja a morte!

A mulher, desfeita em lágrimas, aluída em cansaço e desilusão, não sabia bem o que entender, nem se a decisão de ter vindo havia sido realmente a melhor.

Desde o divórcio a sua sorte mudara. Mudara tanto que ainda não conseguira voltar a trabalhar e, por causa disso, já quase nada sabia dos amigos, que a evitavam por não lhe suportarem a melancolia atroz. A história atual resumia-se a uma luta contra a vontade de chorar e contra a falta de apetite, contra as cefaleias e contra a aversão provocada pela vida. Era pele e osso, um corpo vencido pelos nervos, pela nostalgia, pela astenia, pela insinuação tremenda do sono suicidário.

O gordo entalou os indicadores nas frontes da mulher e pôs-se a babujar palavras incompreensíveis. As pálpebras descerradas começaram a tremer, as palavras pareciam girar com os dedos num movimento de alarde, galgando as paredes, sumindo-se pelas frinchas como uma horda de demónios.

Depois, como acometido por choques elétricos, o principiou a estrebuchar, a soltar roncos temíveis, a barafustar consigo mesmo, como se se travasse uma batalha. O gordo sabia vender bem e com arte o seu espetáculo!

Exausta, com as frontes magoadas, a mulher queria só libertar-se, sair dali, daquilo, expulsar o maldito que a amarfanhava.

O gordo parecia agora sossegar, regressar a si. Pôs-se com as mãos juntas a orar. Por fim, persignou-se com uma lentidão teatral e olhou-a de novo com interesse untuoso. Era um vendedor. Tinha ali toda a uma gama de soluções abaixo do preço de mercado.

‒ Minha filha, precisamos de começar já, antes que o mal te engula!

Sem resistência, num torpor de carneiro sacrificial, a mulher doente limitou-se a dizer que sim.

«Todas as soluções se obtêm por caminhos tortuosos.» Não nos recordamos do autor desta frase.

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A credora

Andrei Nicolas - The Traveler
Fotografia de Andrei Nicolas

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Ela realmente não esperava aquele dinheiro.

Assim que o recontou, humedecendo bem os dedos para que as notas  corressem mais facilmente entre o indicador e o polegar, a credora fez com elas um rolo, envolveu-as com um elástico e guardou-as no antiquíssimo baú enferrujado, com motivos orientais. Era aí que acumulava as poupanças, antes de as aprisionar no banco ou de as trocar por peças de ouro. Quando viesse a noite, bem embrulhado num velho xaile, tornaria o baú ao esconso onde deveria permanecer intocado, até que a credora o abrisse e desse ao seu conteúdo o melhor caminho.

Ela estava satisfeita. Uma dívida difícil resgatada é sempre um motivo para acender uma vela. Encheu a cafeteirazinha com água, pô-la nas brasas e espreitou as imagens esverdeadas que dançavam no vidro do anacrónico aparelho de televisão.

A tarde viera mais fria. Novembro costuma arrefecer os nossos contentamentos. Um bom café e um pouco de geleia no pão consolariam a esta hora o autor destas palavras.

Bateram à porta. A credora sentiu as pancadas como uma contrariedade. Calçou os velhos sapatos de homem, cuja pele cortara para lhe dar aspeto de chinelos, passou a mão pelas cãs e foi ver quem era.

Houve um murmúrio, altear de vozes, uma altercação.

– Só me faltava essa. Vai mas é trabalhar, seu vadio!

A credora descalçou os chinelões improvisados, colocou os pés na pedra da lareira e esperou. Daí a tempo quase nenhum, com a estremunhada expressão de quem abreviara criminosamente a sesta, o marido entrou na cozinha. Quis saber:

– Quem era?

– Um pantomineiro qualquer, a pedir para comer…

– Deste-lhe alguma coisa?

– Dava-lhe com o cabo do engaço se o tivesse à mão!

O marido esboçou o gesto de quem acabava de ter um arrepio. Saiu. A credora tinha os olhos de novo no ecrã esverdeado. Na novela desenhava-se uma cena importante. Um dos doutores, um macaco, descompunha a pobre secretária negligente, que lhe interrompera o avanço amoroso com a nova diretora dos recursos humanos.

O marido regressou. Trazia nos braços um curto feixe de lenha. Desviou a cafeteirazinha e deitou sobre as brasas três pequenas achas, formando com elas um tripé. Depois soprou sobre os carvões incandescentes e quando destes deflagrou uma labaredazinha recolocou a minúscula cafeteira na área do calor.

Novembro anunciava o inverno. A chama sabia bem. O marido colocou as mãos em concha sobre o lume e esfregou-as.

A cena da descompostura acabara. Agora na televisão esverdeada (por causa do cinescópio quase fundido) ouvia-se uma conversa anódina entre padre e pecadora. Depois principiou o quarto de hora dos anúncios.

A credora olhou a lareira e viu a chama generosa lambendo a lenha. Levou instintivamente ambas as mãos à cabeça, num movimento de fúria e viva indignação.

– O que estás tu a fazer, meu grande macaco? Ai, meu Deus, meu Deus! Tu julgas que este chamiço veio de graça para casa?

A credora pôs-se de cócoras e tentou puxar as ripas para impedir que se consumissem tão depressa. Mas o fogo, áscua gulosa, queimou-lhe os dedos. A credora silvou, repleta de cólera.

– Ouve-me bem, meu pantomineiro desgraçado: seja a última vez, ouviste? Seja a última vez que pões lenha no lume sem a minha autorização. Ouviste-me? Ouviste-me bem?

A tremer, a credora destapou a cafeteirazinha e atirou-lhe uma colher de má chicória para tingir a água. Quem pensava ele que era. Desperdiçar lenha àquela hora da tarde, quando a casa ainda estava tão morninha!

Ele não abriu a boca. Viu o baú oxidado em cima da cristaleira. Precisavam de enchê-lo de novo. Ela tinha razão. No poupar estava o ganho. Sentiu vergonha. Não sabia o motivo exato, mas, sim, sentia uma grande vergonha.

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O homúnculo

crónica, carpinteiro, carpenter
Fotografia de Mahmoud Fayed

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Depois de bater o portão com estrondo, fá-lo todos os dias à mesma hora, o homúnculo põe-se a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio (mesmo ao fim de semana, especialmente ao domingo); a seguir demora-se a escolher as melhores tabuinhas para cortar com a serra elétrica.

Dá-lhe um grande prazer multiplicar o ruído, por causa dos vizinhos. Por via dele, usa as máquinas tanto tempo quanto possível, repetindo o som do corte, a que se segue o zumbido da lixadeira, o som da plaina e, finalmente, o som do compressor para a limpeza do cimento. Trabalha num barracão improvisado, que cercou de  malhasol e de uma serapilheira verde.

Adora trabalhar no patiozinho, com o seu barrete ridículo enfiado na cabeça e vir de quando em quando espiar a rua, porque se persuadiu de que o espiam.

As tabuinhas empilha-as num bidão de plástico. Ninguém lhe oferece grande coisa por elas, por isso também as não vende. Ocupa-se e pronto. Detesta os vizinhos e os vizinhos detestam-no. Mas pronto, é um artista!

Quando a mulher, farta dos seus ofícios facinorosos, solta um grito de ordem, o homúnculo para tudo, recolhe as tabuinhas e, quase choroso, vai ver o que se passa com ela.

– Desliga-me essa merda, seu maniáco!

Ele desliga. Deixa tudo limpinho e vazio. Recolhe a serapilheira verde, enrola a malhasol, guarda as máquinas, empurra o bidão e o compressor para o interior mofento da arrecadação, diz «Já vai, já vai», satisfeito com a sua quota-parte de ódio, feliz como um cachorrinho briguento, feio e inofensivo.

– Anda para dentro, seu maniáco!

Então, o homúnculo vai. Volta a abrir e a fechar com estrondo o portão da vivendazinha. Volta a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio. Está tão alegre consigo mesmo que, por instantes, se esquece de que na sua vida nada cabe de belo, sensível ou dignificante.

A mulher assoma a uma janela, exibindo um par de olhos coléricos, como quem faz um derradeiro aviso.

O homúnculo estuga o passo, sobe o curto lanço de escadas e sem um pio mais encafua-se debaixo da asa protetora. Silêncio total: nem pensar em falar alto, encarar ou desafiar a autoridade da casa! Só pensa nas suas tabuinhas empilhadas, polidas, envernizadas. É um artista. Ninguém oferece um tostão por elas ou por si. Mas pronto. A história da humanidade coleciona injustiças destas. O homúnculo já nem se importa.

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O senhor Nakata

Fotografia de Tatsuo Suzuki
para a Céu

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Na cidade de Quioto, no antiquíssimo bairro de Higashyama, numa das casas mais humildes e próximas do templo de Kyomizudera, vive o senhor Nakata.

É um artesão completo e legítimo. Os turistas gostariam de o tornar numa atração fotográfica, ao lado das maiko, dos tocadores de biwa e das casas de chá. Mas o senhor Nakata, como manda a boa tradição nipónica, gosta do silêncio e da sombra, prefere o seu trabalho livre de perguntas incómodas e do olhar indiscreto dos forasteiros.

A oficina fica nas traseiras da casa. Um pequeno caminho condu-lo todas as manhãs de uma à outra e devolve-o à noitinha ao ponto de partida. É uma viagem curta, mas suficiente.

O ar frio da neve ou o ar morno da primavera são-lhe igualmente maravilhosos. Os telhados recurvos do templo e a fronde rosada das cerejeiras ao fundo despertam-lhe o mesmo agradecimento, a mesma alegria que a água das fontes e o perfume do musgo.

O senhor Nakata descalça-se sempre que entra na oficina e permanece imóvel algum tempo, até que a visão se acostume à penumbra. Aproveita esses minutos para escrever poesia.

Escreve-a de memória, às vezes repetindo-a em monólogo, esforçando-se por usar a palavra certa no lugar certo. Além do trabalho manual e da poesia, é cultor da sopa de miso, dos banhos de água gelada, da filosofia wabi-sabi e da obediência samurai. Acredita que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior e que mil anos não chegariam para que se atinja a perfeição. Mil e um anos, sim!

Ninguém sabe a idade certa deste homem. Dito de outro modo, ninguém sabe quantos anos faltam para se sentir preparado para morrer.

O senhor Nakata exibe em todos os gestos paciência, labor, paixão. Depois de compor o seu poema (como quem apara uma folha de bonsai ou lhe extirpa uma erva do pequeno tronco), escolhe o papel, o couro, o molde e as linhas com que coser mais um caderno. Cose-os tão devagar como cose uns aos outros os três versos dos haikus.

Para quê apressar o amor se se pode morar nele e não noutro sítio?

Uma vez, depois da guerra, vieram dizer-lhe que o filho tinha sido encontrado morto num poço. O senhor Nakata manuseava a sovela à luz escassa de um gasómetro. Na sua mesa via-se uma coleção de tesouras, facas e réguas, carrinhos de linha, giz, pilhas de papel, tiras de couro de boi e de cordeiro. O cheiro das colas impregnava o espaço. Os visitantes afogueavam-se, dobravam-se numa mesura fúnebre, emocionados com a tragédia. Esperavam não matar o vizinho, já então velho e atingido por várias desgraças.

Sem se mexer, sem um esgar de surpresa, o senhor Nakata escutou a notícia. Aos poucos afastaram-se às arrecuas os que ali foram levar-lha.

O caderno que sustinha nas mãos era esmerado, impolutamente branco, cosido com precisão. Faltava-lhe o resguardo em pele com que deveria fechar-se. Era imperioso que o papel pudesse contar com essa capa de tecido animal para permanecer no tempo, para assegurar ao futuro proprietário o prazer máximo de uma escrita lenta e longeva. Aquele caderno não seria apenas mais um objeto, mas o objeto de que alguém jamais prescindiria.
Diriam «Foi este o caderno que Nakata cosia, quando lhe deram a notícia da morte do filho!»

O artesão prosseguiu com a sovela, abrindo um a um os equidistantes buracos da sua dor. Depois, até que a noite sobreviesse, tapá-los-ia com orgulho, como quem prende a si um destino ou uma missão na terra.

Hoje, os forasteiros ouvem falar dele e procuram-no embalde. Descrevem-no como se descreve a criatura principal de um mito. Dizem que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior.

Mil anos não chegarão para que atinja a perfeição. Desejá-lo em cada dia, isso sim.

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Desenho de criança

Marta Everest
Fotografia de Marta Everest

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A nossa filha multiplica os desenhos. Este agora vai para o frigorífico, trocando de lugar com um outro que ali expomos desde a semana passada. Reparaste no denodo com que fez crescer uma grande árvore quase azul? E as nuvens cor de laranja não são mesmo maravilhosas ao lado de um sol perfeitamente torto e espinhento como uma batata grelada?

É uma artista a nossa menina. Eu mesmo coloco o íman que há de segurar esta nostalgia do tempo vivido em tempo real para sempre. É um amor! Deitada na carpete, com os pezinhos a dar a dar, os lápis de cor atravancando a folha e esse amor pelas coisas que vão nascendo do nada: a casa de janelas acesas e fumo a erguer-se da tosca chaminé, as borboletas esvoaçando ao lado dum pai e duma mãe e dum anjo ao meio.

– Gostas, papá? Gostas, mamã?

E, depois, quando acabo de prender o desenho à parede metálica do frigorífico, sinto uma grande dor no peito e acordo.

– Este é o meu sonho, Sr. Doutor. Deus, que me quis para seu servo, envia-mo todas as noites há semanas… O que significará?

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