Ódio à mediocridade

Marco Gentini
Fotografia de Marco Gentini

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«Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.»
Pedro-Daniel Névio, Escoriações

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A casa do escritor ficava no subúrbio norte, numa área sossegada, a seguir a campos, entre curtos eucaliptais. Lembro-me do cheiro a limpo, do perfume da alfazema, da frescura da mobília, do odor dos sofás de cabedal. Lembro-me da porta aberta do escritório, das estantes escorrendo das paredes, escondendo-as, de um ou outro quadro de Kandinsky no intervalo dos livros, do adágio de Mozart, do violino de Itzhak Perlman, da meia sombra e da meia luz tapando o vaso das orquídeas e alumiando o formidável persa azul aos pés, no tapete, do ar muito quieto do seu corpo quando lhe anunciaram a minha visita.

O escritor concedeu-me uma entrevista, autografou-me sete dos seus livros, ofereceu-me um volume de poesia em edição limitada, corrigiu nele um verso terrível, teimoso, com caneta de feltro, abraçou-me no fim.

«Cuidado com a mediocridade. Odeie-a.»

Era quase noite quando regressei à cidade, ao centro, às banais lentejoulas dos meus comparsas no círculo intelectual. Na madrugada seguinte vim para a varanda queimar papéis. Fi-lo sem arrependimento. Voltaria a fazê-lo na minha vida. Repeti-me a repreensão de Horácio, «Inutilia truncat», que hoje é a minha divisa.

O escritor, agora que o leio dobradamente, póstumo, sem peias, é um génio. Não engaja frases ou versos, fá-los encontrar-se com leveza e com verdade. Não lhes disfarça o vazio com efeitos de pirotecnia, enche-os com amor. Dele escasso se diz, nada se escreve, pouquissimamente se indagou nesta década seguinte à sua morte.

Penso muitas vezes nesse encontro, nessa tarde de outubro, nessa literária mediocridade absurda que ao redor de nós se levanta como um circo, como um cerco, repleta de aplausos lorpas, provincianos, reles, serôdios, babujados, amacacados, odiosos.

Tanta razão, escritor!

Vêm dizer-me «Fulano publicou», «Sicrana vai publicar» e é um tédio. Bocejo por vislumbre, lendo já de roldão, à laia de adivinho, tantas páginas repletas de mais do mesmo, da mesma retórica (retoricazinha, vá lá) balofa, oca, medíocre, que enche cada vez mais escaparates de livrarias e estantes de bibliotecas. Bocejo de pensar que aí vem mais do mesmo, da mesma merda ociosa que pulula nos cantinhos de jornal, com estrelas, panegíricos, recomendações de leitura…

Horrível.

Por cá a malta distrai-se, distrai, facínora. Distraiu, distraiu-se sempre. Não há que fazer. Prefere cantar teias de aranha a ver paisagens, embora espreite pela mesma janela. É uma questão de «escala do olhar» como escreveu Fiama. E em terra de cegos, já se sabe…

Hoje acordei com saudades dos dias em que amava a literatura como uma religião. Sim, escritor, odeio a mediocridade. Deve ser isso o que terei de ensinar a quem me lê. Talvez seja uma questão de apostolado. Talvez tenha de pregar no deserto ou aos peixes. Sublinhei a lápis grosso «Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.» E é exatamente assim.

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O senhor Nakata

Fotografia de Tatsuo Suzuki
para a Céu

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Na cidade de Quioto, no antiquíssimo bairro de Higashyama, numa das casas mais humildes e próximas do templo de Kyomizudera, vive o senhor Nakata.

É um artesão completo e legítimo. Os turistas gostariam de o tornar numa atração fotográfica, ao lado das maiko, dos tocadores de biwa e das casas de chá. Mas o senhor Nakata, como manda a boa tradição nipónica, gosta do silêncio e da sombra, prefere o seu trabalho livre de perguntas incómodas e do olhar indiscreto dos forasteiros.

A oficina fica nas traseiras da casa. Um pequeno caminho condu-lo todas as manhãs de uma à outra e devolve-o à noitinha ao ponto de partida. É uma viagem curta, mas suficiente.

O ar frio da neve ou o ar morno da primavera são-lhe igualmente maravilhosos. Os telhados recurvos do templo e a fronde rosada das cerejeiras ao fundo despertam-lhe o mesmo agradecimento, a mesma alegria que a água das fontes e o perfume do musgo.

O senhor Nakata descalça-se sempre que entra na oficina e permanece imóvel algum tempo, até que a visão se acostume à penumbra. Aproveita esses minutos para escrever poesia.

Escreve-a de memória, às vezes repetindo-a em monólogo, esforçando-se por usar a palavra certa no lugar certo. Além do trabalho manual e da poesia, é cultor da sopa de miso, dos banhos de água gelada, da filosofia wabi-sabi e da obediência samurai. Acredita que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior e que mil anos não chegariam para que se atinja a perfeição. Mil e um anos, sim!

Ninguém sabe a idade certa deste homem. Dito de outro modo, ninguém sabe quantos anos faltam para se sentir preparado para morrer.

O senhor Nakata exibe em todos os gestos paciência, labor, paixão. Depois de compor o seu poema (como quem apara uma folha de bonsai ou lhe extirpa uma erva do pequeno tronco), escolhe o papel, o couro, o molde e as linhas com que coser mais um caderno. Cose-os tão devagar como cose uns aos outros os três versos dos haikus.

Para quê apressar o amor se se pode morar nele e não noutro sítio?

Uma vez, depois da guerra, vieram dizer-lhe que o filho tinha sido encontrado morto num poço. O senhor Nakata manuseava a sovela à luz escassa de um gasómetro. Na sua mesa via-se uma coleção de tesouras, facas e réguas, carrinhos de linha, giz, pilhas de papel, tiras de couro de boi e de cordeiro. O cheiro das colas impregnava o espaço. Os visitantes afogueavam-se, dobravam-se numa mesura fúnebre, emocionados com a tragédia. Esperavam não matar o vizinho, já então velho e atingido por várias desgraças.

Sem se mexer, sem um esgar de surpresa, o senhor Nakata escutou a notícia. Aos poucos afastaram-se às arrecuas os que ali foram levar-lha.

O caderno que sustinha nas mãos era esmerado, impolutamente branco, cosido com precisão. Faltava-lhe o resguardo em pele com que deveria fechar-se. Era imperioso que o papel pudesse contar com essa capa de tecido animal para permanecer no tempo, para assegurar ao futuro proprietário o prazer máximo de uma escrita lenta e longeva. Aquele caderno não seria apenas mais um objeto, mas o objeto de que alguém jamais prescindiria.
Diriam «Foi este o caderno que Nakata cosia, quando lhe deram a notícia da morte do filho!»

O artesão prosseguiu com a sovela, abrindo um a um os equidistantes buracos da sua dor. Depois, até que a noite sobreviesse, tapá-los-ia com orgulho, como quem prende a si um destino ou uma missão na terra.

Hoje, os forasteiros ouvem falar dele e procuram-no embalde. Descrevem-no como se descreve a criatura principal de um mito. Dizem que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior.

Mil anos não chegarão para que atinja a perfeição. Desejá-lo em cada dia, isso sim.

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Crónica dos dias comuns

Paulo Abrantes
Fotografia de Paulo Abrantes

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A viagem demora três quartos de hora.

É muitas vezes a distância entre mim e eu. Ao fim de meses, a última afirmação parece-se extraordinariamente verdadeira: duas vezes três quartos de por dia multiplicadas por muitos dias é uma soma impressionante de pensamentos, de constatações, de memórias, de tomadas de decisão, além do asfalto, do combustível, das portagens, dos monólogos, dos programas de rádio, das conversas ao telemóvel, das árvores a despir-se, despidas, vestindo-se novamente, dos bandos de pássaros voando numa alucinação de cardume, dos arco-íris e mosquitos esmagados no vidro dianteiro, das ultrapassagens assassinas dos camiões TIR, dos condutores esburacando as fossas nasais com os dedos mindinho e indicador.

A viagem nem sempre é boa. Muitas vezes cansa, cansa mais agora,  exaspera, os olhos ardem, a rota faz bocejar, leva-me ao vazio e dele me leva de volta a casa. Muitas vezes é assim. É um sonho, uma dormência. Abro as janelas, a da esquerda primeiro, a da direita depois, mesmo se lá fora está frio, especialmente se está muito frio. Preciso de me ventilar, de ser açoitado pelo ruído e pelo ar denso, de acordar.

A pior parte da viagem é esta que nos faz tergiversar a vida, como se a viagem não fizesse parte dela e tudo não passasse de um efeito de redoma. A vida pede-nos, aliás propõe-nos, aliás exige-nos uma grande dose de ousadia.

Enquanto o conta-quilómetros vai substituindo números, sorrio em segredo para dentro de mim. E lá estou eu, a gostar outra vez de Antropologia Cultural, a estudar os povos africanos e as tribos da Polinésia, a sonhar com viagens de comboio pelas estepes asiáticas e a fotografar aldeias da Mongólia, da China e do Turmenequistão. Tenho a mochila inchada de cadernos e os rolos da máquina fotográfica repletos de rostos desdentados, lareiras ardendo em casas de terracota e estranhos e curiosos animais parecidos com os nossos animais domésticos mas diferentes dos nossos bichos de estimação. Sou eu sem lamentos ou evasivas, escrevo crónicas de viagens a sério, publico livros que ensinam o quanto o mundo é pequeno visto de dentro e sinto-me puro e veemente, cheio de frases que soam como soam as teclas da máquina de escrever.

Este devaneio volta amiúde. Volta sobretudo em determinados dias da semana e a certa altura no percurso, quando o dia rompe da massa escura das montanhas do Marão. Primeiro o horizonte é só uma película rosada, atravessada pelo fumo translúcido dos aviões («Lá em cima os aviões com o seu rasto aceso parecem caracóis segregando uma baba luminosa» escrevi num conto d’ O Moscardo), depois surge o clarão, o arrebol, a luz de lume do sol. Dura uns segundos apenas, mas a imagem fica e acorda outras imagens acamadas na minha memória. A explosão torna nítidos pormenores que me acompanham durante o dia, mostra o girar das torres eólicas ao longe, os mantos de nevoeiro e de fumo sobre os povoados, a cintilação dos metais e dos vidros em mil casas que alcanço num abrir e fechar de olhos, uma curva da autoestrada além, subindo, reaparecendo, brilhando, para logo desaparecer de novo entre campos e montes.

Sonho comigo num qualquer festival de música eletrónica progressiva (de Oleg Byonic, de Lukas Termena, de Armin van Buuren), num terraço de Nova Iorque a fotografar o Hudson, ou nas escarpas da Irlanda e nos fiordes da Noruega a sentir-me íntimo das paisagens maravilhosas. Sonho comigo passeando nos jardins de Quito, entre as colunas de Tebas, sobre as ruínas do Peru. Volto a emocionar-me com a adolescência rigorosa das aulas de Filosofia e de Jornalismo, disciplinas a que obtive classificações históricas, e por via delas sonho comigo filosofando e noticiando em Alexandria, em Cambridge, em Istambul, em Toronto, em todas as bibliotecas, museus e universidades importantes do mundo.

Sobre mim relampeja o azul das placas sinalizadoras.

Sem dar por ela, aproximo-me do destino, o carro desacelera, avança sem pressa, também ele enfastiado, esgotado, saturado do ramerrame, aquecido pelo esforço dos pneus, cheirando às vezes a uma combustão suja (como se alguma vez pudesse ser limpa) de gasóleo e de travões.  Quando me apeio, sinto um emperramento terrível, uma preguiça de morte, um desapontamento. O desapontamento cresce se se depara com outro rosto desapontado no brilho espelhante da carroçaria. É uma solidão de dois rostos que sendo um são dois rostos reciprocamente desiludidos, um desamparo. Às vezes receio cambalear. Talvez cambaleie, dorido, sem força, pronto para o que der e vier. Nem tenho tempo para perguntar. Se tivesse perguntá-lo-ia talvez. Embora não o jure o aqui. Talvez. Apenas talvez.

Que viagem foi esta que eu fiz?

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Coisas tão perfeitas

balcony, varanda
Fotografia de Marc Huybrighs

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Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. Devo dizer que nunca vi uma cascata assim, é uma metáfora, pelo que a expressão é meio absurda. Mas também nunca a roupa me pareceu faiscar tanto como esta que vai batendo no lado de fora da parede, produzindo às vezes um ruído mais forte, que, junto com a luz, a torna viva e bela.

Empurra-a uma corrente amornada, de brisa para vento, já de mistura com a fragrância de certas flores e plantas de fim de inverno. A roupa cheira maravilhosamente a sabão marselha, e esse perfume enovelado no primeiro entra-me pela janela como um saltitão inesperado e faz-me sorrir. Sorrio muitas vezes a coisas destas género, a episódios (digamos) de importância nenhuma a que tendo amar mais do que às coisas de importância capital.

Desde que se acorda anda-se à volta de meia dúzia destas ninharias para com elas atar um poema. Infelizmente, o peso das prioridades, a sombra delas, o zumbido das suas horríveis asas frenéticas impede-nos de chegar ao âmago das imagens e dos sons, das palavras que se procuram.

Uma pessoa lida épica e estoicamente, silenciosamente, com problemas deste jaez. A chávena do café secou, o caderno com as rasuras lembra uma confusão de fios telefónicos, a caneta tapada e destapada é um homem que não sabe se é capaz ainda de amar a sua mulher. O proveito é escasso, a mesa é o palco de um drama anónimo (nada anódino), os papéis amarrotados fazem doer as mãos, e mais que elas os pulsos, e mais que os pulsos os olhos.

Nessas alturas apetece o disparate.

Por isso, abre-se uma janela e fica-se a espantar. Os clarões descem até nós pelo telhado, saltitam e gorjeiam pelo meio dos algerozes, ondulam no estendal, acendem o mármore do parapeito, cintilam nos vidros distantes, correm no céu à velocidade das nuvens. Ou então, folheiam connosco o livro antigo que não paramos de visitar, renascem nas antigas estrofes sublinhadas a lápis, explodem na coda de um canto que o autor escreveu para um filme. Os clarões são castos, sensíveis, exatos, difíceis de tão precisos que são.

O poema dentro de nós volta a dar sinal de si. É como um tremor de terra. Um pequeno sismo para que saibamos que a água continua a jorrar, ouro freático debaixo de dolorosas camadas de pedra.

Tira-se outro café da máquina. Abre-se um caderno novo. Experimenta-se outro aparo, outra tinta, outras sílabas viscerais. Sob a mão protetora do livro visitado, escavamos o nosso próprio sulco no silêncio. A manhã vibra de viva, é imprescindível que o poema à sua maneira o diga, o implique, o conquiste. Devo notar que a catarse é perfeita.

Assim o escrevi. 

COISAS TÃO PERFEITAS

a bigorna de Amakuni,
os movimentos de Má Vlast,

as formas híbridas, paradoxais, engenhosas de Maurits Cornelis Escher

a varanda, o impossível,
bardana, aspargo, alecrim, calêndulas,
como se pudesse cada manhã persegui-lo melhor ou pela primeira vez

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Estamos quase, filho!

family day
Fotografia de Samanta

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Daqui tenho da cidade uma visão ótima: ao mesmo observo-lhe os céus, as torres das igrejas, os telhados, as águas-furtadas, as luzes de conjunto (as que emanam das lâmpadas dos semáforos e das montras, dos campanários e dos holofotes dos grandes edifícios do Estado, dos faróis dos carros e dos postes elétricos); e observo-lhe os becos, a pacatez de uma ou duas travessas mais próximas e mais escondidas, a escuridão que cai sobre o pavimento e sobre as acácias, os lanços de escadas que compõem os labirintos (como num desenho de Escher) e por onde sobem e descem, assim sucede agora mesmo, mães com filhos ao colo.

Os meus olhos voam para esta ternura. No empedrado ecoam as solas de uns botins e a mulher de sobretudo preto que os calça aperta mais o cobertor que envolve a sua criança.

– Estamos quase a chegar, filho!

Novembro está prestes a terminar e é este vapor. Mal o sol se põe, ele cresce dos canaletes e avança até à soleira das portas, engolindo os gatos e os tapetes de rua, fazendo mais misteriosa a aparência das esquinas seguinte e anterior, tornando extraordinário o gesto de rodar a chave na ranhura e de entrar em casa.

– Já estamos, filho! Já cá estamos!

Daqui é-me mais saudosa a alegria das horas nos sinos. Tocam as Trindades, repenica-se o som, que começa a lembrar o Natal. No colo da mãe, a criança aconchegada, protegida, acalentada, vê e escuta e sente a mutação destes dias de quase inverno que o são já. Ainda há instantes o fascinavam o efeito de neve nos vidro da loja de brinquedos, o vivo das cores misturadas nas butiques e retrosarias (dourados e vermelhos, o azul de um estrela no cocuruto de um pinheiro, os prateados e alaranjados e verdes, as fitas e laços e pais natais e presépios que surgem nos recantos), os néones nos mercadinhos de bacalhau e nas pastelarias. Tudo mais belo, porque contrastante com o húmido dos passeios e o bafo esforçado das bocas silenciosas.

– O Menino Jesus está quase a nascer, sabes?

Há, apesar da soturnidade do frio, algo que faz encontrar os transeuntes consigo mesmos. A criança, bem embrulhada, gosta desta sensação que principia a reconhecer, mesmo não a compreendendo.

– E ele vai trazer-te uma prendinha!

Se não estivesse tão rouco, se não lhe doesse tanto a garganta, se lhe não soubesse tão bem esse cómodo abraço da mãe, esse silêncio entrecortado por frases repletas de feerismo, talvez lhe perguntasse «O quê?», «O que me vai trazer o Menino Jesus?». Mas hoje só lhe apetece chegar a casa, sair do espaço fumegante e gélido onde os passos da mãe soam expostos e desamparados. Hoje só quer encontrar as boas paredes de sua casa, dentro das quais se sentirá seguro e segura a mulher que o trouxe ao mundo.

É tarde. Novembro está no fim. Daqui vê-se tudo. As imagens surgem duplicadas, como num filme, como numa história que corresse somente nas retinas próprias. Tenho, por isso, de guardá-lo para mim. Nem podia ser de outro modo!

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O orador

Fotografia de Raphael Guarino

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O Orador dispôs um olhar exortativo sobre a assistência. A preleção corria-lhe bem, aqui e ali (notava-o agora) talvez alegórica demais. Para o dissimular, o Orador servia-se de um tom mais crispado, acusando os adversários de todo o género de manigâncias. Vieram as palmas. Alguns que tinham os maxilares rigidamente presos à boca para não serem vistos a bocejar, puderam soltar «Bravo» e «Apoiado».

Falou durante uma hora e cinco minutos. No final, elevando o tom, como quem dá o remate final numa pintura muito rebuscada, olhou a plateia e quase gritou:

– Assim, ilustres companheiros, amigos, correligionários, o Partido deverá constituir-se como um exemplo inatacável, lembrando a sua matriz fundadora e os seus líderes do passado. Somos o partido das grandes reformas e nunca nos coibiremos de ostentar na lapela a vitalidade do que criámos, nem o desejo de refundar a nação e de lhe impor as mudanças inadiáveis! Não permitiremos que a causa pública se veja coartada por irrisórios expedientes, negligenciada ou impedida por esta oposição incompetente, acéfala, por esta oposição acrítica, populista e demagógica! Somos nós, nós, este partido, quem tem o ónus da responsabilidade! Não nos demitiremos do nosso lugar de charneira! Em cada aldeia, vila ou cidade faremos chegar o progresso das nossas ideias e faremos que o bom povo compreenda a nossa visão! Tenho dito!

Seguiu-se o ribombo das palmas. Alguns, que dormitavam, começaram por instinto a aplaudir. Aplaudiam com força, com frenesi, com devoção.

O Orador recebeu abraços apertados de consideração, elogios cochichados dos membros da mesa, apertos solenes de mão. Liam-se nos lábios expressões encomiásticas, «Muito bem!», «Honra-nos!», «Parabéns»! Era um homem conspícuo, falara brilhantemente. A grande sala, unânime e rouca, era o sopro guardado de uma bolha de sabão. Unânime e rouca, elástica, crescia na ovação.

O Orador sentou-se no lugar que ocupara antes. Vários colegas levantaram-se em volta para o virem saudar, para lhe exprimirem a admiração e ele, notavelmente contido, sorrindo apenas, recebia e agradecia comovido.

Outro orador subiu ao palanque. Outros se lhe seguiram. Mas nenhum orador era o Orador. O soberbo homem esgotara o filão da melhor retórica. Quando, horas mais tarde, o presidente da mesa declarou encerrados os trabalhos por esse dia, era ainda a intervenção do Orador a que prendia as atenções.

Ninguém duvida da importância deste tipo de acontecimento, nem da profundidade intelectual dos palestrantes. Costuma discutir-se sobre a distribuição de cargos, sobre o modo mais eficiente de criar falanges de apoio, sobre vendetas e punição de dissidentes. Também se fala do futuro do país. Sobretudo do passado do país. A res publica atrai centenas de congressistas que não arriscam nunca mostrar-se descontentes ou cansados. Convém ser cortês com quem tem poder, pese o poder pertencer ao povo. Simplesmente o povo é vasto e abstrato. O melhor é ser cortês com pessoas como o Orador.

Logo que as luzes se sumiram na grande sala, os grupos desfizeram-se e o Orador, retardando-se em colóquios fraternais com um companheiro veterano e outros nem tanto, pôde sentir no jardim anexo o aroma das laranjeiras em flor. Ia comentando ainda coisas sérias, sublinhando ainda a linha de orientação do Partido. Um coro de cabeças anuía. Era exatamente assim. O Orador adivinhara-lhes na cabeça o pensamento. Como podiam eles não concordar?

Era uma noite belíssima. Quando, por fim, se introduziu no carro e se dispôs a regressar ao hotel sentiu-se um tanto só. Verificou no relógio: eram quase três horas. No céu erguia-se o silêncio, um infinito recamado de estrelas e poeira de galáxias. O Orador recordou-se do avô, que costumava ensinar-lhe o nome das constelações e lhe narrava as façanhas dos argonautas.

O ar limpo passava-lhe por entre os dedos e pelas narinas. O volante era tão leve como uma pena. O Orador sentia-se mergulhar num alçapão misterioso. Uma vozinha vinda de nenhures reclamava a sua atenção. Quase sentiu saudades dos campos, das noites da infância, do velho que lhe fazia papas de abóbora. Essa flamazinha aguda doía.

‒ Que porra! – resmungou o Orador.

Ligou o rádio. As notícias acalmaram-no. Falavam do congresso, do Partido, de si. Todos aquiesciam. Repetia-se o aviso, «irrisórios expedientes», o «calcanhar de Aquiles», nada podia perturbar as grandes reformas em curso. Pedia-as o país. O Orador penetrou na noite. Mal-humorado. Terrivelmente…

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Romão

Dr. Mimi
Fotografia de Dr. Mimi

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Foste a única pessoa que conheci até hoje que não matou um único animal. Exceto talvez os piolhos, se os tiveste alguma vez. Exceto talvez as lombrigas… Foste a primeira pessoa a recusar, numa célebre vindimada, a cabidela da minha avó e a provocar o caos nos grandes potes de ferro, onde a galinha acabava de cozer sob a vigilância de minhas tias e progenitora.

‒ Ó minha mãe, o que é que o homem vai comer?

‒ Eu sei lá o que é que ele vai comer! Olha, come um caldo de coibes!

Cheiravas a sabão clarim (nunca me lembro da feição das pessoas, mas dos cheiros sim – fica-me deles a fotografia penetrante e inesquecível): a camisa de linho arregaçada nas mangas, as calças com suspensórios, as socas de grandes tachas douradas nos pés, a navalha nas mãos e o perfume do sabão (será sempre o melhor de todos), como se nenhuma mácula pudesse tocar-te.

Vejo-te ainda, velho amigo, sentado na mesma tampa de cimento do poço, os cães aninhados entre as tuas pernas, os pássaros a comer-te das mãos (bicando por entre os dedos grossos e cheios de cicatrizes), os pintos amimalhados seguindo-te no quintal, a abelha amestrada que exibias com gosto mas sem vaidade. Vejo-te ainda na mesma posição, quieto e profundo, como um apóstolo fora do tempo.

‒ Isto aqui é uma paz… Assim que debe ser…

Porque aquilo ali, a casa do avô, tinha o seu quê de pacífico, entre eucaliptos e carvalhos, caminhitos de terra batida, tanques e regos de água, ervas e nastúrcios, um cento de plantas de todas as formas e aromas… Aquilo ali era uma paz. Vinham os andorinhões e as magníficas pegas-rabudas… Vinham os ouriços-cacheiros e às vezes a raposa… Vinham os soberbos torvelinhos de ar puro dos campos, das magnólias e árvores de fruto de ao redor da casa.

Mas era com a bicharada que te entendias melhor.

Era com ela que partilhavas a alegria do verbo durar. E os bichos pareciam compreender-te, procurar-te, querer-te. Os gatos preferiam o teu colo. Os pardais respondiam aos teus assobios. As borboletas vinham poisar-te na nuca. As pombas gingando o pescoço pareciam dançar para ti. Vejo-te, ainda, sorrindo e fechando os olhos, como um franciscano fora do tempo, enternecido e um pouco doido.

Uma vez vi-te a ajudar um louva-a-deus a pular a parede até à esquadria da janela e a convidá-lo a ir.

‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…

E o louva-a-deus, como iria um aranhiço, uma formiga ou uma mosca enjaulada, foi.

‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…

Lá, em casa do avô (onde, tocados pelas recentes modas francesas, subíamos escaleiras no lugar das escadas e nos deliciávamos com a chofagem, que ventilador era coisa que não se dizia), todos te julgávamos c’est fou, um c’est fou adorável, adorável e raro, por causa daquela coisa nas minas.

– Trabalhei acajo quinze anos nas minas de Llombera, em Espanha. Aquilo era duro… quinhentos metros abaixo do chão, ou mais …

Andava já na escola. Quinhentos metros eram dez vezes seguidas o nosso recreio. E sempre para baixo, como num abismo.

‒ Nem as mulas queriam ir… Bem lhe punham bendas nos olhos, mas as coitadas já sabiam pró que iam… Punham-se a dar pinotes…

‒ Ó Sinhor Romão, e as mulas iam lá pra baixo porquê?

‒ Atão? Para ajudar nos bagões…

Não há quem resista a uma boa história contada na primeira, nem a uma boa crónica revista na terceira pessoa. Nós éramos olhos e ouvidos e um nariz. Um bando de miúdos esquecidos das mãos, das fisgas e das caixas de fósforos, caçando imaginariamente o breu e os sons que subiam da terra, aonde tu te entranhavas doze horas por dia, de picareta em punho.

– Depois sucedeu o que tinha de suceder.

– O que sucedeu?

– A explosão.

– Qual explosão?

– Foi um arrebentamento… Um morreu logo. Outro morreu depois. Eu fiquei todo desfeitinho, as tripas bieram cá para fora, mas escapei… Para dizer a berdade, não sei como escapei!… Tiberam de as pôr num lençol. E cum elas assim postas à minha beira fui parar ao hospital… Depois disso nunca mais trabalhei…

Imagino agora, à distância limpa em que os factos se veem melhor, o relâmpago ensurdecedor, o sismo nas galerias do inferno (tábuas esfarrapadas, o elevador avariado, o urro das alimárias), o cadáver e os corpos esfacelados, o sangue espirrado nos filões do minério, o pânico nos olhos imersos em escuridão, em suor e em cansaço, tu levado numa ambulância anacrónica, desde as montanhas até Madrid, moribundo, com as vísceras ensacadas num lençol arranjado à pressa.

Foste a única pessoa que sabia já em miúdo ser uma pessoa única. E eu respirava o cheiro do sabão, sem poder compreender que aquela tua serena brancura ao sol (a navalha nas mãos, as socas de grandes tachas douradas nos pés, as calças com suspensórios, a camisa de linho arregaçada nas mangas, em cima da tampa do poço) pudesse alguma vez ter sido conspurcada pelo horror de uma noite tamanha.

Escrevo para ti, Romão, com saudade. Cada vez mais preso a esse maravilhoso arquipélago formado pelas memórias, intocado e intocável, onde sobressaem rostos e nomes e façanhas. Talvez por compreender cada vez menos este oceano desprezível de dias informes e sem fundo. Tu eras soberbo (um c’est fou) e eu devia-te, devo-te há muito, este texto. Se em algum lado estiveres, um abraço, o meu abraço, velho amigo!

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