O caminho de uma catedral é a passagem drástica do exterior para a sombra e depois, paulatina, a passagem da penumbra para a luz, a admirável presença do silêncio nas imagens que passamos a ver e antes não víamos por excesso de ruído. é conhecida a minha preferência pela arquitetura gótica, o meu fascínio pelo rigor geométrico absoluto, pelo deus que nelas desenhou, cortou, esculpiu, ergueu a pedra e o vidro, o metal e o próprio ar, o meu amor pela linguagem secreta das junções entre o cosmos e o corpo.
Assim que transpomos o pórtico e caminhamos pela nave lateral à esquerda, os séculos atropelam-se. primeiro, uma inscrição em inglês e latim, a lembrar o milhão de mortos do império britânico na primeira grande guerra (muitos dos quais, lê-se, jazem em território belga). depois, o colorido hagiográfico dos vitrais. por exemplo, este onde os meus olhos agora se detêm, retratando o colóquio de um monge e um secular, mesteiral, burgomestre, quem sabe, com molho de chaves na mão. mas é noutro plano, mais distante, em fundo, que me surpreende o cenário. genufletindo, um outro homem (ou mulher com vestes de homem) recebe o chamamento. o pintor fê-lo admiravelmente, fazendo descer sobre o seu rosto o traço amarelo, vivo, oblíquo (agora mais iluminado pelo fulgor da manhã de agosto) da revelação.
Fotografia de arquivo pessoal (2019)
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Percorremos o transepto, tocamos a estátua dourada do arcanjo Miguel, carregando sobre o demónio (um crocodilo, de boca aberta e dentuça ameaçadora), depois a abside, a nave oposta. aí, para lá da galilé, os crentes celebram uma missa. contemplamos o órgão e o púlpito, trabalhadíssimo, de madeira negra, formidável. acendemos a nossa vela, rumorejada com palavras de amor e petição.
Nunca sei o que sentir nestes lugares. e, no entanto, os pormenores regressam, como nós regressámos nesse dia ao coração da cidade. às vezes na luz impura, vejo-os como recortes nítidos e nostálgicos e medito sobre o seu significado.
Qualquer que ele seja, é pessoal. creio que o caminho de uma catedral é esse.
Chegámos à cidade ao início da tarde. depois de nos apearmos do autocarro, avançámos por uma espécie de pista de tartã em direção ao centro. havia um casal de russos, havia de minuto a minuto o som espaçado de uma bicicleta (todo o ruído ali, aliás), havia a memória fixa de Amesterdão, dos subúrbios húmidos onde crescem álamos e nevoeiro, do Vondelpark pejado de corvos e estrangeiros, dos quadros de Brueghel reproduzidos em calendários de bolso.
Sempre gostei de lugares onde se chega a pé aos lugares, onde as árvores e a poesia crescem juntas na mesma água e na mesma terra, digo, na mesma luz, onde o silêncio é tão limpo quanto o chão e o vidro das janelas.
Entrámos em Bruges por uma grande praça ladeada de casas antigas, hotéis, um curioso edifício feito de grandes tubos verticais por onde o vento ecoa, exportando um som indefinivelmente musical e alienígena. traçámos a nossa rota anárquica, observando as grandes cúpulas das igrejas e os nichos dos santos, fotografando o nome das ruas e as singulares numerações pintadas nas paredes de tijolo, apontando mentalmente pormenores (a rapariga das tranças a transportar os manuais escolares novos, o leão flamengo a dançar na bandeira amarela sobre os telhados, as extravagâncias de chocolate nesta e naquela vidraças).
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Caminhámos em meia lua, depois em reta, por cima de ladrilhos artísticos, através de uma pontezinha, nas traseiras de uma catedral, lado a lado com os barcos repletos de turistas.
Sobre um canal dois octogenários de mão dada abraçaram-se, depois deram um beijo. vimos sorrisos trocistas, ouviram-se exclamações em pelo menos três línguas. a tarde pareceu-nos uma cortina dourada caindo sobre os jardins. julgo que terei dito algo a propósito de Bruges ser uma dessas cidades onde gostaria de viver.
Era ali que ficava a casa. Câmaras de vigilância sugavam a toda a volta dela os latidos da rua e os sussurros da bisbilhotice. Nada escapava ao cuidado do vendedor. A mulher tocou à campainha. Vinha de longe. Aquele homem foi-lhe recomendado. Tocou mais vezes. Teve de esperar.
Por fim, um gordo com porte bovino abriu-lhe o portão. De seguida fê-la entrar no seu gabinete, observou-a com interesse, achou de imediato na sua magreza um modo de a consolar.
‒ Minha filha, tu estás muito doente…
A mulher contou tudo, chorou. Todos os obstáculos do mundo pareciam ter-se abatido sobre ela em simultâneo, vinha de longe, alguém lhe dissera que ele a podia ajudar.
Depois foi a vez de o gordo discorrer. A doente escutou palavras complicadas, que a tornavam alvo de uma conspiração de maus-olhados, sortilégios, vilezas sem fim. O gordo explicou que seriam precisas paciência, força de vontade e, sobretudo, a sua ação mediadora. Não disse que o dinheiro tinha o poder de um antídoto. Disse que o poder das orações, das suas orações, junto com uma miscelânea de alecrim, incenso e terra de um cemitério conseguiriam curá-la.
‒ Entende ‒ disse ele num modo de advertência ‒ estas forças malignas são obra de um inimigo poderoso, de alguém que te deseja a morte!
A mulher, desfeita em lágrimas, aluída em cansaço e desilusão, não sabia bem o que entender, nem se a decisão de ter vindo havia sido realmente a melhor.
Desde o divórcio a sua sorte mudara. Mudara tanto que ainda não conseguira voltar a trabalhar e, por causa disso, já quase nada sabia dos amigos, que a evitavam por não lhe suportarem a melancolia atroz. A história atual resumia-se a uma luta contra a vontade de chorar e contra a falta de apetite, contra as cefaleias e contra a aversão provocada pela vida. Era pele e osso, um corpo vencido pelos nervos, pela nostalgia, pela astenia, pela insinuação tremenda do sono suicidário.
O gordo entalou os indicadores nas frontes da mulher e pôs-se a babujar palavras incompreensíveis. As pálpebras descerradas começaram a tremer, as palavras pareciam girar com os dedos num movimento de alarde, galgando as paredes, sumindo-se pelas frinchas como uma horda de demónios.
Depois, como acometido por choques elétricos, o principiou a estrebuchar, a soltar roncos temíveis, a barafustar consigo mesmo, como se se travasse uma batalha. O gordo sabia vender bem e com arte o seu espetáculo!
Exausta, com as frontes magoadas, a mulher queria só libertar-se, sair dali, daquilo, expulsar o maldito que a amarfanhava.
O gordo parecia agora sossegar, regressar a si. Pôs-se com as mãos juntas a orar. Por fim, persignou-se com uma lentidão teatral e olhou-a de novo com interesse untuoso. Era um vendedor. Tinha ali toda a uma gama de soluções abaixo do preço de mercado.
‒ Minha filha, precisamos de começar já, antes que o mal te engula!
Sem resistência, num torpor de carneiro sacrificial, a mulher doente limitou-se a dizer que sim.
«Todas as soluções se obtêm por caminhos tortuosos.» Não nos recordamos do autor desta frase.
Assim que o recontou, humedecendo bem os dedos para que as notas corressem mais facilmente entre o indicador e o polegar, a credora fez com elas um rolo, envolveu-as com um elástico e guardou-as no antiquíssimo baú enferrujado, com motivos orientais. Era aí que acumulava as poupanças, antes de as aprisionar no banco ou de as trocar por peças de ouro. Quando viesse a noite, bem embrulhado num velho xaile, tornaria o baú ao esconso onde deveria permanecer intocado, até que a credora o abrisse e desse ao seu conteúdo o melhor caminho.
Ela estava satisfeita. Uma dívida difícil resgatada é sempre um motivo para acender uma vela. Encheu a cafeteirazinha com água, pô-la nas brasas e espreitou as imagens esverdeadas que dançavam no vidro do anacrónico aparelho de televisão.
A tarde viera mais fria. Novembro costuma arrefecer os nossos contentamentos. Um bom café e um pouco de geleia no pão consolariam a esta hora o autor destas palavras.
Bateram à porta. A credora sentiu as pancadas como uma contrariedade. Calçou os velhos sapatos de homem, cuja pele cortara para lhe dar aspeto de chinelos, passou a mão pelas cãs e foi ver quem era.
Houve um murmúrio, altear de vozes, uma altercação.
– Só me faltava essa. Vai mas é trabalhar, seu vadio!
A credora descalçou os chinelões improvisados, colocou os pés na pedra da lareira e esperou. Daí a tempo quase nenhum, com a estremunhada expressão de quem abreviara criminosamente a sesta, o marido entrou na cozinha. Quis saber:
– Quem era?
– Um pantomineiro qualquer, a pedir para comer…
– Deste-lhe alguma coisa?
– Dava-lhe com o cabo do engaço se o tivesse à mão!
O marido esboçou o gesto de quem acabava de ter um arrepio. Saiu. A credora tinha os olhos de novo no ecrã esverdeado. Na novela desenhava-se uma cena importante. Um dos doutores, um macaco, descompunha a pobre secretária negligente, que lhe interrompera o avanço amoroso com a nova diretora dos recursos humanos.
O marido regressou. Trazia nos braços um curto feixe de lenha. Desviou a cafeteirazinha e deitou sobre as brasas três pequenas achas, formando com elas um tripé. Depois soprou sobre os carvões incandescentes e quando destes deflagrou uma labaredazinha recolocou a minúscula cafeteira na área do calor.
Novembro anunciava o inverno. A chama sabia bem. O marido colocou as mãos em concha sobre o lume e esfregou-as.
A cena da descompostura acabara. Agora na televisão esverdeada (por causa do cinescópio quase fundido) ouvia-se uma conversa anódina entre padre e pecadora. Depois principiou o quarto de hora dos anúncios.
A credora olhou a lareira e viu a chama generosa lambendo a lenha. Levou instintivamente ambas as mãos à cabeça, num movimento de fúria e viva indignação.
– O que estás tu a fazer, meu grande macaco? Ai, meu Deus, meu Deus! Tu julgas que este chamiço veio de graça para casa?
A credora pôs-se de cócoras e tentou puxar as ripas para impedir que se consumissem tão depressa. Mas o fogo, áscua gulosa, queimou-lhe os dedos. A credora silvou, repleta de cólera.
– Ouve-me bem, meu pantomineiro desgraçado: seja a última vez, ouviste? Seja a última vez que pões lenha no lume sem a minha autorização. Ouviste-me? Ouviste-me bem?
A tremer, a credora destapou a cafeteirazinha e atirou-lhe uma colher de má chicória para tingir a água. Quem pensava ele que era. Desperdiçar lenha àquela hora da tarde, quando a casa ainda estava tão morninha!
Ele não abriu a boca. Viu o baú oxidado em cima da cristaleira. Precisavam de enchê-lo de novo. Ela tinha razão. No poupar estava o ganho. Sentiu vergonha. Não sabia o motivo exato, mas, sim, sentia uma grande vergonha.
Depois de bater o portão com estrondo, fá-lo todos os dias à mesma hora, o homúnculo põe-se a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio (mesmo ao fim de semana, especialmente ao domingo); a seguir demora-se a escolher as melhores tabuinhas para cortar com a serra elétrica.
Dá-lhe um grande prazer multiplicar o ruído, por causa dos vizinhos. Por via dele, usa as máquinas tanto tempo quanto possível, repetindo o som do corte, a que se segue o zumbido da lixadeira, o som da plaina e, finalmente, o som do compressor para a limpeza do cimento. Trabalha num barracão improvisado, que cercou de malhasol e de uma serapilheira verde.
Adora trabalhar no patiozinho, com o seu barrete ridículo enfiado na cabeça e vir de quando em quando espiar a rua, porque se persuadiu de que o espiam.
As tabuinhas empilha-as num bidão de plástico. Ninguém lhe oferece grande coisa por elas, por isso também as não vende. Ocupa-se e pronto. Detesta os vizinhos e os vizinhos detestam-no. Mas pronto, é um artista!
Quando a mulher, farta dos seus ofícios facinorosos, solta um grito de ordem, o homúnculo para tudo, recolhe as tabuinhas e, quase choroso, vai ver o que se passa com ela.
– Desliga-me essa merda, seu maniáco!
Ele desliga. Deixa tudo limpinho e vazio. Recolhe a serapilheira verde, enrola a malhasol, guarda as máquinas, empurra o bidão e o compressor para o interior mofento da arrecadação, diz «Já vai, já vai», satisfeito com a sua quota-parte de ódio, feliz como um cachorrinho briguento, feio e inofensivo.
– Anda para dentro, seu maniáco!
Então, o homúnculo vai. Volta a abrir e a fechar com estrondo o portão da vivendazinha. Volta a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio. Está tão alegre consigo mesmo que, por instantes, se esquece de que na sua vida nada cabe de belo, sensível ou dignificante.
A mulher assoma a uma janela, exibindo um par de olhos coléricos, como quem faz um derradeiro aviso.
O homúnculo estuga o passo, sobe o curto lanço de escadas e sem um pio mais encafua-se debaixo da asa protetora. Silêncio total: nem pensar em falar alto, encarar ou desafiar a autoridade da casa! Só pensa nas suas tabuinhas empilhadas, polidas, envernizadas. É um artista. Ninguém oferece um tostão por elas ou por si. Mas pronto. A história da humanidade coleciona injustiças destas. O homúnculo já nem se importa.
Era tarde. Adiante de Lampedusa, o homem deixou de bater os remos. Não fazia a mínima ideia de para onde ir. Pôs-se a imaginar a profundidade do mar no ponto exato em que se encontrava. Pensou também que daí a horas todo o orbe se cobriria de estrelas e que, entre elas, se avistariam generosamente anos-luz de negrume e de solidão. As ilhas mais próximas estariam a uma distância imprecisa, como nos poemas fatais de Heliodoro. Ali era o centro, o princípio e o fim do mundo. Não era fácil.
O homem não sabia porque lhe acorriam tantos pensamentos e tão avulsos. Talvez no fundo de toda aquela água imensa jazesse ainda alguma falua egípcia ou algum birreme romano, com as suas ânforas intactas, com o seu vinho e o seu azeite, com o seu garum ibérico, com os seus óleos e essências fenícias. Ou quem sabe os restos fossilizados de um dos companheiros de Ulisses. Ou dalgum soldado da primeira, da segunda, da terceira guerras púnicas. Ou dalgum dos muitos inimigos de Napoleão e de Rommel e do general Montgomery. Tantos ossos ali sepultados!
O homem não via porque não crer na possibilidade de ali intersecionar, ao acaso, eras e nomes, memórias e sensações. O seu barquito tranquilizava-se no doce ondular da luz e da maré. A viagem trouxera-o sem destino. Apetecia-lhe, não sabia bem, voltar, continuar ou permanecer para sempre assim. Não era fácil.
Recolheu os remos e deitou-se. Aos poucos foi tomado pelo sono. Apenas uma ou outra ave cruzavam o azul, onde os seus olhos viam o agitar dos fosfenos. Acudiu-lhe que se sentiria assim Augusto antes das batalhas, embalado quem sabe nas galés imperiais pelo poema de Virgílio e pelas ondas traiçoeiras do Mare Nostrum. Suetónio aludiu à narcolepsia e à cobardia deste Otávio, antes das batalhas. O homem cedia ao cansaço. Pavorosas palavras teimavam fazer-se escutar na sua cabeça. Imperador ou não, ser-se humano faz-nos descer e subir nas mais perturbadoras ilusões. Por fim, o homem adormeceu.
A cabeça conduziu-o a uma terra cuja existência desconhecia. Tantos livros investigara, tantas viagens fizera, tantos relatos conseguira interiorizar que aquele podia muito bem ser um dos lugares fabricados pela razão e pelo sonho. Talvez o tivesse descrito Platão ou Heródoto. Ou Thomas More. Ou Orwell. Ou ninguém. Mais tarde, quando tentou recordar-se, não pôde descrevê-lo como desejava.
Havia um cais, pelo menos assim lhe pareceu o ajuntamento de embarcações coloridas e oscilantes, de mastros e cordames que rangiam quase sem se mexer. Uma grande escadaria levantava-se do mar e com ela nascia toda uma cidade até a um palácio retilíneo, em cujo propileu assentavam, lado a lado, uma estátua de Apolo e outra de Minerva. Não só a arquitetura lhe parecera antiga (helénica), como os habitantes da cidade, envergavam túnicas e se cumprimentavam erguendo a mão.
O homem admirou-se de aí não se sentir estrageiro. Com efeito, também ele trajava assim, também ele trazia às costas (preso por uma fíbula) um manto vermelho. Também ele ostentava na mão direita uma bracelete de ouro e calçava as mesmas sandálias com que os outros pisavam as mesmas lajes de mármore. O homem acreditou compreender a língua que aí se falava, mas quando quis reconstituir esse sonho não soube discernir qual língua era, se vetusta e morta, se a sua própria língua que os anacrónicos habitantes falavam com enorme desembaraço.
Do mesmo modo, não percebia como pôde caminhar entre as ruas amplas da cidade incógnita sem se perder. Ou como descortinou sobre certa porta esculpidos os números 3, 6 e 9 (e não, por exemplo, a versão romana III, VI e IX). Mesmo sem compreender o absurdo desse pormenor, viu-se a entrar e a demorar-se na prelação de um matemático sobre eles. Havia nas palavras daquele sábio uma teia de significações, de associações, de perfeitas combinações entre os três e respetivos múltiplos. Observou na sala três pequenas mesas alinhadas, seis estantes repletas e nove retratos na parede (reparou de imediato nos de Arquimedes, Copérnico e Einstein). Havia seis janelas, seccionadas tanto na vertical como na horizontal em três partes, perfazendo cada uma delas portanto nove vidros. Havia frescos, retratos, bustos alusivos às nove musas, às três graças, aos deuses olímpicos (seis pintados à direita, seis à esquerda). Ali zumbiam três computadores, onde seis alunos (aos pares) indagavam profundas cadeias de informação, indiferentes à palestra. Também ali nove velas ardiam em cada um dos três enormes candelabros que iluminavam o espaço. E viu um fresco enorme, onde os nove círculos do Inferno, as três cabeças de Cérbero e as seis cabeças de Cila se desenhavam com cores sombrias. Ao rememorar tudo isso, o homem sorriu, dando-se conta da profunda algaraviada mental que jamais poderia pôr em palavras. E reconheceu o orador. Era Nikola Tesla. O mundo podia ser representado por uma cabana infinita, onde os números 3, 6 e 9 atavam pontas geométricas, dentro das quais a vida se organizava infinitiva e infinitesimal. Mas nenhum lógica podia unir aquele inventor àquele lugar.
Aturdido pela mescla e pela quantidade de informação, o homem desejou pertencer a outro espaço. Sentiu a respiração faltar-lhe. Era como quando na universidade, antes do esgotamento, se deixava vencer por dúvidas e por questões sem resposta. Temia soçobrar dentro de si mesmo e de enlouquecer.
Não muito depois, sem transição, viu-se no vislumbre de pórfiro e de jaspe de uma praça.
Encimando outras portas, havia letras, símbolos, garatujos, legendas, cunhas hieroglíficas, frases lapidares, anotações, alienígenas, logótipos de marcas internacionais. Numa rua mais ampla abria-se o mercado. Aí vendia-se um pouco de tudo: impressionantes granizados de uma mole de cores e de sabores, livros, quinquilharia, material informático de primeiríssima qualidade (maravilhosamente espelhado, delicado e plastificado), pizas, fruta, artigos de couro, peixe ao retalho, toda a sorte de pedras semipreciosas, perfumes, discos de vinil, cartazes antigos e moedas de todas as proveniências. O mercado, ordenado na sua desordenada aglutinação de elementos, eternizava-se. Era uma babel. O homem sentiu náuseas.
Percebia-se que a humanidade, na densa pegada sobre o tempo, é ácida. Aquele lugar possuía algo de caravançarai e de europeu, de fascinante e de repulsivo. Até a melhor arte é assim, visto ser artificial e resultado de um pensamento. Ao contrário da natureza, que é perfeita e holística, a criação humana é fragmentária e imperfeita, absurda e derivativa.
O homem flainou um pouco até se deter em frente de uma citarra enorme, em exposição numa espécie de tenda bélica, entre punhais, bestas, fundas, revólveres, lêiseres e sílexes do início do Antropocénio. O toque da lâmina, macio e gélido, era a face da morte. Talvez nela residissem ainda microscópicas presenças daqueles que por ela perderam a respiração. Segurava nas mãos não apenas um símbolo, mas uma concreta demonstração da perversa inteligência da humanidade. Mais uma vez, uma espécie de enjoo deu sinal de si.
Além disso, uma impressão de frio (cada vez mais indisfarçável), foi tomando conta de si. Era como se uma película húmida e desagradável o cobrisse da cabeça das aos pés. Não conseguia compreender completamente esta mudança, tanto mais que ali, naquela estranhíssima cidade o sol parecia irradiar imutável e velho, como um deus lá no alto.
Para toda a parte, de toda a parte, iam e vinham rostos. Rostos que o olhavam, que o ignoravam, que lhe provocavam impressões desencontradas, rostos de mercadores e de solitários, rostos de velhos e de imberbes, rostos de mulheres e de servos, rostos impressivos e expressivos, todos eles belos e serenos como personagens de um filme de Bergman.
O homem desceu. Havia agora um edifício em forma de zigurate, à base do qual os seus pés o levavam. Não era já uma bela construção, mas uma difícil passagem pela miséria de homens e mulheres que se acantonavam nas varandas e terraços: proscritos, ladrões, leprosos, prostitutas, refugiados, órfãos, mendigos, idosos lamurientos, mutilados, desdentados, descabelados, fétidos, gente repleta de fealdade, chagas e abomináveis traços de loucura. Era um gueto, um depósito de lixo humano, através do qual o caminho se mostrava perigoso e obsceno. Lanços de escadas abruptos faziam-no ter medo de cair. Era preciso olhar, quando os olhos não queriam ver. Era preciso pensar, quando a cabeça queria esquecer. Era vertiginoso e sujo. O homem chegou ao fundo.
Na exata aresta em que findava o último degrau de granito, principiava um chão paupérrimo de terra batida, desidratado e empoeirado, infeto. Começava aí um cemitério de tendas, que se multiplicavam a perder de vista pelo serpentar do leito de um rio seco. Os seus passos tornaram-se inseguros. Por mais que se esforçasse por manter o equilíbrio, sentia-se cambalear. Algo vertiginoso insinuava-se no seu sonho, pese não o descortinar ainda. Uma algazarra, um alarido, um estertor, uma gritaria súbita fê-lo arrepiar-se. No meio do pó, por entre farrapos arrastados, cresceu a figura de um rinoceronte, que corria a toda a brida na sua direção. O homem paralisou. Ouvia os grunhidos coléricos do animal, possuído de um rancor sem limites. Via o chifre em riste derribando à sua passagem fios improvisados de roupa e corpos negros anémicos. Eram rugidos medonhos, cavernosos, como se proviessem não de uma boca, mas de uma tuba. Que aflição!
Foi neste preciso ponto que o homem despertou. O barco balançava com força, com o vento que se levantara, com a agitação da maré, com a proximidade de um enorme navio de carga que não parava de roncar, avivando-lhe os deveres da mareação.
Lançou os remos de novo à água e pôs-se a batê-los atarantado. O grande animal de carga passou. Ao fundo, avistavam-se já as luzes da ilha de Linosa. Seriam sete e meia, oito horas. Uma fragata da Guardia Costiera deslocava-se mansamente no seu encalço. Que pesadelo! Desde que abandonara o trabalho em Pádua, não sentia tamanha desconsideração por si próprio.
A noite, como uma capa, pesava-lhe nos ombros. Mais do que nunca, prostrava-o a ideia de que a sua vida era um perfeito naufrágio. Os remos supliciavam-no, porque a corrente o arrastava para uma zona de rochedos. Lutava contra ela, como se por fim tivesse encontrado um sentido para a sua existência sexagenária.
O grande holofote da Guardia Costiera cortou as águas, muito para além de si. A cerca de meia milha, a estibordo, empurrado para os mesmos escolhos observou um bote e uma multidão de coletes amarelos. O homem percebeu que a guarda acelerava em sua perseguição. A voz do comandante replicava ordens, palavras duras, avisos. Eram africanos.
Ficaram nessa mesma noite detidas em Agrigento, num centro de controlo de emigração. Eram noventa e quatro (sete das quais, crianças).
Resgatado na mesma fragata, o esgotado professor Silvio Graziani (dadas e recebidas todas as explicações e recomendações) foi deixado tranquilamente na praia de Pozzolana, no mesmo porto e à mesma hora em que o último ferry da vulcânica Linosa descarregava os derradeiros passageiros e viaturas.
Atracou o seu pequeno barco a uma boia de amarração. Nessa altura já não se sentia confuso. Em rigor, não já sentia nada, nem sequer se valia a pena sentir. Era apenas tarde, muito tarde.
Por fim, o cansaço faz-me dormir. Precisei de cinco dias para o conseguir. Jantei e lavei os dentes. A penumbra desenha-se no horizonte. No podcast, as palavras do locutor são exatas, informadas e tranquilizadoras:
«… a começar Poema dos Átomos; a música de Armand Amar, com as palavras de Jalaluddin Rumi, poeta sufi do século XIII; na interpretação, as vozes do iraniano Salar Aghili e do turco Haroun Teboul…».
Aos poucos os gemidos do ancião na cama ao lado deixam de ouvir-se. Deixa de ouvir-se no corredor o ranger metálico do carrinho da enfermagem. Deixa de ouvir-se a água que goteja imparável na torneira da casa de banho. Deixa de ouvir-se o bip-bip do aparelho que monitoriza a frequência cardíaca. Deixam de ouvir-se as vozes que ordenam e as que acalentam, as que suplicam e as que insultam, as que explicam e as que não compreendem, as que berram e as que ciciam, as que possuem ciência e as que têm sentimento.
Na minha cabeça, presa por auscultadores a outro tempo e a outro espaço, as vozes que cantam numa língua ininteligível fazem-me atravessar paisagens de deserto e de água. Aos poucos confundo sonho e realidade e sinto-me cair dentro de mim como um fardo num poço, como Daniel na cova dos leões, como Brás Cubas no seu devaneio mortal.
Nunca li direito o Ser e Tempo de Heidegger. Envergonho-me. Se o tivesse feito, poderia agora, neste limbo existencial, entender melhor o que significa “existir” e o que significa “pertencer momentaneamente” a um mundo a que pertenceremos sempre “momentaneamente”, dure o nosso tempo o que durar.
Vogo. O sono acolhe-me como o vazio do espaço acolhe uma rocha à deriva. Sem uma palavra, sem uma reação química, sem um suspiro, governando-me apenas por leis físicas. O poema de Rumi e a música de Amar e as vozes dos dois cantores árabes são agora um rasto na minha memória. Durmo.
Desperto uma hora depois, sacudido pela mão diligente que me há de injetar tinzaparina sódica. Os olhos erguem-se num esforço tremendo, pesam-me. Mais que eles pesa a cabeça. Sou um prego. No pontinho em que a agulha perfurou a pele fica um leve ardor. Com alguma sorte há de ficar também, de mistura, uma nódoa negra e um papo.
Oiço de novo as vozes e os nomes a que me fui acostumando nos derradeiros dias: Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa. Nomes ditos num “tu” que me desbarata, num “tu” próprio para anciãos meninos de 80 anos, num “tu” referente a corpos cansados e teimosos que insistem em retirar de si a algália e o cateter e a sinistra ventosa do oxigénio.
Sou um prego, uma cavilha, uma cabeça macrocefálica, de chumbo, que se segura sem tino. Escureceu entretanto. Penso em dormir outra vez, mas receio a sacudidela que virá (mais cedo ou mais tarde) medir-me as tensões, avaliar-me a temperatura, picar-me o dedo para ver como se comporta a glicemia, trazer-me o meio Triticum para descansar bem…
Ao invés, caminho até à sala de estar no coração do piso. As ironias entrelaçam-se. Cheira a café que não posso beber, cheira a cigarros que não posso fumar, cheira a tílias que não posso respirar. O janelão, sujo e meio baço, deixa contemplar a noite, o frenesim dos táxis, a procissão de faróis entrando e saindo e ladeando o Centro Comercial. De cada lado do vidro abre-se dez centímetros de liberdade; um aloquete impede-nos de colocar fora dele mais do que o nariz e talvez um olho; somente uma migalha de evasão, de paz, de poesia.
«Aqui os dias são todos iguais, um só, sete ou cem.»
Escrevo a frase no caderno que pedi para trazerem de casa, mas rasuro-a logo de seguida com raiva. Nem sequer me parece bonita, nem sequer genuína, nem sequer minha. Parece-me ruído, isso sim, chocalhar de pensamentos e de coração, lamechice.
Por fim, o cansaço é um preâmbulo de loucura.
Nunca na minha vida me senti tão só, tão inútil, tão impotente. Talvez regresse ao poema de Rumi e à música de Armand Amar, às vozes luminosas que não decifro de Aghili e Teboul. Talvez me atire ao Alprazolam escondido, interdito, na gaveta. Vogo. O sono arremessa-me no vazio como um asteroide pela noite sideral, do nada e atrás do nada.
Um dia emendar-me-ei quem sabe com Heidegger. Hoje, porém, ser e tempo não passam de palavras plúmbeas e espúrias, desastrosas (Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa), envoltas em cheiro de fezes e de urina, a que ninguém, nem o próprio Deus, me ensinaria a voltar.