Sempre fui um gângster

Christophe Verdier
Fotografia de Christophe Verdier

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Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Batoteiro, apaixonado, zaragateiro, intempestivo, amante da tarefa acabada. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos — sejam poemas, sejam acertos de contas — porque um bom filho da mãe não deixa nada a meio; um bom filho da mãe gosta de morder o cigarro enquanto conduz à noite e faz grandes reflexões, com Coltrane, Chet Baker ou os Morphine (se for mais da minha onda) em fundo; um bom filho da mãe distingue as boas das más ações, mas assume-as a todas sem medo, sem hipocrisia e sem moralismos. Um bom filho da mãe tem um orgulho verdadeiramente gangsteriano naquilo que faz e, arrisco dizer também, em recusar aquilo que não faz!

E o que não faz um gângster? Por exemplo?

Por exemplo lamber botas! Por exemplo pôr-se com merdas quando tem que encarar um tipo desprezível (e há tipos desprezíveis, meros rebentos de infâmia e dejeção, a quem não pode ser concedido sequer, na pior aceção — a que lhe confere o topo da escala social — o título de gângster) e explicar-lhe sem rodeios que são uns merdas! Por exemplo declinar a oportunidade de dar uma bofetada a um palerma que fala em direitos e esquece as obrigações. Por exemplo perdoar um tiro a outro filho da mãe que anda há muito a pedi-las e sabe que anda. Por exemplo aceitar palmadinhas nas costas de tipos que usam fato às riscas, botões de punho, sapatos de verniz e perfume a 500 euros o frasco de 100 mililitros.

(Faço um parêntesis para emendar o raciocínio e impedir conclusões apriorísticas: nunca dei um tiro a ninguém! Por manifesta falta de formação específica na área, circunstância que aliás muito penaliza o meu perfil mafioso. Mas não o lamento! Sou um mafioso bom, devo insistir!)

Sempre tive, assim como assim, uma queda para o bandido. Porque a cabeça de um indivíduo pode esconder um laboratório de malfeitorias. Vilezas puras, como roubar a Shakespeare meia dúzia de versos e tomar de assalto um coração puritano. Patifarias como mandar às urtigas um curso superior e ir à procura da felicidade onde ela se encontra, nas montanhas do Tibete ou dos Andes, nos fiordes da Noruega ou entre as cow-girls do Texas. E quem diz o curso superior diz outras coisas superiores como a herança, o casamento ou os amigos no clube social. Um biltre que faz uma maldade destas, que se mete à estrada com a viola às costas e sem mais vontade que a de pensar em si (cantando «And a new day will dawn for those who stand long,/ And the forests will echo with laughter») merece, senhores e senhoras, um enorme aplauso… É um infame, que deixa para trás os estudos, uma família furiosa, uma ex-mulher vingada na justiça, um grupo de snobes. Mas que merece, senhores e senhoras, um aplauso do tamanho do mundo! Um aplauso do tamanho do futuro! Os gângsters fazem coisas destas…

Eu fiz! Rejeitei noites de prémios onde me queriam bem vestido, barbeado, perfumado. Matrimónios que me impunham a máscara de manso, do amestrado, do maridão. Compromissos políticos onde me desejavam seguidista, cacique, acéfalo. Universidades que me pediam teses bem escritas, ortodoxas, balofas. Editoras onde me exigiam paciência, más contas, conformismo. Amigos que me brindaram sempre com esquecimento, silêncio, por-favores! Um pulha faz coisas destas, faz coisas muito piores, fá-las sem pestanejar!

(Faço outro parêntesis para explicar que estas ditas outras coisas muito piores me não são estranhas. Uma vez rejeitei um cargo assaz cobiçado numa dada prestigiante instituição, porque gostando do cargo e da instituição depressa compreendi que me usavam em modo de arma de arremesso, ou como castigo político para quem até aí o exercia. E eu disse que muito obrigado, mas não!)

Eu faço coisas destas. Sempre fui um pouco gângster. Até usei barba, boina, charuto. Até li os pensamentos anarquistas de Rousseau e os de Godwin. Li todos os romances de Mario Puzo e em tempos devorei uma biografia do Al Capone. Até usei toda a poesia de todos os tempos para ser poeta a tempo inteiro (mesmo quando assalariado). Usei-a para chantagear intelectual, moral, civicamente. Máfia pura! Até me servi de uma t-shirt do Che Guevara (uma que dizia «Yo no sé porque me pongo una camiseta del Che») para conquistar os favores de uma guevarista de olhos verdes no sul de Espanha.

Sempre fui um pouco gângster. Um aldrabãozeco! Um facinorazinha com dever de consciência, desta mesma consciência de que me sirvo agora e muitas vezes para renunciar às tentações, enganações, seduções, opressões e obsessões de Satanás. Multipliquei adversários e inimigos. Tanto na literatura, como na rua. Gosto de me recordar deles, enquanto afio as facas e limpo o fuzil dos meus pensamentos (admito ser também um adorável fazedor de metáforas parvas). Gosto de me recordar também de torpezas quando ando depressivo e não encontro o isqueiro ou um café aberto à noite. Uma boa luta, uma pirraça das melhores, um cagaço dos grandes mantêm-nos vivos, já o repetia o Zé do Telhado.

Pela minha parte limito-me a ser discreto, entrando de mansinho na cena, com os Morphine em fundo, janela aberta, o fumo do cigarro misturando-se à neblina, o carro levando-me ao hotel combinado, o dedo em riste, a alma limpa, a noite prometendo — amor, companhia, uma boa história…

Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Não me pesa demasiado afirmá-lo. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos. Eficientes. Na hora. Senhores e senhoras, por aqui me esgueiro. Boa noite!

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O que é um grande poeta?

Fotografia de Aaron Burden

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O que é um grande poeta? Sim, um poeta, digamos, da dimensão de Homero? De Safo? De Petrarca? De Shakespeare? De Baudelaire? De Breton? De Celan? De Herberto Helder? O que é preciso em rigor para se ser um?

Um professor de literatura garantia há não muitos anos que a comparação de grandezas, fosse entre poetas, impérios ou galáxias, depende muito mais do nível de satisfação sexual dos observadores do que da massa, densidade, tamanho ou longevidade dos observados. A frase chocou. Uma vez, duas, três vezes, sempre. Porque este professor de literatura parecia não levar nada a sério, mesmo quando publicava artigos capazes de rivalizar em erudição e hermetismo com Husserl, Russell, ou Georges Steiner. «A grandeza ou a pequenez é, antes de mais, coisa para se averiguar na casa de banho [sic], com a ajuda de uma vulgar régua de desenho…» Extravagâncias…

Não que não existisse por ali uma pontinha de génio, como anotaria Eça de Queirós. Não que não houvesse mesmo um fundo de verdade, uma frincha para a luz, digamos, porque havia. Havia até uma resposta para essa malsinada pergunta que me ocupa o título da crónica e a cabeça, não agora, mas desde os vinte anos. Porque alguma coisa subsiste de inútil na comparação de factos, de factos que só seriam efetivamente comparáveis num universo regular e coerente. E o nosso é tudo menos regular e coerente. Menos ainda eterno. Um dia destes as estrelas apagam-se, as galáxias esgarçam-se, o Big Bang perde a sua imensurável força, encolhe (ou será que explode? Ou que implode?) e cá se acabam as comparações…

Mas, mas (e insisto no mas), um leitor de poesia sabe distinguir o poema que agrada do poema que faz tremer as mãos. Sabe diferenciar o poeta bom, que se saiu (afinal) bem com a aguardente de medronho, do poeta que nos leva às lágrimas. Não falo dessas lágrimas sujas de rímel e pó de arroz, mas daquelas que verteu Mecenas e Otávio César Augusto: lágrimas de espanto. De incrédulo reconhecimento da perfeição. De agradecimento!

O leitor de poesia sabe comover-se com a Ilíada. Uma epopeia, uma batalha que decorreu (se é que alguma vez teve realmente lugar) algures na costa turca, onde os gregos (ou os seus antepassados) semeavam uma zona de influência. Homens matam, homens morrem, uns heroica, outros covardemente. Outros sobrevivem. Um, o mais singular de todos, volta as costas à querela, furioso com o chefe da sua hoste, o pastor dos homens, que o maltratou… O leitor de poesia vê que os deuses conspiram, (uns por despeito, outros por amor), vê que as mulheres e filhos dos troianos se assustam com o fragor das sucessivas batalhas. Que esse terror é ainda o nosso terror, que essas mães e essas crianças são ainda as nossas e foram as de sempre, em toda a história ensopada de sangue, que é a nossa!

Em contrapartida, o leitor cansa-se com a interminável subida das almas ao Purgatório de Dante. Sente-se torturado pelos maneirismos de Gôngora, nos floridos de Boileau, com as exasperações românticas de Byron. E coça a cabeça (por não saber muito bem o que achar deles) ao ler alguns poemas do Pessoa ortónimo, que são muito alarido inteletual, muito enfatuamento estilístico, um não-ir-a-lado-nenhum, como um cachorro em círculos, abocanhando a cauda…

Porque a mesma infinita embriaguez que nos faz delirar lendo em voz alta ou em silêncio, as grandes odes de Walt Whitman, Álvaro de Campos ou André Breton, a mesma corrente elétrica que percorre os textos megalómanos de Ruy Belo, a mesma satisfação que se sente no final dos inteligentes poemas de Wisława Szymborska ou Tomas Tranströmer, a mesma finura e delicadeza que entrelaça os versos de Elaine Feinstein, a mesma densa metáfora de Salah Stétié, a mesma musicalidade de Fiama Hasse Pais Brandão – particularmente na última fase –, é a que nos faz amadurecer a razão para a grande poesia de Píndaro, Anacreonte ou Alceu, para o poder de concisão (e precisão) da poesia japonesa, para o gosto pela luz crepuscular (primeva versão da nossa saudade) da poesia árabe, para a vastidão filosófica da poesia persa, para a metáfora metapoética da poesia chinesa (a que primeiro denotou um amor narcísico pelo desenho gráfico), para a violência dos elementos da poesia escandinava, etc…

A questão mexe por dentro, como um pinto dentro do ovo: o que é um grande poeta? O que distingue um fundador de um imitador? Um poeta capaz de atingir a essência de um poetastro que a circunda eternamente? Um Homero de um Horácio? (Porque Horácio nunca me seduziu, nem mesmo na famigerada Epístola aos Pisões) O que separa a água consoladora de um poema de Lorca, Auden ou Jabès da água tonta, inquinada, ácida de tantos e tantas que se dedicam a multiplicar títulos, a elogiar perversões, a gastar ideias, a alimentar mediocridade, a repetir, repetir, repetir…

O que é, em suma, um grande poeta? Um poeta do clube restrito de Omar Khayyām, JalāladDīn Rūmī, Pierre de Ronsard, Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot ou Sylvia Plath? Um que não desmerecesse a companhia de Kavafis, Pessoa ou Miłosz?

«Uma bizantinice, uma questão de lana caprina!» garantia o reputado professor de literatura…

Mesmo assim, quem deixa de o perguntar?

Não será um grande poeta, aquele que ocupa a estante principal da nossa biblioteca? Aquele a quem conhecemos composições inteiras de cor, a quem citamos o vulnerável equilíbrio de uma verdade incrustada nas suas palavras? Não será um grande poeta, aquele que, por (in)voluntário incitamento, por seu exemplo, por sua inspiração, por contagiante mestria, gera outros grandes poetas? Não será aquele que, pretendendo-o ou não, acaba por produzir palavras, textos, ideias que nos servem de referência – como de referência são os Evangelhos e o Corão, a bondade universal, a palavra ahimsa e o nirvana, o amor de uma mãe, a limpidez da água numa nascente, ou a fraternidade entre todas as criaturas no nosso mundo?

Um grande poeta é uma resposta, provavelmente individual, provavelmente consensual, ao espaço mais fundo que a consciência, a fé, a memória e o sonho demoraram a construir em conjunto no nosso espírito! Um grande poeta ocupa o lugar vazio que a vida sublimemente cava com o passar dos anos. E só ele pode ocupá-lo, como só ele pode desocupá-lo.

Quando lemos no Canto VI da Ilíada o desespero de Andrómaca, o susto de Astíanax, a réplica enternecedora de Heitor, é precisamente esse vazio o que nos permite absorver cada pedaço da cena e amar cada uma das belas palavras com que Homero nos solda ao sofrimento das personagens: («Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará! / Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim, / desafortunada, que depressa serei a tua viúva.»; («Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me / envergonharia dos Troianos de longos vestidos, / se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.»

Quando se lê ao longo dos vinte e quatro maravilhosos cantos deste poema símiles, sentenças, imagens, metáforas semelhantes a «palavras apetrechadas de asas», «a morte chega a quem nada faz e muito alcança», «a escuridão cobriu os olhos», «Por toda a terra espalhava a Aurora o seu manto de açafrão», «Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.», é ainda a sublime poesia a que nos imprime a mais viva emoção de um encontro: o que une a gramática à prosódia, a sabedoria e a transfiguração estética.

Colecionei com os anos incontáveis volumes de poesia de todos os tempos e lugares. Com eles forro o meu escritório e o meu quarto, procurando resposta a essa que julgo ser uma questão fundamental. Porque saber o que é um grande poeta é ser capaz de reconhecer o que é a poesia na sua dimensão mais pura. Leio-a todos os dias. Leio-a desde sempre. E, com Simone Weil, creio bem que nenhum poema se superiorizou, ainda, ao canto homérico, particularmente ao de Ílion.

Assim sendo, um grande poeta será sempre o mais parecido que houver de ser de Homero. O mais parecido que houver de ser da espantosa vivacidade da Ilíada, da coexistência de carnificina e amor, sublime poético e calão, arcaísmos e uma notável intemporalidade na leitura da condição humana…

Porque é a intemporalidade a que arbitra a questão. E é essa intemporalidade de Homero (seja ele um único homem, ou vários) a mais espantosa resistência e a melhor prova de o primeiro amor é o melhor amor de todos!

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Sempre uma questão de tempo

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Fotograma do filme «Casablanca» (Warner Bros)
Fotograma do filme Casablanca (Warner Bros, 1942)

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Começo esta crónica com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo. É uma balada tão calma, tão pungente, que um leitor mais sensível se entregaria de imediato ao devaneio por entre jardins e lagos do Japão, junto a uma casa de chá, debaixo de frondosas tílias, segurando a luva delicada de uma mulher cujo nome convém não dizer… É uma dessas baladas que levam às lágrimas o leitor mais sensível, quando em lugar de tudo o que acabo de descrever, só as memórias ocupam o seu pensamento… Talvez ocorra a alguém que um tal som de piano em fundo se usava no tempo de certos filmes a preto e branco, porventura dalgum dos clássicos que revemos nas noites solitárias de inverno, ou nos ásperos dias de alguma separação recente. Pela minha parte, ocorre-me o imortal Casablanca, a lendária dupla que Humphrey Bogart e a maravilhosa Ingrid Bergman protagonizaram, o Sam que Dooley Wilson encarnou, tocando para todo o sempre As Time Goes By

Começo com a lareira acesa, com um copo de Terra do Zambujeiro em cima da mesa, com um livro de Manuel Hermínio Monteiro nas mãos. Porque a verdade é só uma: escrevo por causa deste Urzes, compilação de pequenos textos que o saudoso editor deixou dispersos em jornais e revistas ao longo da sua incomparável existência física.

Podia ter começado, aliás, com uma citação sua, algo como «Em Portugal, o escritor vive na solidão que nem a pompa fúnebre que os poderes montam para a sua morte consegue disfarçar.»

Podia prolongar a citação, deixar que penetrasse fundo o sentido da crítica, que magoasse a sua mágoa, permitir que ficasse escrito também «Mal se extingue o bramido das carpideiras, o escritor fica duplamente soterrado. A sua obra, ou fica à mercê dos herdeiros que, salvo honrosas e conhecidas exceções, nada têm a ver com a obra nem com a vida de quem biologicamente lhes tocou, ou fica dispersa e esquecida como uma cidade imperial soterrada.» Porque a verdade é só uma: escrevo por simpatia, por desejo de replicar algo que leio e que me consola profundamente. Manuel Hermínio Monteiro é um ser fascinante, uma das poucas pessoas que lamento nunca ter conhecido pessoalmente.

Começo esta crónica com o suave ondular das notas musicais, com um piano que me faz esquecer a intensa mediocridade do meio, que me faz perdoar as traições do meio, que me faz iludir o desprezo pelo meio. E quando digo meio digo-o em sentido abrangente, inscrevendo, circunscrevendo nele escritores, editores, leitores, críticos, professores, premiadores de mérito, castigadores de reputações… Porque nem todos no meio são tão puros, generosos ou competentes quanto o foi em vida (e mesmo depois da sua morte) o Manuel Hermínio Monteiro. Porque muitos são meras aflorações rasteiras da grande árvore da literatura, gente escarninha, vil, ególatra, mas acima de tudo desprovida de talento! Porque o nosso meio tresanda hoje, como tresandava no tempo de Camões, a compadrio, lisonja e hipocrisia. Porque, escreveu-o ainda o antigo diretor da Assírio & Alvim, «O escritor dispõe da grande força do poder criador, mas perante o socioeconómico, com as suas leis de mercado, as estratégias editoriais, o gosto dominante, etc., o seu poder é reduzido.» Isso explica o profundo esquecimento de homens e mulheres do meio como Ângelo de Lima, Fialho de Almeida, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Ruy Cinatti, Alberto de Lacerda ou Fiama Hasse Pais Brandão. Isso explica o desconhecimento quase generalizado (fora dos muros universitários) da obra primorosa de autores vivos como Fernando Echevarría, José Agostinho Baptista ou António Franco Alexandre. Ou o ostracismo a que foi votado Altino do Tojal.

E quando o meio é francamente viciado, o país responde-lhe com desdém. Repego nas palavras ironicamente certeiras de Manuel Hermínio Monteiro: «o país tem é que criar centros culturais megalómanos. Criar comissões comemorativas. Organizar projectos de repercussão internacional, campeonatos mundiais de futebol.»

Mas talvez não seja um problema apenas ou fundamentalmente português. Gerrit Komrij fugiu à Holanda natal para se refugiar em Trás-os-Montes. José Rentes de Carvalho abandona ainda Portugal durante largas temporadas para se refugiar em Amesterdão. E não abjurou Thomas Bernhard da sua Áustria arrogante? Não se está positivamente nas tintas o Herberto Helder para o país? Para o meio? O meio faz as suas vítimas em toda a parte! Ou então destemidos opositores. Isso faz-me pensar…

De maneira que a cabeça pesa, com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo (mais poderosa do que o gosto dominante, mais aguda do que o elogio académico, mais duradoura do que cem cordas encordoadas de interesses comuns e políticas livreiras). De maneira que amo mais profundamente o copo de vinho que tenho à minha disposição, ou as labaredas da lareira reacesa por causa do frio, ou o devaneio por entre jardins nipónicos, de mão dada com belas mulheres loiras de filmes imortais.

Um escritor pode ser solitário. Ou pode ser que nunca seja só. O sono vence-me a resistência dos ossos e do orgulho. Remato com uma última citação do homem a quem, deliciado, leio a crónica «Elogio do Escritor»:

«Ele é dos poucos a quem a luz do Sol entrega sonhos. É assim que Deus lhe paga. E este é o mais belo plano de todo o filme.» Podia ter começado por aqui. Teria dado uma belíssima crónica.

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Ser mãe

Tim Kraaijvanger
Fotografia de Tim Kraaijvanger

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Durante a viagem que me levou no passado verão do Algarve ao norte da Europa reli as muitas páginas de Cem Anos de Solidão esbarrando, porventura involuntariamente, a propósito sem dúvida da centenária Úrsula Iguarán, noutro significado para a palavra mãe: porque na palavra mãe cabem significados tão vastos e tão diversos como os que desfilam no caleidoscópio de acontecimentos, nomes, geografias, gerações, metamorfoses, nascimentos e mortes do texto de Gabriel García Márquez. Essa mulher (sucessivamente mãe, avó, bisavó, trisavó e tetravó) representa no colapso de toda a solidão, e para me servir de uma legenda de Salvador Dalí, a persistência da memória.

Longe, nas planícies escandinavas, com o mesmo Atlântico em fundo, senti saudades da minha mãe. Eu, homem de trinta e cinco anos, senti saudades da mulher ainda não velha que me trouxe ao mundo, da mulher que inumeráveis vezes me amamentou, agasalhou, velou em noites febris, me narrou histórias da Branca Flor e do João Sem Medo, me ensinou as primeiras orações e os provérbios mais subtis, me fez acreditar numa ética (hoje provavelmente anacrónica) que abjura do poder e do dinheiro, me fez amar a simplicidade e a poesia silenciosa das pequenas formas de existência, me levou às letras e humanidades. Longe, nos cumes da Suécia, compreendi pela primeira vez a asfixia do ser exposto a uma solidão desamparada. Pela primeira vez na minha vida senti a possibilidade de ter cavado no lugar da minha alma um buraco, uma estrada sem retorno. Pela primeira vez compreendi porque clamam pela mãe todos os soldados moribundos, em todas as guerras do mundo.

Os anos trouxeram-me o decoro e a prudência. Reconheço que a vida é um fenómeno precioso, muito acima das palavras e das formas de consciência. Reconheço que há vínculos sagrados sobre os quais é redutor falar. Porque ser mãe é uma ciência complexíssima, como tão bem o demonstram o sofrimento de uma tia minha enlouquecida pela perda do filho (como nas tragédias de Sófocles), ou mais eloquentemente ainda o nascimento da Salomé, criança que trouxe à minha mãe em particular (à avó Alice), a suprema alegria de o ser duas vezes. Mãe é a terrível condição de pretender tudo, de abdicar de tudo, de concentrar tudo, tudo no triunfo incalculável de gerar uma vida e de nela deixar inscrito o poema maior possível: o amor de felizes lágrimas infelizes!

Nunca poderei ser mãe (invejo-o possessiva e veementemente às mulheres), mas pude pressenti-lo uma ou outra vez. Explico: em 1998 fui submetido a uma operação cirúrgica, que me obrigou a um internamento de oito dias. À data a minha irmã Catarina contava apenas três anos, tendo eu suposto que as suas visitas ao hospital não lhe ficariam registadas. Explico também que havendo entre nós um intervalo exato de dezoito anos sempre cuidei dela como de uma filha, cabendo-me, entre outras tarefas ao longo da sua infância, a de a aconchegar na cama. Numa dessas noites de leitura dos contos de Grimm, de algumas cócegas e depois da luz apagada, quando a imaginava adormecida já, quando passava eu próprio pelas brasas, sussurrou-me a garotinha qualquer coisa como isto: «Sabes? Quando  eu era pequenina e tu estavas no hospital, chorei muito porque tinha pena de ti e a mãe ficou tristinha!» Confesso lágrimas abundantes e silenciosas, de uma felicidade infeliz, de uma sinceridade que transborda e não tem definição. Ser mãe é isso, imagino que seja isso: chorar muitas vezes, sinceramente, em silêncio!

Anos mais tarde, numa fatídica noite de maio, quando o aparato das sirenes e o pirilampo das ambulâncias anunciava aqui na Vila o atropelamento simultâneo de várias mulheres no regresso da igreja, quando ninguém sabia dizer ao certo quem eram as desafortunadas, quando ninguém podia negar que houvesse vítimas mortais (havendo, pelo contrário, quem asseverasse que haveria muitas), quando ninguém podia acercar-se do ponto do sinistro por causa da barreira policial, quando se sabia unicamente que eram mulheres vindas do serviço religioso em honra de Nossa Senhora (e a minha mãe contava-se entre elas), entrei em pânicoPorque não estava preparado para o pior dos cenários. Porque aquele podia (e não foi, felizmente) o pior dos cenários. Porque no caderno de encargos de uma mãe consta obrigatoriamente o de preparar um filho para a sua desaparição – e talvez nunca estejamos preparados: eu não estava! Porque ser mãe é o empenho nobilíssimo para o conseguir, para antecipar-nos o sofrimento administrando-o aos poucos. Porque ser mãe é procurar criar em nós uma espécie de imunidade, de resistência ao colapso, de amor e memória que a prolongue e nos prolongue no tempo.

Herberto Helder, em versos de superior condensação, resume o que podem ser todas as mães, todas as Úrsulas Iguarán, todas as mães ensandecidas pela perda, todas as mães que um dia nos criaram e rejubilam com uma neta nos braços: «As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam, porque se colocam/ na combustão dos filhos, porque/ os filhos estão como invasores dentes-de-leão/ nos terrenos das mães.» Abençoadas sejam, pois, todas, todas as mães a que não sabemos, a que não soubemos tantas, tão incontáveis e ignominiosas vezes, dizer sequer obrigado! Porque ser mãe, por último, será não desamar a quem lhe devota a ingratidão e o silêncio. Abençoadas sejam por tantas, tão incontáveis e prodigiosas horas de perdão!

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Outra sobre livros

Xelo Moya 03
Fotografia de Xelo Moya

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No momento em que escrevo estas palavras estou tomado por uma fúria descontrolada, que entre outros perversos efeitos psicomotores me faz escrever cada palavra como se tivesse nascido malaio, russo ou etíope, de modo que a fúria de fúria se alimenta e às tantas estou a martelar no teclado e a fazer dramáticas caretas para o ecrã branco à minha frente, parede de luz e de silêncio que me ignora, aliás, as graves razões por detrás e o significado de cada esgar de louco que lhe lanço. Não, não é um ótimo começo de crónica. É só um começo. De resto, imagino que quem me lê (dois ou três amigos que não atiraram ainda a toalha ao chão, para me servir de uma metáfora da moda) se pergunte quais serão, enfim, os motivos de uma tal perturbação, ou se questione (não o duvido) se o autor destas palavras não estará apenas a ganhar tempo para encontrar alguma coisa que valha a pena ser dita, andando daqui para ali e dali para acolá, às voltas e às voltas, a espalhar a fúria, como se espalha cinza, ou uma punhado de sal no gelo. Não, definitivamente o juízo não me acompanha!

Adianto a explicação: andando eu, esta tarde, em verificação de certos cartapácios e obras menos procuradas, descobri que uma infiltração de água cá em casa, uma dessas malditas entradas da chuva, quando há chuva (e este inverno tem havido muita, Deus seja louvado), veio descendo uma e outra e outra vez, sempre em segredo, sobre uma das mais altas estantes da minha biblioteca, e, assim mesmo, sem avisar, fez-me apodrecer (não é exagero, é apodrecimento sem tirar nem pôr) mais de metade da minha extensa e preciosa coleção de pintura da Taschen, levando consigo seis romances de Milan Kundera, um de Gabriel García Márquez (tudo Publicações Dom Quixote), umas quantas recolhas de contos (entre eles três dos sete volumes de contos de Anton Tchékhov, edição da Relógio d’Água), entre outros títulos que nem vale a pena aqui chamar à récita. Vi tudo com incredulidade. Vi o empastamento das folhas, vi o encarquilhamento da humidade, os círculos monstruosos, cancerosos, do bolor. Toquei na ferida. A polpa dos dedos levantou sem dificuldade páginas inteiras da minha religião principal, e pedaços, nesgas de papel, ângulos de prosa e pinturas imortais, que (a salvo de semelhantes infiltrações) jazem felizmente enxutas nas salas dos museus mais diversos do mundo…

Se não for inconveniente, nem excessivamente efeminado, permita-me o leitor (uso o singular, mesmo convencido de que serão afinal dois ou três) que chore. Permita-me que sofra o desgosto outra vez, que o reviva devagar com o secador do cabelo em riste, que faça ainda um derradeiro esforço para salvar o insalvável, e que gema, que grite, que berre, que barafuste, que bata com o punho, que ameace a frincha maldita por onde desceu esta gangrena, que ameace com dinamite e depois com cal e tinta o maldito lugar por onde o mal veio ao mundo. Ao meu escritório pelo menos!

E chegado a este ponto, ainda sem ter conseguido iniciar a crónica, devo explicar o seguinte: há uns dois meses, quando alinhava os poemas do meu último livro; quando precisei de qualquer coisa que sabia o que era mas não de quem; quando percebi que era uma citação de Mário de Cesariny de Vasconcelos, descobri o que não se deve descobrir. Que emprestei o Manual de Prestidigitação e não mo devolveram. E como um mal leva a outro, como uma falha nos aviva a memória de falhas anteriores, dei-me conta de ter emprestado também Horto de Incêndio de Al Berto e de não o ter em casa. E um tomo das crónicas de Fernão Lopes (dedicado a el-Rei D. Pedro). E também um romance de Isabel Allende (quem o tiver em sua posse, faça bom proveito). E era justamente para conhecer a real dimensão do problema que me propus fazer uma vistoria. Pelo que me propunha escrever uma crónica, a começar assim:

«Por causa de um prospeto conheci a poesia de Al Berto, por causa de um flyer conheci a de Mário Cesariny de Vasconcelos. Dois superpoetas do século XX (que viram a esquina do milénio), dois inconformados, dois rebeldes que (cada um à sua maneira) ganharam fama de malditos, ou, pelo menos, de mal-amados.

Se Horto de Incêndio me abriu a porta para o poeta de O Medo, foi o extraordinário «Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro» que me deu a conhecer Manual de Prestidigitação e, depois dele, Nobilíssima Visão, Pena Capital, A Cidade Queimada, Titânia e, já no mestrado, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (que afinal já conhecia, na versão mais curta de Nobilíssima Visão) e O Virgem Negra. Sigo a ordem por que os li e não a que seguiu o autor ao escrevê-los ao longo de meio século de paciência, polémicas e amor incondicional à arte de Homero.

Só esta tarde, aquando de uma arrumação que aqui não importa esmiuçar, é que me lembrei de o ter emprestado e não o ter recebido de volta. E porque o emprestei a alguém que agora se encontra em parte incerta, só esta tarde me inteirei da perda. Estou consternado! Os livros não são emprestáveis, especialmente os de poesia: eu já o devia ter percebido, eu que somo até hoje reveses consideráveis em relação a Mário de Sá-Carneiro, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen e Wisława Szymborska (neste caso derradeiro com a sorte de haver, entretanto, podido comprar um novo exemplar do volume “desaparecido”) e, por alguma razão os citei de início, também Al Berto e Cesariny.

Moral da história: venho por este meio, fria, solene e publicamente declarar a minha absoluta, voluntária e inegociável indisponibilidade para ceder doravante por empréstimo, ou outro igual expediente, qualquer livro de poesia, podendo nos restantes casos, desde que não seja a minha porção de teatro (grego, de Goldoni, Ibsen, Lorca, Brecht e Beckett), de ensaios (com Lourenço e Steiner à cabeça), ou de ficção (portuguesa, europeia, universal), considerar a hipótese de. Repito: os livros não são emprestáveis, nem riscáveis, nem dobráveis, nem sujáveis com impressões digitais, nem são bons lugares para guardar os números do Euromilhões e números de telemóvel. Pela parte que me toca, sou fundamentalista do livro limpo, do livro impecável, do livro inteiro e intacto, como o tipógrafo o pôs no mundo. E, dito isto, calo-me, porque o que tinha a dizer disse!»

Isto era a minha proposta. Mas compreendi que uma tal crónica, além de breve, além de estranha (seria realmente aquilo uma crónica), além de provocadora, não seria bastante para conter a expressão de miséria humana que revoluteia dentro do meu sangue a estas horas, tendo tomado eu conhecimento do desastre a que aludi inicialmente e que continua a empurrar-me as omoplatas para baixo, como uma carga de cimento sobre os ombros. Tonto, triste, totalmente desolado. Alitero em para sublinhar musicalmente o elegíaco tom em que me vou esta noite deitar, já não tomado pela fúria, mas tão só pela mágoa e frustração, de quem ama os livros (certos livros mais do que os outros) e os perdeu à força de os querer guardar no lugar mais extremo da sua caverna. Moral da história: antes os tivesse emprestado!

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Bibliotecas

Biblioteca do Mosteiro de Strahov
Fotografia de Jan Gravekamp

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Entre as mais poderosas imagens que o meu cérebro construiu do mundo, conta-se a do lugar imenso, insondável, sagrado, das bibliotecas. Um tal território não é apenas espaço, nem apenas depósito, nem apenas silêncio de livros. Mas verbo, verbo incontido e multiplicado, verbo prestes a conjugar-se, prestes a parir, prestes a replasmar o próprio verbo divino que é, desde S. João, o começo e a duração dos tempos. Um tal território é sede do fascínio e do abismo, do poema e do pó, da palavra e do vazio. Porque as bibliotecas são, muito para lá da metáfora do labirinto em que Borges as refundou, a metáfora da luz em que sonho eu!

A primeira que amei era escassa, mal iluminada, nos fundos de uma escola velha e obsoleta. Administrava-a uma funcionária carrancuda, sempre sentada e com o aquecedor aos pés, para quem a maçada de ter alunos a pedir-lhe que abrisse os armários (sábia e prudentemente fechados a cadeado) só competia com a maçada de ter de levantar-se de duas em duas horas para ir à casa de banho. Ainda assim, foi dentro das suas paredes que me repastei com aventuras do Superpato, ou com os vinte e um volumes do quinteto inesquecível de Enid Blynton, ou com as histórias e Pica-Pico e da Gaivota Laila de Friedrich Wolf. Benditos seis metros quadrados e repletos de mofo, onde me inteirei do bruxedo da Galinha Verde que Ricardo Alberty generosamente partilhou.

Ganhar coragem para entrar e desafiar os óculos em armação de osso da matrona, que uma vez retirados significavam cólera ou impaciência pelo menos, foi o primeiro sinal de que nascera para aquilo. E aquilo, que era muito diferente quando o professor Miguel Monteiro lá estava, deu-me a primeira noção do saber, do saber incalculado e incalculável que está à mão de semear e que, ao mesmo tempo, nos foge da mão.

Preciso de homenagear este homem. Professor de Língua Portuguesa (como eu me haveria de tornar), ele foi o poeta do giz, aquele que nos lia em voz alta fábulas de Esopo e contos de Hans Christian Andersen, excertos das fantasias de Júlio Verne e contos russos, quadras de António Aleixo ou de Fernando Pessoa, aquele que nos falava dos mitos e do teatro grego, que nos ensinou que texto quer dizer tecido, ou que as palavras mais não são do que roldanas que nos ajudam a puxar pesos enormes e que por isso devemos mantê-las bem oleadas, próximas e disponíveis. Não tive outro professor assim. Nenhum que haja conseguido de forma igual penetrar a carapaça (quase sempre oca) da burocracia e nos tenha feito ler, falar, ouvir e escrever com paixão, com amor e com sentido estético no que, dentro de uma língua, há de passional, amoroso ou literário.

Foi ainda o professor Miguel Monteiro quem nos desafiou a inscrever-nos como sócios na Biblioteca Municipal. O precioso cartão plastificado, com o nome e o número escritos à mão, foi mais do que a possibilidade de conhecer a Casa da Cultura, requisitar livros e levá-los para casa. Foi o passaporte para um mundo solene, cujas estantes e móveis austeros se deixavam antecipar pelo aroma da cera e da madeira, cujas amplas janelas (banhadas ora pela luz do sol ora pela chuva) se mantinham tão longe e tão perto da rua quanto o desejável. Havia com efeito um mundo para lá e outro para cá das vidraças, ambos tão deliciosos quanto imiscíveis pelo olhar, o que me faz, desde então, e num assomo de nostalgia, espreitar o céu aberto e o bulício sem som (como num filme mudo) a partir de dentro, e os lustres e pesadas lombadas, os leitores dobrados e silenciosos, a partir da rua. Em mim subsiste muito do antigo adolescente; primeiro com Altino do Tojal e Dumas; depois com os dicionários de latim e de grego, com enciclopédias, atlas e histórias universais, com Carl Sagan e Herbert Reeves, com as Memórias do Cárcere de Camilo debaixo do braço. Alcunhavam-me de Crânio e eu de néscios. As duas batalharam durante anos, na pior das guerras de difamação.

Quando nasceu a minha irmã Catarina, quando ingressei na Faculdade de Letras, o intelectual estava feito. Feito, mas com impurezas graves e falhas maiores. Não conhecia dezenas de autores portugueses (não me atrevo a cifrar a quantidade de estrangeiros), não dominava bem o inglês, não viajara, não dispunha de conhecimentos categóricos no que concerne à vida noturna, vivia recluso de ideias humanistas do tempo do senhor Damião de Góis, pese não o seguir no exemplo da erudição. Para os meus colegas de curso, apresentava o aspeto de um monge tardio e mais ou menos provinciano. E por essa razão me abastardei. Não apenas com a leitura compulsiva dos franceses, dos americanos, dos italianos, dos ingleses, dos alemães, dos russos (preferi quase sempre os que não integravam o currículo), como sobretudo com as surtidas para o jornal académico (onde frequentei tertúlias e publiquei uma ou duas crónicas de ocasião), ou com as bebedeiras na Ribeira, na Foz e na Boavista. Quase perdi o terceiro ano.

Ainda assim, e porque os amigos eram bons e muitos nesses anos venturosos, lá me endireitei e acabei a tempo. E porque precisava de silêncio e de solidão, o lugar onde me resgatei ao precipício foi a majestosa biblioteca sobre o Rio Douro, na ainda chamada «Vista Panorâmica». Poiso dos marrões, dos grupinhos de estudantes idiotas e das beldades de Filosofia, ela era o refúgio dos três ou quatro poetas que então já se afirmavam, com Daniel Faria à cabeça. E era o meu refúgio também. Como no filme de Wim Wenders, Der Himmel Über Berlin, que a saudosa professora Vera Lúcia Vouga exibia sempre às suas turmas, em Introdução aos Estudos Literários, eu imaginava-me uma dessas vozes interiores que declamavam de si para si Homero, Kierkegaard ou Noam Chomsky.

Vem-me muitas vezes à memória o profundo contraste de luz e sombra nesse espaço, uma torre com meia dúzia de pisos, onde li Dante, Petrarca, Gôngora, António Vieira, Poe, Machado de Assis, Baudelaire ou Breton. Não poucas vezes me exigiram silêncio, porque me distraio facilmente. Não poucas vezes me perdi a cismar nos rabelos e embarcações de carga que transpunham o horizonte, acompanhados pelo grito das gaivotas e pelos meus olhos fartos de Linguística, de Literatura ou de Metodologia. Lamentavelmente, não me assiste o dom da paciência que transforma homens comuns em excecionais. Fui sempre um leitor fantasista e um pouco tolo.

Em 2011 estive em Praga. Aí visitei a biblioteca do Mosteiro de Strahov, um exemplar da sua espécie que me comoveu até às lágrimas. Não é muito diferente da biblioteca do Convento de Mafra, por exemplo, mas, como muitas vezes sucede com as civilizações a norte, é mais despojada, mais pura, mais livros, mais saber, mais biblioteca! Sempre quis folhear um desses códices medievais, com iluminuras e letras em estilo gótico. Quis o destino que esse privilégio me pudesse ter sido dado em terras eslavas, nas mesmas salas e corredores por onde circularam Tycho Brahe e Johannes Kepler. E por tê-lo conseguido aí, sempre Praga morará no meu coração, como morará sempre a pequena biblioteca do Ciclo Preparatório ou a do meu quarto, onde guardo apenas os livros de poesia inquestionáveis!

Perguntaram-me há tempos se conhecia a nova biblioteca de Alexandria. Não conheço, infelizmente. Mas também esta moderna não me seduz como seduziria a outra, a histórica, aquela que desde os relatos de Heródoto e Tucídides me incendeiam a imaginação. Aliás, como as bibliotecas de Jorge Luis Borges ou a dos copistas d’O Nome da Rosa de Umberto Eco. Porque um ingrediente transforma um depósito de livros numa biblioteca, ou, na sua ausência, uma biblioteca num simples depósito de livros: a vontade de ficar, de permanecer, de regressar.

E é, por isso, que me orgulho de ter criado na Vila de Arões, onde vivo (no edifício da sua Junta de Freguesia), uma biblioteca. Pequena, mas funcional. Escassa, mas disponível. Incompleta, mas preparada para crescer. E é, por isso, também, que não poderia deixar de homenagear aqueles que trabalham todos os dias nas bibliotecas escolares, e que as convertem num espaço de acolhimento, de aprendizagem e de prazer. Não conheci nenhuma mais ativa, nem mais humana, nem mais bem-sucedida do que a da Escola E. B. 2, 3 do Viso, no Porto, sob o cuidado da Emília Pinho e da sua equipa. E, por isso, também ela me ficou. No coração, claro está!

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Delírios

Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003
Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003

           

Na cabeça enviesada de um doente passam-se coisas inexplicáveis, coisas como decerto as que descreve o senhor Brás Cubas nas suas Memórias Póstumas, labirínticas coisas que são o eco da batalha entre o devaneio e a razão, que é como quem diz entre a febre e doses cavalares de ben-u-ron.

Por qualquer motivo da minha compleição física, sou achacado a delírios, tão mais indescritíveis quanto fascinantes: sou amiúde um pássaro sobrevoando a minha casa e o meu bairro, vendo ao pormenor os vizinhos a assar pimentos e sardinhas nos respetivos fogareiros e a fazer-me sinais ameaçadores lá de baixo, como se fosse intenção minha roubar-lhes o petisco. Outras vezes, sou outra vez criança e fujo da escola, porque a minha professora tem uns horríveis lábios vermelhos e quer-me por força beijar. Não é raro ser abordado por personagens históricas, que sobem da tumba para me fazerem interrogatórios ou pedir conselhos. Já houve um que me veio pedir a devolução de dinheiro que alegadamente me emprestara… De todos o mais espantoso foi o velho Marquês de Pombal, que insistia roubar-me o telemóvel e ameaçava despir-me em público se não lho entregasse…

Recuperado destes episódios de bullying psicótico, pude rir ou ficar seriamente convencido de ser semilouco. Mas a loucura é uma caso muito mais complexo do que se pensa; quem assim o afirma é Emil Kraepelin, que diz também «alto lá e para o baile»: nem todos os fenómenos de perturbação mental são propriamente um caso de psicose, demência, neurastenia, histeria ou esquizofrenia. A febre não faz do seu portador um louco, como o livro de filosofia debaixo do braço de um estudante não o torna propriamente um filósofo.

Assim sendo, incapaz de decidir-me quanto ao que me cabe de manifestamente louco, ou ao que é exclusivamente do domínio da febre, comecei a anotar algumas dessas fabulosas aventuras, convencido de poder servir-me delas como delas se serviram nos seus livros Baudelaire ou Borges, embora num caso o absinto, no outro a cegueira tivessem dado uma ajuda preciosa no aprofundamento e correção das ideias. Simplesmente, não pude divisar até hoje como me seria útil descrever num poema o quanto fugi do sinistro Popeye (que me aterrorizou a infância e não só por causa dos espinafres odiosos), ou como dar seguimento numa novela às façanhas conjuntas com Zorro, o meu maior herói masculino até ter-se abandalhado com Antonio Banderas…

A verdade é que os meus delírios possuem pouca literatura: é lá coisa que se aproveite Dom Sebastião ser apanhado a fumar e a faltar à lição de piano? E que dizer de Afonso Henriques a levar dois estalos por faltar ao respeito à catequista? «Aqui quem manda sou eu, meu menino» — e di-lo com uma faca em riste. Não poderia explicar numa história da minha lavra porque leva o primeiro rei de Portugal um par de bofetadas da catequista, ou porque lhe chama essa terrível figura de avental «meu menino», ou porque recita ela a catequese empunhando uma faca de degolar galinhas…

Paula Rego, acostumada a visões deste calibre, dir-me-ia existir qualquer coisa de freudiano nos meus textos. E eu haveria de escutá-la com comedimento, com pundonor, com excitação. Porque me convenceria de habitar em mim, afinal, algum ADN de artista. Mas era preciso que eu soubesse multiplicar literatura a partir desses achados piréticos. Infelizmente, a única coisa que consigo é esgotar a paciência àqueles que me trazem chá e panos molhados à cama, me trocam os lençóis e me obrigam a mudar de pijama.

Pela minha parte, recupero de um fim de semana em que me fui tomado por um mistura de constipação e de gastroenterite (infundado o receio de gripe A). Na minha cabeça, como no areal repleto de despojos de A Sereiazinha, que Rego pintou em 2003, jazem incontáveis e incongruentes fantasmas de episódios mentais, que em breve serão recolhidos pelas vigorosas mãos dos meus enfermeiros domésticos.

Porque definitivamente há circunstâncias com que lido mal e de que tiro escasso partido. Invejo quem o faz, ou fez, como o grande Machado de Assis, por exemplo, que levou longe o talento de fazer render a contrariedade da doença. Mas os grandes são grandes, e com a devida vénia me retiro… para a sopa de arroz.

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