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Tinham ali, no centro da vila, o costume de estender os carvões ao sol. Eram longos tapetes formados pelos crivos e pelas padiolas, onde os pedaços negros da lenha já queimada esperavam ainda uma outra vida. Precisavam apenas de calor. Enxutos e escolhidos pelo tamanho, deviam depois ser ensacados e postos à lombeira das mulas e, a seguir, nos fornos das forjas, nas casas de pasto, nos lugares onde se precisasse de acendalhas.
Os carvoeiros ganhavam bem.
Tinham esta opinião os limpa-chaminés e também os almocreves: queixavam-se os primeiros do preço baixo da venda, os segundos do alto custo da compra. Ninguém meditava um segundo, no entanto, sobre o ofício teimoso de guardar e tapizar as ruas com os tições empoeirados desse carvão vegetal, de os limpar e escolher, de os apanhar com todo o cuidado e de os despejar dia após dia, uma e outra vez, até que lhes fossem enxugados todos os vestígios de humidade. Um saco de meia arroba destes restos limpos e secos e do tamanho de castanhas valia bem cento e cinquenta cruzados.
Um jovem frade peripatético, entregue sobremodo ao estudo dos livros – que folheava com mãos leves e limpas, enquanto se conduzia pelo claustro e pelos jardins do mosteiro –, deixou-se fascinar por esta poeirenta agitação dos carvoeiros, que mirava do alto como se faz a um carreiro de formigas.
Na sua imaginação maniqueísta, esses homens sórdidos eram operários do Diabo. E elucubrava tal pensamento por os ver tão próximos do lume, tão amigos da matéria queimada, tão hostis e boçais na mercancia dos arráteis de carvão.
O abade, um homem prudente, duvidava que pudesse separar-se o bem e o mal tão facilmente como se divide o dia e a noite. Rogava-lhe abstinência de palavras. O fradinho, porém, lia os fólios, sabia de cor, repetia a sua interpretação do pecado e dos homens que o personificam.
– Estes desalmados carregam a imundície nas unhas, na boca e no coração. Se alguém neste mundo conhece a Satanás, não tem nome que não possa caber inteiramente a seres tão espurcos quanto o são estes farrusqueiros.
No ano de 1809, confirmando as notícias terríficas, chegaram as tropas francesas. O mosteiro foi posto todo numa combustão desenfreada, consumindo as celas, a sala do capítulo, a biblioteca e o refeitório e o albergue.
Encolhido num esconso com as mãos enegrentadas, o rosto cheio de fuligem e a alma tinta de medo e ódio, o jovem frade cogitava. Lucas era o seu nome. Frei Lucas não possuía ainda vinte anos. Cogitava sim, porque cogitar era o seu verbo. Não conhecia outro de que gostasse tanto.
01.01.2025
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