Sempre gostei das suítes de Bach

Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para escutar os meus passos na terra molhada. Para ler devagar os meus pensamentos, com a precisão de uma quiromante a inspecionar-nos as linhas enviesadas da mão. Às vezes venho com o cão, mas muitas mais atrelado apenas à minha sombra. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Preciso de vir para poder continuar a acreditar nessa coisa ampla, desconcertante e bela que é a vida. 

O parque é enorme. O maior da cidade. As árvores são quase todas centenárias. O lago a meio, que no verão se enche de turistas e de gansos selvagens, é neste mês uma espécie de espelho petrificado. Nele, como na cabeça de um velho, há memórias prisioneiras. E eu sinto os vidros boiar, quebrados por funcionários diligentes, a quem cabe impedir que os peixes morram lá em baixo, asfixiados e sombrios. O parque é uma clareira brutal entre os arranha-céus. Uma das minhas personagens inquieta-se. 

‒ Devia haver gente a fazer o mesmo às pessoas. A impedir que tetos e paredes frias, transparentes e intransponíveis as afastem umas das outras. A impedir que uma solidão irremediável as faça morrer sozinhas. Não acha? 

Respondo que sim. Que devia haver funcionários capazes do milagre de impedir que tetos e paredes de gelo construam solidão. Capazes de tratar das pessoas como se trata dos peixes neste lago! Respondo que uma terrível maldição se abateu sobre a mais inteligente das formas animais, a ponto de a destruir por dentro. A ponto de lhe apodrecer o coração, que é o mais valioso que as pessoas têm dentro de si. Respondo que sim. Respondo que andamos todos a falar de afetos com ciência, mas sem afeto. Respondo que os parques são lugares onde talvez pudéssemos todos aprender um pouco com o silêncio. E com ele chegar à verdade. E com ela chegar à razão por que festejamos as datas e nos entregamos a uma espécie de euforia coletiva quando as datas chegam e nos comportamos como se soubéssemos o que as datas celebram, sem sermos capazes daquilo que celebramos! 

Sempre gostei das suítes de Bach. Sempre gostei de me entregar ao devaneio matemático dessa obra-prima do século XVIII. Sempre gostei da paz e do amor que nelas transborda do homem e o religa às estrelas e às coisas mínimas. E é por isso que hoje caminho pelo parque com os headphones postos; com o cachecol embrulhado no pescoço; com as personagens partilhando as minhas luvas de pele, olhando o mesmo que eu, questionando o que há muito se tornou em mim uma insaciável interrogativa. 

‒ O que significa acreditar? 

Por estes dias a cidade converteu-se, como seria de prever, numa insaciável feira de cifrões, luzes e reclames natalícios, vagas insinuações de hinos de amor e promessas de paz, alusões à fé e à esperança na humanidade, tudo muito entremeado por produtos de alta tecnologia, roupa interior e marcas de vinho. 

‒ O que significa acreditar? 

A cidade converteu-se em filas irascíveis nos mercados, insultos nos parques de estacionamento, azedas obrigações familiares que o cartão de crédito atenua. 

‒ O que significa acreditar? 

Como os antigos santos afasto-me, refugio-me nos possíveis lugares de eremitério. Por exemplo neste parque enevoado e vazio. Por exemplo na escrita. Por exemplo em cada um dos seis movimentos (prelúdio, allemande, courante, sarabanda, galanteria, giga) das seis maravilhosas suítes que Johann Sebastian Bach compôs para violoncelo. Com elas me aproximo dessas vozes que dentro de mim rodopiam e me interrogam, me fazem abrir portas e janelas sobre os domínios obscuros da razão. 

‒ O que significa acreditar? 

‒ Não sei, porra! 

Como posso saber o que significa acreditar quando me ensinaram o verbo, tanto a propósito do puto nascido numa qualquer gruta ancestral da Palestina, como dos cimos do poder, dinheiro, conforto, supremacia, a que a humanidade se propôs desde sempre? 

‒ Não sei, porra! 

Venho passear neste parque quando os dias, como insuportáveis alucinações, me desgostam e me tornam vítima da pele que herdei. Quando, como hoje, desacredito profundamente na humanidade, na hipócrita humanidade que me ensinou a hipocrisia! Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para dizer Não sei, porra!, para escutar com emoção, com uma profunda paz interior as suítes de Bach, para escutar os meus passos na terra molhada, para compreender o peso deixado pelas minhas botas no tempo e no espaço!

‒ Não sei, porra!

Não sei o que significa acreditar. Se ao menos pudesse a humanidade valer-se a si mesma, cuidar dos seus próprios males, cumprir metade dos seus sonhos… Se ao menos meia humanidade gostasse das coisas que não têm preço, que não se compram, que não se oferecem embrulhadas… 

Venho para estar só. Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Não sei o que significa acreditar. Sei tão-só que nalguma parte do universo, nalguma galáxia ou hipergaláxia, nalguma nesga física ou metafísica do espaço-tempo, algo ou alguém terá resposta para essa pincelada de ilusão que nos submerge, algo ou alguém capaz de abrir brechas na redoma de gelo que, como aos peixes de Hyde Park, nos ameaça asfixiar nesta manhã fria de dezembro.

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Pessimismos e happy ends: um guião, o filme

Sven Fennema
Fotografia de Sven Fennema

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Acordei esta manhã encavalitado num ponto de interrogação: porque somos todos tão pessimistas? Todos, sim! Ou quase todos! A esmagadora maioria dos espécimes da espécie! Pessimistas, avessos à ideia de sorte, descrentes de que o happy-end ainda se vende nos mercearias antigas e nas lojas gourmet, aziagos, autorrebaixadores, soturnos. Porquê?

Eu sou um dos tais.

A vida deu-me sempre com o rolo da massa e é caso para dizer que me habituei a caçar o meu quinhão de felicidade e a fugir através de buracos impossíveis na parede. Sou dos que acham que isto não vai passar, que isso não tem remédio, que aquilo não se resolve num passe de mágica. Sou dos que pedem por favor que não me massajem as costas com meia dúzia de palmadas amigas e o ego com duas frases exclamativas. Sou dos que pensam que a minha equipa ainda vai sofrer um golo nos cinco minutos derradeiros do jogo, que desaba num desânimo invencível se ela tem só meia hora para empatar a porcaria do jogo. É-me inato descrer na possibilidade de um golo salvador a meia hora do fim.

Eu sou dos tais, dos derrotistas, desse partido principal de homens e mulheres calejados.

E, contudo, acordei esta manhã a meditar em factos inegáveis e objetivos históricos. Escapei com menos de dois anos aos ataques da bronquite e da asma. Escapei a um atropelamento aos doze. Mais tarde a um aparatoso acidente de viação. Escapei a uma peritonite apendicular aos vinte e um. Escapei, aliás, a quase todas as ites que vêm certificadas na legislação (otites, gengivites, gastroenterites, a uma parotidite infeciosa). Escapei intacto a todas as turmas de todas as escolas por onde passei, como professor, formador, estagiário ou simples assessor pedagógico (muitos afundaram nestas selvas não cartografadas). Escapei a manobras partidárias e a habilidades políticas. Escapei aos desgostos, às perdas, às renúncias e aos vexames. Escapei até ao tribunal terrível do espelho e aos castigos da consciência, algures no alçapão da alma (ou do córtex cerebral). Ainda não morri neste país demente e corrupto!

Pessimista até dizer chega.

E, porém, esta manhã acordei rodeado por um silêncio de pássaros cantando (peço encarecidamente que saiam e batam a porta, se se põem para aí, do outro lado da parede branca, a assinalar-me paradoxos, oxímoros e nonsenses). Acordei desempregado, mas saudável. Abatido pela fadiga, mas depois de uma noite intensa de escrita. Triste, mas feliz. Porque acordei. Porque aqui estou, diante vós, confessando-me pessimista em greve, derrotista em crise, se calhar (afinal) talvez um pouco, um pouco mais, de otimista, vencedor até aqui nos palcos em que a vida e a morte debateram posições e se convenceram de que o seu jogo de xadrez deve continuar.

Acordei agarrado à bengala de uma profunda meditação.

Porque nos acontece (não raro) desatarmos a questionar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo. Mais ou menos como quando decidimos arrumar umas coisas na garagem e damos por nós a remodelar a casa, a pintar as paredes, a trocar de carro. E eu acordei assim, triste, feliz, falando em voz alta para mim mesmo em silêncio, perguntando, respondendo, questionando.

Que raio! Porque não levantar o traseiro e fazer alguma das coisas que sempre quisemos ter feito? Porque não meter na cabeça de uma vez por todas que somos tipos fantásticos, com humor, charme, inteligência? Porque arrastar, como uma sombra, como o peso de uma maldição, a crença de que acabaremos mal, enxotados, sarnentos, lambendo as feridas? Porque não preferir a luz limpa de uma narrativa boa, com final memorável? Se os amigos não faltam? Se a cabeça, mesmo muitas vezes no meio das nuvens, continua acesa e a fervilhar de ideias? Se o coração cicatrizou de todas as punhaladas e ainda bate?

Talvez tenhamos nascidos gauches como Carlos Drummond de Andrade, mas não nascemos avessos à simpatia, nem à confiança, nem à certeza de que quem iniciou este filme (com um argumento de tal qualidade) o pode terminar melhor ainda. Deus, os deuses, as leis da Física Quântica, todas as leis do universo, parecem ter sabido sempre acomodar as coisas. Admitamo-lo: a própria existência é um acidente feliz.

Bebo, por isso, o meu café matinal com aquela sensação de que algo em mim aconteceu, de que qualquer coisa transmudou, como quando um grânulo de areia sai finalmente de dentro da peúga atormentada. De resto, o mais extraordinário dos epílogos, como num filme de mestre, é aquele sobre o qual nada sabemos, de que pouco suspeitamos, em que nos resta esperar. E este, o da vida, não duvidemos, é obra para limpar os óscares todos!

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Um povo que não ama a poesia é um povo estúpido: ponto!

Victor More
Fotografia de Victor More

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Aceitemos o facto: nós, os portugueses, estamo-nos positivamente marimbando para a poesia. Acrescentemos essa a outras famigeradas sinas: nós, os portugueses, damos o litro a escrever poesia, mas estamo-nos nas tintas para a poesia dos outros. Nós, os portugueses, como os demais povos que já foram um dia burgueses, que tiveram já na sua História a fase do ócio, da novela e dos sonhos cor-de-rosa, gostamos é da Carochinha. Matemática, ópera e poesia é que não! Que horror! São abstrações que dão trabalho (levam séculos a aprender) e tempo é coisa de que nós, os portugueses, não possuímos. Em regra, depois das séries da TVI, do futebol e das tricas políticas, nós, os portugueses, mal conseguimos olhar para a filharada, para as contas nos envelopes por abrir ou para o aviso do condomínio. 

Não custa nada aceitar. Basta aceitar! O facto é este: na terra de Fernando Pessoa, o tuga gosta é do Tony Carreira. Camões é fixe, mas desde que deixou o Benfica é só uma glória enfeitada na praça com merda de pombo. Antero de Quental, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, Sophia, Torga são uns chatos que às vezes aparecem mesmo à frente dos nossos olhinhos, escritos nas placas toponímicas. Devem ter sido bons atores de algum Big Brother primitivo. Mas esta rapaziada, este mulherio bronzeado da TVI, este luxo de mamas de silicone e cabelo à moicano depressa faz esquecer os cotas do passado. É a lei do tempo. É tudo sempre a correr. Que o digam os portugueses, que mal começam a ler uma extensa reportagem de dois parágrafos no jornal do metro têm de se interromper, visto a saída ser na estação a seguir. O facto é esse. Aceitemo-lo. Nós, os portugueses, estamo-nos a cagar para a literatura, especialmente para a poesia. 

Pela parte que me toca, contento-me com a meia dúzia de amigos que põem gosto nas minhas publicações do Facebook. Está lá a foto. Está lá a hiperligação. Está lá a citação de qualquer coisa (lidimamente poética) que publiquei no blogue. Tudo muito limpo, muito virtual, muito apelativo. Contento-me em publicar digitalmente, porque entretanto (reza-se por aí) a crise chegou às editoras, que gostam muito dos novos, lhes admiram a coragem, lhes vaticinam prosperidade, mas que entretanto lhes fecham as portas. Menos aos novos já consagrados. Esses são vinho de outra pipa. Esses sempre vendem alguma coisita que dá para cima de quatro dígitos. Desde que escrevam de vez em quando (pode até ser; muitas vezes é) um mau romance. Só para acertar as contas, equilibrar números, projetar a imagem… 

Claro que um poeta pode ter sucesso. Imenso, aliás. Nem precisa de se esforçar por aí além. Pode atirar-se às rimas. Poder aguçar a redondilha. Pode treinar primeiro com quadras de S. João. Ganhar um prémio ajuda. Depois é só pedir um patrocínio à Junta de Freguesia, ou à Câmara, ou ao primo que tem um negócio de fazendas. E lá sai uma «Seara de Versos», umas «Folhas Avulsas», um «Parnaso Popular». Depois é vê-lo faturar! Basta impingir um exemplar a cada cliente, no fim de lhes engraxar os sapatos e limpar as mãos aos desperdícios. Basta estar à porta da igreja, no final da missa. Basta pô-lo no Talho da Dona Rosalina, ao lado dos chouriços e do salpicão! 

Também eu comi o pão que o diabo amassou para chegar às livrarias. Consegui-o a custo, engolindo sapos, entretendo-me com vigaristas, perdendo o tempo a fazer de conta que acreditava nas explicações. De toda a poesia que fiz sair em livro não lucrei até hoje um cêntimo. Exceto, claro, o que ganhei nos prémios. O país não tem como pagar a abundância de génio e de candidatos ao Dicionário da Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado. De resto, «direitos de autor» é uma daquelas expressões que provocam asma. Tosse-se muito quando se pronunciam as três palavras. Um tipo com vinte e poucos anos imagina-se a dar autógrafos, a responder às entrevistas, a ser conhecido na rua. Só a calvície faz compreender (mais vale agora do que depois) o sujo pragmatismo do dinheiro. Faz-se perguntas à mesa do café. Volta-se a tossir muito. A conversa, como a viagem daquele agrimensor de Kafka, não leva a lado nenhum… 

Um tipo, por maior poeta e boa pessoa que seja, farta-se. Um dia diz «Puta que pariu esta merda!». Um dia chega mesmo a ameaçar «Meu grande filho da puta, quando pagas o que me deves?». Diz outras coisas afins (limito-me a citar), mas acaba por desistir. Os poetas são seres instáveis, cansam-se depressa, não sabem senão pensar em metafísica. Prova a história (e a fonologia também) que decência não rima com editor. E um poeta, ainda que vibre fundo o desespero, acaba por encontrar outra solução. 

Estamos na época da edição de autor. Estamos a voltar ao começo, ao tempo em que Camões, com Os Lusíadas manuscritos debaixo do braço, ia mendigar esmola para pagar a tipografia. Saibam os portugueses que o caché no tempo de Camões era ridículo. Não, portugueses, era tanga aquilo há pouco: Camões não foi jogador do Benfica. Não, Camões, não era o tipo do Conta-me como foi! Quer dizer, também havia um Camões no Conta-me como foi. Mas estamos a falar doutro Camões, portugueses. Este Camões era poeta: um desgraçado; passou pessimamente. Para compensar deram-lhe um feriado. Sim, portugueses: o 10 de junho! Não, portugueses: tenho a certeza de que Camões não jogou no Benfica! 

Mas os feriados são caros — não queiramos ouvi-lo da boca do Primeiro-Ministro! Não conto, portanto, que me deem um. Nem que me fique o nome gravado numa tabuleta, depois de uma rotunda, ou à entrada para um beco sem saída. Nem que me leiam (com voz rouca, pose melodramática, lágrimas nos olhos) nos saraus semanais da associação cultural e recreativa, sita na rua-de-não-sei-que-antigo-ministro-do-ultramar. 

Contento-me com a minha meia dúzia de leitores. Com a perspetiva de que melhores dias surjam no horizonte e com eles uma geração inteligente, capaz de saborear um poema como se saboreia um pitéu; capaz de ler um poema como se lê a bula da Aspirina, com inteligência e sobriedade; capaz de ensinar aos filhos um poema como se ensina um conto popular ou uma adivinha… E não digo um poema recolhido do Jornal de Notícias. Digo um poema de Luiza Neto Jorge, um poema de Nuno Júdice ou um poema de Herberto Helder. 

Estou a exagerar? Não, nós, os portugueses, é que estamos demasiado acostumados ao pouco. E a pouquidão (a palavra existe e assenta-nos que nem uma luva) não nos tem levado senão a preservar nos genes, com o passar dos séculos, contra o ardor da História (como num frigorífico) a mesquinhez, a futilidade e a inveja. Por contraponto, um povo capaz de vibrar com um bom poema será (é) um povo inteligente, sensível e evoluído. 

Não peço glória. Peço um povo em condições. Foda-se, portugueses! Isso é pedir muito?

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Amélia Tarruca

Amélia Pereira (1936)
No seu casamento, em 1936

in memoriam

A minha avó Amélia nasceu há precisamente um século! Não é fácil encontrar palavras que descrevam esta mulher, essa matriarca cujos dias terminaram em grande sofrimento físico, desprovida de fala, paralisada e incapaz de alimentar-se. Expirou no preciso lugar onde escrevo estas palavras, o mesmo pequeno quarto que a viu atravessar um longo outono até perder-se no nevoeiro da cegueira, quem sabe rodeada pela memória dos seus mortos e das muitas imagens que aquilatou em vida.

Nas redondezas ficou conhecido como Mélia Tarruca, nome que ainda hoje perdura, associado a gratas recordações dos que a conheceram e lhe sobreviveram. Era desbocada, sim, capaz do palavrão intempestivo. Era enérgica e reativa, a ponto de comprar uma pistola de cerâmica (dizem que igualzinha a uma pistola de verdade) para ajustar contas na taberna com o marido adúltero. Era humana e sensível, de uma humanidade e sensibilidade genuínas, timbradas pela fome e pela miséria, por duas grandes guerras, pela necessidade de se sujeitar às agruras de um tempo em que nem os campos nem a indústria emergente eram garantias de sustento… Havia sempre um naco de broa, uma gabela de couves, meio caneco de feijão, meia dúzia de ovos, às vezes uma galinha para dar a quem precisasse. A míngua tornou equitativa e generosa a gente desta mesma aldeia onde lhe fizeram um funeral sem fim…

Se fosse viva, Amélia Pereira completaria hoje um século. Cem anos de agruras.

Não lhe conheci a adultez, só a velhice. As histórias que dela me chegavam na infância dificilmente podiam coincidir com a anciã acamada, incapaz já de articular palavra que se compreendesse. Minha mãe, que por ela velou até à morte, recebeu-a cá em casa devia eu ter seis ou sete anos. No princípio ainda caminhava um pouco, com a ajuda de uma bengala. Depois houve uma cadeira de rodas. O jornal da paróquia fotografou-a assim, como um bom exemplo cristão. Vieram duas meninas entrevistar, uma munida de caneta e caderno, outra com a máquina fotográfica. Recordo-me vagamente de tudo isto, que era para mim a distinção de classe, a vaidade de possuir uma avó famosa.

Com o tempo a saúde esfumou-se. Havia que pôr-lhe fralda. Eu ia comprá-las à farmácia. Eram sacos enormes, que não me custavam carregar, porque naquela época os miúdos eram todos homenzinhos e sofria-se de vergonha quando não se podia carregar pesos como um adulto. Minha mãe contou então com a ajuda de minha tia Conceição e ambas davam as voltas, como se dizia, à velhinha. Às vezes havia visitas. Com o tempo rarearam. Porque as pessoas deixaram de ter um motivo para vir. Porque a conversa era a bem dizer um monólogo. Minha avó respondia com monossílabos, revirando os olhos, de quando em quando deixando correr as lágrimas … Sei tudo isto porque espreitava por detrás da porta, à espera que as visitas trouxessem um cartucho com doces… Ou bananas. Incompreensivelmente as visitas traziam cachos de bananas e eu ficava fascinado com as visitas que as deixavam amarelejar em cima da cómoda e se despediam da minha avó como se faz a uma criança pequena, com inflexões de voz artificiais e claramente paternalistas.

Só compreendi exatamente quem foi esta mulher após a sua morte. Muita gente me contou sobre ela histórias preciosas, informando-me do seu caráter tenaz e frontal. Por exemplo, a história de quando descobriu a amizade do meu avô, seu marido, por certa mulher de índole incerta. Avisada por vizinhos, entrou de rompante na tasca onde os adúlteros confraternizavam com a escumalha do vinho e das cartas. Pediu que lhe enchessem o vasilhame do azeite e puxou da pistolita.

«Manelzinho, encha-me esta botelha de azeite, enquanto eu vou ali fazer duas mortes!».

A amante fugiu espavorida pela porta. Meu avô, espavorido também, lançou-se por uma janela alta, em direção às traseiras da taberna. Morreria sem saber onde a mulher tinha obtido a arma e onde a guardara. De caco, explicam-me, entre risos, E também esse pormenor ele ignorou até ao fim dos seus dias. Mas o bastante para acabar com as veleidades românticas fora do casamento!

Contam-me que, já com vários filhos pequenos, se deslocava a pé até Vizela, para trabalhar numa fábrica têxtil. Aí cuidava do mais novo, deixando a casa entregue à filha mais velha, pouco mais que uma criancinha. Trabalhava-se muito, ganhava-se pouco, desfazia-se a saúde nos teares e na violenta desagregação do mundo rural em que havia nascido a década de 30. Mas também aí se moldava a têmpera combativa e o arregaçar de mangas que tornou a família incapaz de aceitar que o céu lhe caia em cima sem ao menos ensaiar uma resposta.

Dos filhos que teve sobreviveram sete. Quatro raparigas e três rapazes (dois dos quais mobilizados para a Guerra do Ultramar: um chegando no dia em que o outro partia; o terceiro fugindo para França, a salto). Não se diga que enfrentou a triste sina de os enterrar, porque não aconteceu tal, felizmente. Meus tios regressaram todos, sãos e salvos. Ainda hoje são sete os filhos que sobrevivem, com suas mazelas, mas vivos e amigos uns dos outros. Quantas famílias não se podem gabar do mesmo?

Se fosse viva, minha avó Amélia talvez nos desse com a bengala e nos chamasse alguns nomes pouco simpáticos. Metia-nos na ordem. Era assim com as filhas, por exemplo.

Contam que amanheceu o dia em que determinado padre se aproximava pelo caminho rural, mesmo ao lado da casa velha. Vinha devagar, meditando o seu breviário e os seus pensamentos. O padre, ao que parece, não era boa rês. E o dia corria mal por causa de certo número de frangas que haviam escapado do galinheiro a andavam escarafunchando o cebolo. Minha avó praguejava alto e bom som contra as filhas negligentes. Fizeram-lhe notar a aproximação do clérigo.

«Eu quero que o padre vá para o caralho e vós também, minhas grandes putas!»

Assustado, o padre persignou-se; elas cobertas de vergonha refugiaram-se como puderam. Ficou a velha Tarruca sozinha na leira, de vassoura em riste, berrando e espalhando o terror entre as galinhas tresmalhadas.

É de longe o meu antepassado mais conhecido nas redondezas e, sem dúvida, o ascendente de que mais me orgulho.
Porque esta avó proverbial, que não tinha pejo em desdenhar de um mau padre (hipócrita, ao que parece), era capaz, em contrapartida, de mandar uma filha com um açafate cheio de víveres a casa de fulana, beltrana ou sicrana, a quem o marido dava porrada como milho mas não o dinheiro para se governar.

Sirvo-me das palavras dos outros, da memória dos outros, do regozijo dos outros para compreender a razão deste apreço pelo “politicamente incorreto” que me corre nas veias. Talvez o instinto para desprezar as inutilidades e me conservar num torrão afetivo, que há de ser sempre escasso, mas incorruptível!

Se fosse viva, Amélia Pereira, mãe, avó, criadora de filhos e de netos, faria hoje cem anos. Escrevo no preciso lugar onde expirou, às primeiras horas do dia 27 de setembro de 1994.

Como escritor e cronista da família, cabe-me conservar, pelo menos um pouco mais, este relicário de memórias e de o passar aos outros… Quando explico a algum velhote da terra a minha ascendência, o parentesco com a Mélia Tarruca, logo um amplo sorriso fraterno nos envolve aos dois, como a capa de Martinho.

«A sua avó era uma grande mulher», «A Tarruca era uma mulher muito direita!», «A sua avó matou muita fominha, Deus a tenha!»

Nasceu há cem anos, a 15 agosto de 1913.

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Sempre fui um gângster

Christophe Verdier
Fotografia de Christophe Verdier

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Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Batoteiro, apaixonado, zaragateiro, intempestivo, amante da tarefa acabada. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos — sejam poemas, sejam acertos de contas — porque um bom filho da mãe não deixa nada a meio; um bom filho da mãe gosta de morder o cigarro enquanto conduz à noite e faz grandes reflexões, com Coltrane, Chet Baker ou os Morphine (se for mais da minha onda) em fundo; um bom filho da mãe distingue as boas das más ações, mas assume-as a todas sem medo, sem hipocrisia e sem moralismos. Um bom filho da mãe tem um orgulho verdadeiramente gangsteriano naquilo que faz e, arrisco dizer também, em recusar aquilo que não faz!

E o que não faz um gângster? Por exemplo?

Por exemplo lamber botas! Por exemplo pôr-se com merdas quando tem que encarar um tipo desprezível (e há tipos desprezíveis, meros rebentos de infâmia e dejeção, a quem não pode ser concedido sequer, na pior aceção — a que lhe confere o topo da escala social — o título de gângster) e explicar-lhe sem rodeios que são uns merdas! Por exemplo declinar a oportunidade de dar uma bofetada a um palerma que fala em direitos e esquece as obrigações. Por exemplo perdoar um tiro a outro filho da mãe que anda há muito a pedi-las e sabe que anda. Por exemplo aceitar palmadinhas nas costas de tipos que usam fato às riscas, botões de punho, sapatos de verniz e perfume a 500 euros o frasco de 100 mililitros.

(Faço um parêntesis para emendar o raciocínio e impedir conclusões apriorísticas: nunca dei um tiro a ninguém! Por manifesta falta de formação específica na área, circunstância que aliás muito penaliza o meu perfil mafioso. Mas não o lamento! Sou um mafioso bom, devo insistir!)

Sempre tive, assim como assim, uma queda para o bandido. Porque a cabeça de um indivíduo pode esconder um laboratório de malfeitorias. Vilezas puras, como roubar a Shakespeare meia dúzia de versos e tomar de assalto um coração puritano. Patifarias como mandar às urtigas um curso superior e ir à procura da felicidade onde ela se encontra, nas montanhas do Tibete ou dos Andes, nos fiordes da Noruega ou entre as cow-girls do Texas. E quem diz o curso superior diz outras coisas superiores como a herança, o casamento ou os amigos no clube social. Um biltre que faz uma maldade destas, que se mete à estrada com a viola às costas e sem mais vontade que a de pensar em si (cantando «And a new day will dawn for those who stand long,/ And the forests will echo with laughter») merece, senhores e senhoras, um enorme aplauso… É um infame, que deixa para trás os estudos, uma família furiosa, uma ex-mulher vingada na justiça, um grupo de snobes. Mas que merece, senhores e senhoras, um aplauso do tamanho do mundo! Um aplauso do tamanho do futuro! Os gângsters fazem coisas destas…

Eu fiz! Rejeitei noites de prémios onde me queriam bem vestido, barbeado, perfumado. Matrimónios que me impunham a máscara de manso, do amestrado, do maridão. Compromissos políticos onde me desejavam seguidista, cacique, acéfalo. Universidades que me pediam teses bem escritas, ortodoxas, balofas. Editoras onde me exigiam paciência, más contas, conformismo. Amigos que me brindaram sempre com esquecimento, silêncio, por-favores! Um pulha faz coisas destas, faz coisas muito piores, fá-las sem pestanejar!

(Faço outro parêntesis para explicar que estas ditas outras coisas muito piores me não são estranhas. Uma vez rejeitei um cargo assaz cobiçado numa dada prestigiante instituição, porque gostando do cargo e da instituição depressa compreendi que me usavam em modo de arma de arremesso, ou como castigo político para quem até aí o exercia. E eu disse que muito obrigado, mas não!)

Eu faço coisas destas. Sempre fui um pouco gângster. Até usei barba, boina, charuto. Até li os pensamentos anarquistas de Rousseau e os de Godwin. Li todos os romances de Mario Puzo e em tempos devorei uma biografia do Al Capone. Até usei toda a poesia de todos os tempos para ser poeta a tempo inteiro (mesmo quando assalariado). Usei-a para chantagear intelectual, moral, civicamente. Máfia pura! Até me servi de uma t-shirt do Che Guevara (uma que dizia «Yo no sé porque me pongo una camiseta del Che») para conquistar os favores de uma guevarista de olhos verdes no sul de Espanha.

Sempre fui um pouco gângster. Um aldrabãozeco! Um facinorazinha com dever de consciência, desta mesma consciência de que me sirvo agora e muitas vezes para renunciar às tentações, enganações, seduções, opressões e obsessões de Satanás. Multipliquei adversários e inimigos. Tanto na literatura, como na rua. Gosto de me recordar deles, enquanto afio as facas e limpo o fuzil dos meus pensamentos (admito ser também um adorável fazedor de metáforas parvas). Gosto de me recordar também de torpezas quando ando depressivo e não encontro o isqueiro ou um café aberto à noite. Uma boa luta, uma pirraça das melhores, um cagaço dos grandes mantêm-nos vivos, já o repetia o Zé do Telhado.

Pela minha parte limito-me a ser discreto, entrando de mansinho na cena, com os Morphine em fundo, janela aberta, o fumo do cigarro misturando-se à neblina, o carro levando-me ao hotel combinado, o dedo em riste, a alma limpa, a noite prometendo — amor, companhia, uma boa história…

Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Não me pesa demasiado afirmá-lo. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos. Eficientes. Na hora. Senhores e senhoras, por aqui me esgueiro. Boa noite!

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O que é um grande poeta?

Fotografia de Aaron Burden

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O que é um grande poeta? Sim, um poeta, digamos, da dimensão de Homero? De Safo? De Petrarca? De Shakespeare? De Baudelaire? De Breton? De Celan? De Herberto Helder? O que é preciso em rigor para se ser um?

Um professor de literatura garantia há não muitos anos que a comparação de grandezas, fosse entre poetas, impérios ou galáxias, depende muito mais do nível de satisfação sexual dos observadores do que da massa, densidade, tamanho ou longevidade dos observados. A frase chocou. Uma vez, duas, três vezes, sempre. Porque este professor de literatura parecia não levar nada a sério, mesmo quando publicava artigos capazes de rivalizar em erudição e hermetismo com Husserl, Russell, ou Georges Steiner. «A grandeza ou a pequenez é, antes de mais, coisa para se averiguar na casa de banho [sic], com a ajuda de uma vulgar régua de desenho…» Extravagâncias…

Não que não existisse por ali uma pontinha de génio, como anotaria Eça de Queirós. Não que não houvesse mesmo um fundo de verdade, uma frincha para a luz, digamos, porque havia. Havia até uma resposta para essa malsinada pergunta que me ocupa o título da crónica e a cabeça, não agora, mas desde os vinte anos. Porque alguma coisa subsiste de inútil na comparação de factos, de factos que só seriam efetivamente comparáveis num universo regular e coerente. E o nosso é tudo menos regular e coerente. Menos ainda eterno. Um dia destes as estrelas apagam-se, as galáxias esgarçam-se, o Big Bang perde a sua imensurável força, encolhe (ou será que explode? Ou que implode?) e cá se acabam as comparações…

Mas, mas (e insisto no mas), um leitor de poesia sabe distinguir o poema que agrada do poema que faz tremer as mãos. Sabe diferenciar o poeta bom, que se saiu (afinal) bem com a aguardente de medronho, do poeta que nos leva às lágrimas. Não falo dessas lágrimas sujas de rímel e pó de arroz, mas daquelas que verteu Mecenas e Otávio César Augusto: lágrimas de espanto. De incrédulo reconhecimento da perfeição. De agradecimento!

O leitor de poesia sabe comover-se com a Ilíada. Uma epopeia, uma batalha que decorreu (se é que alguma vez teve realmente lugar) algures na costa turca, onde os gregos (ou os seus antepassados) semeavam uma zona de influência. Homens matam, homens morrem, uns heroica, outros covardemente. Outros sobrevivem. Um, o mais singular de todos, volta as costas à querela, furioso com o chefe da sua hoste, o pastor dos homens, que o maltratou… O leitor de poesia vê que os deuses conspiram, (uns por despeito, outros por amor), vê que as mulheres e filhos dos troianos se assustam com o fragor das sucessivas batalhas. Que esse terror é ainda o nosso terror, que essas mães e essas crianças são ainda as nossas e foram as de sempre, em toda a história ensopada de sangue, que é a nossa!

Em contrapartida, o leitor cansa-se com a interminável subida das almas ao Purgatório de Dante. Sente-se torturado pelos maneirismos de Gôngora, nos floridos de Boileau, com as exasperações românticas de Byron. E coça a cabeça (por não saber muito bem o que achar deles) ao ler alguns poemas do Pessoa ortónimo, que são muito alarido inteletual, muito enfatuamento estilístico, um não-ir-a-lado-nenhum, como um cachorro em círculos, abocanhando a cauda…

Porque a mesma infinita embriaguez que nos faz delirar lendo em voz alta ou em silêncio, as grandes odes de Walt Whitman, Álvaro de Campos ou André Breton, a mesma corrente elétrica que percorre os textos megalómanos de Ruy Belo, a mesma satisfação que se sente no final dos inteligentes poemas de Wisława Szymborska ou Tomas Tranströmer, a mesma finura e delicadeza que entrelaça os versos de Elaine Feinstein, a mesma densa metáfora de Salah Stétié, a mesma musicalidade de Fiama Hasse Pais Brandão – particularmente na última fase –, é a que nos faz amadurecer a razão para a grande poesia de Píndaro, Anacreonte ou Alceu, para o poder de concisão (e precisão) da poesia japonesa, para o gosto pela luz crepuscular (primeva versão da nossa saudade) da poesia árabe, para a vastidão filosófica da poesia persa, para a metáfora metapoética da poesia chinesa (a que primeiro denotou um amor narcísico pelo desenho gráfico), para a violência dos elementos da poesia escandinava, etc…

A questão mexe por dentro, como um pinto dentro do ovo: o que é um grande poeta? O que distingue um fundador de um imitador? Um poeta capaz de atingir a essência de um poetastro que a circunda eternamente? Um Homero de um Horácio? (Porque Horácio nunca me seduziu, nem mesmo na famigerada Epístola aos Pisões) O que separa a água consoladora de um poema de Lorca, Auden ou Jabès da água tonta, inquinada, ácida de tantos e tantas que se dedicam a multiplicar títulos, a elogiar perversões, a gastar ideias, a alimentar mediocridade, a repetir, repetir, repetir…

O que é, em suma, um grande poeta? Um poeta do clube restrito de Omar Khayyām, JalāladDīn Rūmī, Pierre de Ronsard, Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot ou Sylvia Plath? Um que não desmerecesse a companhia de Kavafis, Pessoa ou Miłosz?

«Uma bizantinice, uma questão de lana caprina!» garantia o reputado professor de literatura…

Mesmo assim, quem deixa de o perguntar?

Não será um grande poeta, aquele que ocupa a estante principal da nossa biblioteca? Aquele a quem conhecemos composições inteiras de cor, a quem citamos o vulnerável equilíbrio de uma verdade incrustada nas suas palavras? Não será um grande poeta, aquele que, por (in)voluntário incitamento, por seu exemplo, por sua inspiração, por contagiante mestria, gera outros grandes poetas? Não será aquele que, pretendendo-o ou não, acaba por produzir palavras, textos, ideias que nos servem de referência – como de referência são os Evangelhos e o Corão, a bondade universal, a palavra ahimsa e o nirvana, o amor de uma mãe, a limpidez da água numa nascente, ou a fraternidade entre todas as criaturas no nosso mundo?

Um grande poeta é uma resposta, provavelmente individual, provavelmente consensual, ao espaço mais fundo que a consciência, a fé, a memória e o sonho demoraram a construir em conjunto no nosso espírito! Um grande poeta ocupa o lugar vazio que a vida sublimemente cava com o passar dos anos. E só ele pode ocupá-lo, como só ele pode desocupá-lo.

Quando lemos no Canto VI da Ilíada o desespero de Andrómaca, o susto de Astíanax, a réplica enternecedora de Heitor, é precisamente esse vazio o que nos permite absorver cada pedaço da cena e amar cada uma das belas palavras com que Homero nos solda ao sofrimento das personagens: («Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará! / Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim, / desafortunada, que depressa serei a tua viúva.»; («Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me / envergonharia dos Troianos de longos vestidos, / se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.»

Quando se lê ao longo dos vinte e quatro maravilhosos cantos deste poema símiles, sentenças, imagens, metáforas semelhantes a «palavras apetrechadas de asas», «a morte chega a quem nada faz e muito alcança», «a escuridão cobriu os olhos», «Por toda a terra espalhava a Aurora o seu manto de açafrão», «Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.», é ainda a sublime poesia a que nos imprime a mais viva emoção de um encontro: o que une a gramática à prosódia, a sabedoria e a transfiguração estética.

Colecionei com os anos incontáveis volumes de poesia de todos os tempos e lugares. Com eles forro o meu escritório e o meu quarto, procurando resposta a essa que julgo ser uma questão fundamental. Porque saber o que é um grande poeta é ser capaz de reconhecer o que é a poesia na sua dimensão mais pura. Leio-a todos os dias. Leio-a desde sempre. E, com Simone Weil, creio bem que nenhum poema se superiorizou, ainda, ao canto homérico, particularmente ao de Ílion.

Assim sendo, um grande poeta será sempre o mais parecido que houver de ser de Homero. O mais parecido que houver de ser da espantosa vivacidade da Ilíada, da coexistência de carnificina e amor, sublime poético e calão, arcaísmos e uma notável intemporalidade na leitura da condição humana…

Porque é a intemporalidade a que arbitra a questão. E é essa intemporalidade de Homero (seja ele um único homem, ou vários) a mais espantosa resistência e a melhor prova de o primeiro amor é o melhor amor de todos!

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Sempre uma questão de tempo

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Fotograma do filme «Casablanca» (Warner Bros)
Fotograma do filme Casablanca (Warner Bros, 1942)

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Começo esta crónica com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo. É uma balada tão calma, tão pungente, que um leitor mais sensível se entregaria de imediato ao devaneio por entre jardins e lagos do Japão, junto a uma casa de chá, debaixo de frondosas tílias, segurando a luva delicada de uma mulher cujo nome convém não dizer… É uma dessas baladas que levam às lágrimas o leitor mais sensível, quando em lugar de tudo o que acabo de descrever, só as memórias ocupam o seu pensamento… Talvez ocorra a alguém que um tal som de piano em fundo se usava no tempo de certos filmes a preto e branco, porventura dalgum dos clássicos que revemos nas noites solitárias de inverno, ou nos ásperos dias de alguma separação recente. Pela minha parte, ocorre-me o imortal Casablanca, a lendária dupla que Humphrey Bogart e a maravilhosa Ingrid Bergman protagonizaram, o Sam que Dooley Wilson encarnou, tocando para todo o sempre As Time Goes By

Começo com a lareira acesa, com um copo de Terra do Zambujeiro em cima da mesa, com um livro de Manuel Hermínio Monteiro nas mãos. Porque a verdade é só uma: escrevo por causa deste Urzes, compilação de pequenos textos que o saudoso editor deixou dispersos em jornais e revistas ao longo da sua incomparável existência física.

Podia ter começado, aliás, com uma citação sua, algo como «Em Portugal, o escritor vive na solidão que nem a pompa fúnebre que os poderes montam para a sua morte consegue disfarçar.»

Podia prolongar a citação, deixar que penetrasse fundo o sentido da crítica, que magoasse a sua mágoa, permitir que ficasse escrito também «Mal se extingue o bramido das carpideiras, o escritor fica duplamente soterrado. A sua obra, ou fica à mercê dos herdeiros que, salvo honrosas e conhecidas exceções, nada têm a ver com a obra nem com a vida de quem biologicamente lhes tocou, ou fica dispersa e esquecida como uma cidade imperial soterrada.» Porque a verdade é só uma: escrevo por simpatia, por desejo de replicar algo que leio e que me consola profundamente. Manuel Hermínio Monteiro é um ser fascinante, uma das poucas pessoas que lamento nunca ter conhecido pessoalmente.

Começo esta crónica com o suave ondular das notas musicais, com um piano que me faz esquecer a intensa mediocridade do meio, que me faz perdoar as traições do meio, que me faz iludir o desprezo pelo meio. E quando digo meio digo-o em sentido abrangente, inscrevendo, circunscrevendo nele escritores, editores, leitores, críticos, professores, premiadores de mérito, castigadores de reputações… Porque nem todos no meio são tão puros, generosos ou competentes quanto o foi em vida (e mesmo depois da sua morte) o Manuel Hermínio Monteiro. Porque muitos são meras aflorações rasteiras da grande árvore da literatura, gente escarninha, vil, ególatra, mas acima de tudo desprovida de talento! Porque o nosso meio tresanda hoje, como tresandava no tempo de Camões, a compadrio, lisonja e hipocrisia. Porque, escreveu-o ainda o antigo diretor da Assírio & Alvim, «O escritor dispõe da grande força do poder criador, mas perante o socioeconómico, com as suas leis de mercado, as estratégias editoriais, o gosto dominante, etc., o seu poder é reduzido.» Isso explica o profundo esquecimento de homens e mulheres do meio como Ângelo de Lima, Fialho de Almeida, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Ruy Cinatti, Alberto de Lacerda ou Fiama Hasse Pais Brandão. Isso explica o desconhecimento quase generalizado (fora dos muros universitários) da obra primorosa de autores vivos como Fernando Echevarría, José Agostinho Baptista ou António Franco Alexandre. Ou o ostracismo a que foi votado Altino do Tojal.

E quando o meio é francamente viciado, o país responde-lhe com desdém. Repego nas palavras ironicamente certeiras de Manuel Hermínio Monteiro: «o país tem é que criar centros culturais megalómanos. Criar comissões comemorativas. Organizar projectos de repercussão internacional, campeonatos mundiais de futebol.»

Mas talvez não seja um problema apenas ou fundamentalmente português. Gerrit Komrij fugiu à Holanda natal para se refugiar em Trás-os-Montes. José Rentes de Carvalho abandona ainda Portugal durante largas temporadas para se refugiar em Amesterdão. E não abjurou Thomas Bernhard da sua Áustria arrogante? Não se está positivamente nas tintas o Herberto Helder para o país? Para o meio? O meio faz as suas vítimas em toda a parte! Ou então destemidos opositores. Isso faz-me pensar…

De maneira que a cabeça pesa, com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo (mais poderosa do que o gosto dominante, mais aguda do que o elogio académico, mais duradoura do que cem cordas encordoadas de interesses comuns e políticas livreiras). De maneira que amo mais profundamente o copo de vinho que tenho à minha disposição, ou as labaredas da lareira reacesa por causa do frio, ou o devaneio por entre jardins nipónicos, de mão dada com belas mulheres loiras de filmes imortais.

Um escritor pode ser solitário. Ou pode ser que nunca seja só. O sono vence-me a resistência dos ossos e do orgulho. Remato com uma última citação do homem a quem, deliciado, leio a crónica «Elogio do Escritor»:

«Ele é dos poucos a quem a luz do Sol entrega sonhos. É assim que Deus lhe paga. E este é o mais belo plano de todo o filme.» Podia ter começado por aqui. Teria dado uma belíssima crónica.

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