Um homem desempregado

Enzo Penna
Fotografia de Enzo Penna

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A fila no Centro de Emprego é uma lombriga roendo as entranhas desde o começo da manhã. Passam centenas de automóveis, os autocarros da Carris, os táxis, os peões, a meia dúzia de biciclistas matutinos, as carrinhas cheia de pressa dos correios, outras centenas de automóveis, uma ambulância histérica, os idosos agarrados aos andarilhos, as carrinhas da Moviflor, mais umas quantas centenas de automóveis, um carro funerário (com as suas bandeiras negras e roxas e o espalhafato contido dos ramalhetes comprados por obrigação)… Passa meia cidade por aqui, passam centenas de automóveis, curiosos, enfastiados, com tipos bem-dispostos, com tipos maldispostos, com tipos agarrados ao nariz e às secreções que nele se tornam bolas amovíveis, passa mais uma ambulância ferozmente ruidosa do INEM, mais uma fornada de miúdas louquinhas da Católica, e um tipo no mesmo sítio, na mesma dobra da rua, atascado à mesma esquina da vida, a pasmar para dentro, a envergonhar-se dos papéis que precisa de carregar, à espera que uma voz estridente, defeituosa, sem açúcar, lhe diga:

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

Ser desempregado começa por ser uma coisa engraçada. Acorda-se uma bela manhã com a sensação do outro («Ai que prazer/ não cumprir um dever»), anda-se pelo interior da casa em roupa interior, a olhar para as coisas com a complacência de uma mãe que não se cansa de amar a cria.

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

Arruma-se a casa de uma ponta a outra. Tira-se dos armários a roupa de inverno, guarda-se em caixas e nos armários coisas que possivelmente nunca mais terão uso. Limpa-se o pó aos móveis, aos livros, às memórias e à alma. Visita-se uma tia no Lar. Passa-se pela Igreja para estar na penumbra dos santos, para se poder sem pressa a respirar o cheiro das velas, o silêncio e o vazio das orações ciciadas ao longo dos séculos. Passa-se no regresso pelo minimercado, para comprar pão, leite, cento e cinquenta gramas de fiambre e uma esfregona.

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

A fila é um cordão. Um cilício. A princípio custa muito, demasiado. Parece que a nossa vida quer deixar de ser nossa. Tudo é uma ferida: as horas abrem clareiras monstruosas, como se aquele tempo que nos faltou sempre tivesse passado a pertencer-nos irremediavelmente, embebedando-nos de tédio. Pensamos. Pensamos em enviar o Curriculum às empresas da concorrência, às que até aí supúnhamos uma ameaça, às que poderão ter uma palavra a dizer sobre o nosso futuro. À medida que um tipo se sente encarquilhar, torna-se mais premente escrever uma carta de motivação, um texto repleto de energia, um tributo à boa educação e à esperança e ao futuro. Urge mostrar qualidades, fazê-las competir com os sortudos, com os que têm salário e casa paga no final do mês. Não pode haver lugar para melancolias e autocomiseração…

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

A maior parte das empresas, porém, não responde. A maior parte das empresas está servida. O Curriculum devia ter uma alínea qualquer onde pudéssemos avaliar o tamanho do coração. Devia ser um dos quesitos eliminatórios. Mas as empresas ignoram o poder do coração e importam-se mais com as línguas estrangeiras e com o grau académico e com a capacidade de simular. O silêncio torna-se brutal, assassino, feio como os olhos que espreitam à janela num dia de novembro e se veem rodeados de barba e cabelos desgrenhados. As únicas pessoas que se importam connosco são as que se nos dirigem por «Ex.mo Senhor» em envelopes de janela.

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

E eu olho a técnica do Centro de Emprego com os mesmos olhos de sempre, apenas um pouco mais baços, ligeiramente mais apagados, um pouco menos felizes, quase em lágrimas. Carrego papéis, provas, o testemunho de que não caí na derrota, de que não aceitei ainda a fatalidade da queda. Mostro-lhe a minha preocupação, o meu desejo de encontrar trabalho e de me libertar do famigerado subsídio. Falo-lhe das minhas antigas funções, do excelente desempenho na empresa, da estima do patrão e dos colegas, do azar do contabilista aldrabão que afundou os sonhos de todos, como um torpedo certeiro no meio de um couraçado. E ela faz com a cabeça que «sim», impacienta-se com as descrições pormenorizadas, aconselha-me a passar uma lâmina pelo rosto, a cuidar das unhas, a tratar da roupa, a sorrir.

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

Mas agora tudo é dificílimo. Sorrir, então! Ao cabo de meses de desemprego, de sucessivas derrotas, de curricula enviados em vão, de ressentimento contra o mundo, contra o destino, contra o governo, contra os antigos amigos, contra nós mesmos, sorrir tornou-se a arte mais difícil de todas. Ao pé do sorriso de um desempregado, as partituras de Bach são canja. Lutar contra a sensação de perda irremediável na sua cabeça, os trabalhos de Hércules são coisa de criança. Sorrir é tão lógico e perturbador como compreender o caminho do agrimensor de Kafka.

‒ Precisa de fazer alguma coisa pela vida, Sr. Martins!

De modo que respondo torto! Levanto-me da cadeira de plástico, ponho um brilho assassino nas palavras ‒ subitamente acordadas da letargia ‒, e respondo que «Ora essa!». Há gente a espreitar, bem sei que há. A inflexível correntinha dos óculos ordena que me sente, que me acalme, que a oiça com muita atenção. É um aviso. Mostra os «pontos fracos» do meu «processo», identifica «lacunas formativas», revela-me «alternativas», «módulos de requalificação». Ou isso, ou «Adeus ao subsídio». E eu sento-me. Eu acalmo-me. Eu oiço-a com toda a atenção. Eu aceito tudo. Eu peço-lhe desculpa. Eu compreendo que estejam a fazer o melhor que podem. Eu entendo que tenho pontos fracos, que preciso de suprir as lacunas, de encontrar alternativas, de reciclar a alma devassada pela imisericórdia e pelo insucesso.

‒ Preciso de fazer alguma coisa pela vida, pá!

E é com espanto, com uma leveza invulgar nos olhos (como se tivesse deles removido uma película suja ou acrescentado neles uma fúria nova), que saio para a rua. A mesma rua, o mesmo bulício de carros e furgonetas passando pelo meio dos carros e carrinhas mal estacionadas, a mesma rua de velhos infelizes e estudantes de Direito, a mesma rua de floristas e peixarias misturadas com lojas que aceitam ouro usado e prometem bons negócios… A mesma rua, que de repente me parece uma extensão de um mau sonho acabado de deixar para trás. Preciso de fazer algo pela vida. E, no entanto, estou na iminência de um soluço, de um sufoco, de uma tristeza abissal, como a que tem um desempregado incapaz de tomar um rumo. Se ao menos houvesse uma réstia de sorte! Um pouco daquele Deus de Abraão, Isaac e Jacob que decidisse dar-me uma mãozinha! Um pouco daquele romantismo dos filmes de Charles Chaplin ‒ em que surge do nada, à mesma esquina gradeada, um milionário de Monopólio (de cartola e bigodinho) a propor-nos um desafio em condições, um sonho real, uma promessa verdadeira… sem ser preciso o pacote indigesto de inúmeras formações de vinte e cinco horas, com que pretendem salvar-me do trágico fim a que me votou este país de banda desenhada.

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Espécie de elegia

W. Eugene Smith - Charlie Chaplin, 1952 I
Fotografia de W. Eugene Smith (1952)

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«A coisa mais triste do mundo é assistir ao espetáculo de um humorista que perdeu a piada» disseste certa vez enquanto empurravas o charuto com a língua e humedecias as palavras com bourbon do forte. «Assistir a uma trampa destas pá, que tristeza!» Não me lembro do nome do artista nem das anedotas que contava. Lembro-me das lantejoulas, do chapéu, das mesas redondas e de ter pensado como é terrível alguém tornar-se caricatura de si mesmo. «Este tipo chegou a levar quinhentos contos por meia hora…». Fixei o número. Nem por um segundo desconfiei que fosse exagero. «Olha-me para ele agora… um palerma a imitar o pior do Herman… Que trampa!»

Sempre tive medo dessa fase. Sempre. Do Elvis gordo e sem timbre. Da Marilyn embriagada e sob o efeito dos barbitúricos. Do último Hemingway. Do último Picasso. Do último Pollock. Do último Coltrane. Do último Sinatra. Da Amália titubeante. Do Herberto Helder de Servidões e A Morte Sem Mestre, malcriado e escassamente luminoso. Sempre tive medo de me confrontar com o espelho, (como Chaplin em Limelight) e de tropeçar com olhos míopes e cansados num ser que se tornou paródia da sua própria pessoa.

«Agora dão-lhe cinquenta euros! Às vezes dão-lhe só de comer. Por piedade! Ao que este tipo chegou, pá!» As palavras cheiram a álcool. Ácidas e incisivas como enzimas devoradoras. Alguém na penumbra forçou uma gargalhada. É pavoroso que se simule um relâmpago tão inocente. A rapariguinha loira veio perguntar se tomávamos mais alguma coisa. Daí a nada o cabaré ia fechar. Com um sorriso apagado, frio como a sopa fria, restavam dois casais, uns quantos solitários e nós. «Cheguei a pedir-lhe um autógrafo… No princípio até lhe propus gravarmos uma cassete!»

Com angústia o palco e o microfone tornam-se claustrofóbicos. Um tipo suado e sem modos passava um pano no balcão e fez tilintar os copos com desdém. As bailarinas, já sem maquilhagem e com as golas dos sobretudos subidas, despediam-se desrespeitosamente deste barman saído dalgum filme lúgubre. O ruído dos tacões fez dispersar o que restava da nossa atenção. «Olha-me só para aquela mulata… Muito bem, hem?» O público bateu as palmas finais, aliviado, infeliz, como todo o dever cumprido sem amor. «Este tipo não presta. Foi tempo perdido… O que vale é ali a mulata. Boa, hem?» E levantámo-nos. Fizeste menção de pedir mais dois copos. Recusei. Insististe. Insististe mesmo em pagar um copo ao tipo do stand-up. À rapariga crioula também. Fui obrigado a beber.

Sempre tive medo destes copos que se bebem com fome, desta espécie de buraco negro absorvendo-nos as ganas de viver com um ou dois cubos de gelo, ou mesmo sem gelo nenhum. «O que é preciso é alegria, meu amor!» O humorista engolia o malte à pressão. Achava muito bem. O que era preciso era muita alegria. A rapariga gostava que cochichasses e lhe desses beijos no pescoço. «O que é preciso é isto, muita alegria, hem!». E eu sempre tive medo dessa tristeza, desse apelo ao esquecimento, desse convite à cirrose hepática e a todas as formas de estar em ruínas no mundo. «Haja alegria, pá!» O tipo do balcão, sob o acicate de uma gorjeta generosa, pôs de novo a música a tocar e a acompanhá-la o globo anacrónico, como nos tempos em que usávamos patilhas imitadas do John Travolta.

Saí sem me despedir. Não quis interromper-te a química. Tu feliz, eu sabendo que a coisa mais triste do mundo é essa impotência voluntária, quando um tipo começa a cair e não consegue nem intenta reerguer-se («Assistir a uma trampa destas pá, que tristeza!» ), quando um tipo percebe que a coisa mais cruel é ter de olhar-se olhos nos olhos («Olha-me para ele agora…») e não suportar o que vê…

Saí. Farrapos de nevoeiro voavam sobre os telhados. A noite pareceu-me finalmente uma coisa concreta. Uma casa a que me recolhia sem pressa, sem palavras e sem piedade.

E não há nada mais triste do que isto. Tombar muito devagar, em câmara lenta, com a sala às escuras, à espera das palmas mecânicas, à espera que nos paguem o cachê, e digam «Muito bem», e perguntem «Amanhã à mesma hora, hem?», e nos paguem um copo, e nos façam sentir menos mal, um pouco menos mal, um pouco acima da linha do alcatrão sujo e quebrado.

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A propósito do absurdo

Monique Krivitzki
Fotografia de Monique Krivitzki

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Um homem precisa apenas de escolher um banco e de sentar-se. Precisa de ficar atento, esperar, justapor os factos. Em breve estará tão saturado deles que a sua impressão da cidade e do ser humano terá sofrido uma sensível mutação. 

Um cachorro é atraído à porta de um talho. Hesita, olha desconfiado, as patas parecem conduzi-lo ora para uma, ora para a outra banda. A oferta decide-o. Mas pouco depois é pontapeado e sai ganindo. O choro toma, por breves instantes, a atenção de duas senhoras de óculos fumados que zelam na paróquia. Conservam ambas debaixo do braço grossos catecismos. Uma delas narra com prazer mal dissimulado a repugnante história do mútuo adultério do doutor e da doutora Simões. O pior é que ambos pertencem à mesma congregação religiosa que elas. Cabeças hão de rolar. Esse facto, essa antecipação, faz-lhes degustar o futuro como se degusta um bom café ou uma chávena de cacau. Quem as haveria de servir (o café, o cacau) é o miúdo gago da esplanada Atlântico. Os ociosos (taxistas, engraxadores de sapatos, aposentados, proxenetas) gostam de puxar-lhe pela língua. A paródia tem mais graça assim. A paródia, os gracejos, o vexame deixaram de constituir problema aqui. Desde que os clientes se disponham a gastar o dinheiro (o que agrada ao patrão), servi-los é um ato pacato, um ato de ódio contido. A humanidade deu muitos passos nestas mesmas condições. Sobreviveu sempre. (Quando duas ou três piadas asseguram um salário e algumas gorjetas, de que vale a pena rezingar?) O patrão é um homem meio doente. Entrou naquela fase da vida em que as memórias acordam sozinhas a qualquer hora do dia. Parece enfeitiçado por elas, tomado de assalto por pensamentos tão longínquos que se dirão astros perdidos no universo. Órfão por azar, também ele começou a trabalhar muito cedo. Pagavam-lhe com comida, pouca e má, num prato frio. O patrão, o velho juiz Simões, comia com a família à mesa. Os criados e jornaleiros na cozinha. Ele, à porta, num escabelo. Pensou durante anos que lhe chamavam Perro por ser lento. Só nas vésperas da tropa compreendeu a canina significação da alcunha. O osso que merecera tantas vezes de refeição enchia-o de ódio como um punhado de veneno encheria uma garrafa de vinho. Ser cão entre humanos é coisa que fica guardada. Não, definitivamente a humilhação não lhe é estranha nem tão distante que não possa agora regressar no voo livre dos pensamentos. Os olhos ficam esquecidos e marejados. Mas a grita na esplanada, as palmadas nas costas ao moço, as gargalhadas alvares dos tipos que limpam e cortam as unhas em público trazem-no de volta ao presente. Ele não gosta nada que brinquem com o miúdo naqueles termos. Ele é um gago, um pouco limitado, dizem que seu filho ilegítimo. O patrão detesta os escarnecedores, simplesmente as coisas atingiram uma tal perplexidade que não merece a pena protestar. Se o fizesse entregaria os fregueses à concorrência. Nesta terra a ferocidade é pouco subtil. Tem pena do gago, mas sobretudo medo da derrota. 

O homem, salvo pequenas nuances, é o mesmo em todo o lado. Uma cidade, uma vila, uma aldeola é isto. Um átomo exemplificativo. Nada de novo debaixo do sol. Nada de muito novo aqui. A velha condição humana impele cada gesto em cada esquina a atrelar-se a todos os gestos e a um só gesto. Em cada um, no todo, o Homem renasce e reenvia-se para o mesmo de sempre. Para compreender a essência desta questão, um transeunte precisa apenas de escolher um banco e de sentar-se. Pode, é claro, ler os contemporâneos Lipovetsky e Innerarity, pode recuar a Cioran, Russell, Sartre, Camus, a Heidegger, a Freud, ao velho Schopenhauer. Pode ler Platão e Aristóteles e todos os outros que as estantes empilharam em dois milénios e meio de filosofia. Ou pode, é o presente caso, escolher um bom lugar na sua terra e ficar atento. Demorará uma manhã no máximo, algumas horas, um pedaço do seu tempo. Em breve terá todas as provas de que necessita para sustentar uma teoria, bons exemplos da magnífica generosidade da sua espécie e excelentes exemplos também da orgânica e continuidade mediocridade que os elos do ADN não foram capazes de expurgar (torpeza, crueldade, injustiça, depredação: quem sabe o que a química poderia aqui fazer?). 

Camus define esta contradição da espécie com a palavra absurdo. É uma palavra significativa, útil e bela. Pode-se fazer muito com ela, até disparates. O indivíduo que queira compreender filosoficamente a sua pele precisa de ganhar consistência no manuseio de palavras como esta. Precisa de compreender a absurdidade e os paradoxos mais intrincados que as suas observações diárias autorizam a considerar. E uma cidade, ou uma vila, ou uma aldeola é um bom palco. Nela encontra boas amostras que pode depositar na lamela e analisar com detalhe ao microscópio. 

O cachorro é agora acarinhado por uma criança que ainda mal começou a caminhar. Os pais retiram-no (sabe-se lá que bicharada ali vive entre os pelos?), limpam-lhe as mãozinhas, ensinam-lhe subliminarmente o exercício da defesa e do repúdio. À porta do prédio as duas mulheres virtuosas conversam ainda. A porta abre-se e fecha-se, entram e saem os moradores, o assunto da conversa é demasiado valioso para que se despeçam. Atrás do balcão, o miúdo gago, ligeiramente corcunda também, conta as moedas que lhe deram os fulanos dos táxis. Vale bem a pena ouvir-lhes as graçolas. O patrão tira uma imperial. Oxalá o Benfica seja campeão. Os clientes discordam. Pois que seja campeão o Porto. Ou o Sporting. Tanto faz… 

Absurdo! Uma excelente palavra! Ainda assim, ainda assim, tão oca no fim de contas, como todas as outras.

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O ato terminal

Simona Andrei
Fotografia de Simona Andrei

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Ao colocar na varanda a sua bela orquídea, é possível que na cabeça dessa mulher tenham surgido pensamentos complexos. «Da próxima vez que tocar este vaso já muita coisa terá passado». «Se voltar a ver-te, minha querida orquídea, é porque a vida deu uma lição de força em que jamais acreditei». «Quantas vezes entre um gesto e outro gesto similar decorre o arco temporal de uma vida». «Entramos num túnel e saímos dele sem saber se ainda somos a mesma pessoa». É possível que essa mulher se comova com o pólen dos plátanos que neste preciso momento voa até tão alto e pense nas coisas que involuntariamente desprezou. Não muito longe do seu apartamento as molas dos cavalinhos e os baloiços do parque infantil gemem com frenesim. Não os consegue ver, mas sente a alegria das crianças. O sol atinge em cheio uma gota de orvalho depositada na grade escura e refrata-se. Um minúsculo arco-íris ilumina-lhe os olhos doridos. Qualquer coisa como uma epifania, como um aperto descomunal, como um remorso lúcido, atinge-lhe a alma e fá-la elevar-se, levitar de pureza e de arrependimento. «Ah, minha querida orquídea, se nos tornarmos a ver… é porque tudo será diferente». 

Penso muitas vezes nestas invocações subtis do tempo. Ensinaram-me a não cair em tentação, a viver cada dia como se fosse o último, a procurar em cada um o melhor de todos. Aprendi a guardar e acalentar as memórias, a não subornar o futuro com favores mesquinhos («Não subornes a vida. Não intoxiques as areias movediças e aprisionadas da ampulheta. Não dês fim à paz dos teus sonhos. Vive sem rancor, pois em cada coisa vive já sombra bastante», explica-me a consciência nas noites de insónia). Ensino agora eu também a amar as pequenas existências, a respeitar os sentimentos que, entrelaçados, fortes e perfeitos, são os tendões da nossa própria existência. Ensino as palavras. Ensino a usá-las, como se usa um escafandro ou um fato de astronauta, para podermos respirar para lá da nossa própria respiração. 

Levado pela mão de uma neta nessa tarde de domingo, o velho cego sorri ao passar junto de uma serração. Os olhos vedados respiram com volúpia a omnipresença do serrim, o aroma limpo e sujo do pó, do pinho, das madeiras empilhadas e simétricas. Do reino da meninice, que jurou conservar e proteger até ao último dos seus suspiros, chegam-lhe os braços da mãe, os ecos da guerra, as vozes de todos os que a pouco e pouco se calaram e não pôde reconhecer no silêncio, exceto quando as mãos tocaram o gelo do rosto, o gelo dos lábios, o gelo do nariz, o gelo das faces geladas. Apenas o frio o assusta. E por isso a palma apertada da neta, o sol macio desse meio de tarde de domingo, o cheiro quente e um pouco húmido para lá do muro alegram-no em segredo. Jamais poderia explicar essa felicidade intransmissível de sensações misturadas, essa paz inefável que lhe recorda o avô, o pai e os irmãos carpinteiros. Como foi possível não seguir-lhes esse ofício? Voz melodiosa, a dos perfumes. Os olhos vedados respiram-nos com volúpia. Por eles obtém a dimensão de cada ferramenta, de cada máquina, de cada pedaço dessa oficina onde sonha ir tatear o seu próprio perdido… 

E eu que absorvo todas estas coisas escrevo-as. Agulha, linha escura atravessando os poros do papel. Os ignorantes calcam as pedras com olhos (olhos grossos, como caules de um cato gigante). As pedras são surdas. Nem o fio do vento possui algo que lhes possa dizer. Os ignorantes entaiparam a razão e não amam os poemas. Mas eu que observo estas coisas construo os poemas, sinto a urgência de não deixar esgarçar-se a corda do amor, de não deixar esvair-se no nada as pontas delicadas deste amor entre nós e as coisas. 

Assim o pensa também a rapariga no antro do hospital, onde faz tombar carrinhos repletos de roupa suja. «O que contêm os lençóis dessa mulher que morreu hoje, derrotada por fim pela doença?» «O que escondem as toalhas daquele cego tão amoroso, que há uma hora se despediu, sorrindo, da vida?» «O que veriam os seus olhos incapazes de olhar?» «Um anjo?» «Uma mulher outrora desejada?» «Um gato ronronando-lhe no colo?» «O que significa este ato terminal, este lavar das coisas que contêm os últimos vestígios de um tempo vivo?» «Porque morrem as pessoas que nos habituámos a amar?» «Porque sentimos a falta das palavras que nessas pessoas são orações e raios de um sol inteiramente novo?» «Porque me dói tanto que entre mim e estas luvas e esta roupa e este cheiro de caves se interponha esta saudade, este apego ao infinito?» 

E quando chegas e me contas estas coisas, e te embrulhas em mim tremendo de frio, e choras em silêncio, e olhamos a televisão apagada, e revemos uma a uma as cenas de inúmeras vidas desarticuladas e em comunhão connosco, eu compreendo-te com o coração gigante, estrela inflamada pelos sentimentos que brotam dos minúsculos poros da noite, das palavras, do papel que as acalentou para nós e para depois de nós, e embrulho-te com ternura, com os mantos invisíveis de uma noite repleta de estrelas, e deixo que adormeças nos meus braços, amparada e triste, como um anjo que soubesse seres tu sem que o saibas ainda. 

Às vezes o tempo abre em nós, com os seus desastres, contradições e aniquilamentos, rombos assustadores. Mas por mais que a vida doa, podemos sempre procurar em nós uma migalha de sonho e de esperança. Podemos sempre seguir o exemplo das crianças e aprender com elas a arte magnífica da resistência e do renascimento. 

Podia dizer-te tudo isto. Mas tu dormes. Felizmente, tu dormes já.

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Cada poema é um Big-Ban prodigioso

big bang
Fotografia de NASA

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«Só nos meus poemas encontro morada» escreveu Jan Jacob Slauerhoff. Cito-o por não precisar de outras palavras para dizer exatamente o mesmo, por comodidade portanto. Mas por defesa também, para não me servir de argumentos mais terríveis para justificar a franciscana fortuna que juntei em quase quatro década de vida. Aos muitos que se queixam do amor e de uma cabana oponho eu a miséria ainda maior de não possuir nem uma coisa nem outra. Porque esta servidão (ocorreu-me o último título de Herberto Helder) o é no sentido pleno da palavra servir. Servir a poesia é, em última análise, nascer, viver e morrer com a poesia, ao lado, para ela e por causa dela… Servidão sem renúncia, sem protesto, sem arrependimento, servidão que torna tudo o mais secundário, incompleto ou incompreensível.

Mas moro também na poesia dos outros. Na sageza dos truques de linguagem. Na metáfora que o tempo lavou ‒ como a um espelho ‒ com sais e sabão. No ímpeto e jactância de uma estrofe, que ao passar por nós ‒ pela nossa língua ‒ levanta as pequenas chamas vacilantes e acaba incendiando-nos os olhos por dentro. No brilho intenso de uma imagem original, pura e espontânea, como o movimento de um abelhão ao deparar-se com canteiro de amores-perfeitos que salpica o lado de fora da nossa janela. Moro na poesia com a paz e o desprendimento de um santo eremita, de um sem-abrigo, de um louco, que no final de cada dia regressa ao seu tugúrio, à sua manta, à sua cela silenciosa. E que consolo habitar o miolo dos livros! Degustar com frenesi o cheiro a papel reciclado, como o das revistas do Tio Patinhas, o aroma da celulose, o odor perfeito do papel novo, semiplastificado, como o dos baralhos de cartas ou dos manuais escolares, acabados de estrear. E que prazer manusear antigos cadernos de sebenta, guardanapos, meias folhas aproveitadas, velhas agendas, cartões e panfletos já esquecidos, com versos, rasuras, anotações e correções feitas com a caneta de aparo, surpreendentemente lúcidos, agradavelmente melódicos, imageticamente vivos… 

E é por isso que troquei sempre o Audi pela poesia de Homero, Camões, Whitman e Pessoa. Foi também por essa razão que hipotequei a casa, salvando somente os volumes de Arquíloco, Catulo, Dante, Baudelaire, Eliot, Breton, Celan, Miłozs, Tranströmer, Al Berto. E esqueci-me da data do nosso casamento, quando às tantas acabava numa mesa de café uma longa respiração, como as que Ruy Belo me ensinou, lidas em voz alta por Luís Miguel Cintra, junto ao mar, em tardes de inverno, quando as finanças, os altares, as multidões, os ruídos todos me angustiavam de uma forma que jamais conseguirei explicar-te. Troquei-te por Safo, por Emily Dickinson, por Akhmátova, por Sylvia Plath, por Sophia, por Fiama, por Elaine Feinstein, por Wisława Szymborska. E tu nunca me perdoaste. E eu nunca procurei o teu perdão. E tu decidiste, como outros faziam no óstraco, condenar-me ao pior dos exílios, que é e há de ser sempre o do desprezo. 

Não tenho emenda. Não há remédio para isto. Nenhuma solução. Divorciei-me deste tempo, divorciado ele mesmo da poesia. Divorciado ele próprio da função principal do tempo, que é o de cavar crateras na nossa memória, como as da lua, onde acolhêssemos como a luz dos charcos os dias limpos, onde acolhêssemos como a lama dos charcos os turvos redemoinhos dos remorsos e do sofrimento. Divorciei-me deste tempo que não entende de espiritualidade, que se tornou belo e artificial como os antigos bezerros de ouro, artificial e belo como as frases ocas que leio todos os dias em todos os lugares e na boca das pessoas que me não entendem. Não tenho emenda. Sou viciado na pior das anfetaminas, no puro ecstasy das palavras que são música, religião e verdade. Sou viciado em POIESIS! 

Mas mais do que isso. Sou viciado numa certa forma de querer existir. Sou viciado na preferência pelo profundo e pelo complexo, pelo subtil e pelo difícil, pelo que é ineficaz, imprestável e impagável, pelo que às vezes é vão e muitas vezes é efémero. Viciado por exemplo numa fuga de Bach ou numa elegia de Eleni Karaindrou, por oposição a todo o que é forró, pimba ou kitsch. Viciado por exemplo num bom filme de Fellini ou de Antonioni, de Wim Wenders ou de Alexander Payne, em troca dos quais mandaria incinerar todas as telenovelas da TVI. Viciado numa boa ópera de Mozart ou de Rossini, numa boa peça de Ibsen ou de Brecht (nem falo dos muito amados e adorados helénicos), numa boa conversa sobre antropologia ou astrofísica, viciado num bom café, amante dos melhores Cohiba, apreciador de uma reserva de Mouchão, naquela mousse de manga especialmente cremosa, nesse pudim de limão que apenas uma pessoa sabe fazer.

Ser viciado em poesia é o diabo! Habituamo-nos a luxos incomensuráveis, incontornáveis, irremediáveis, aos quais votamos não apenas a gula do instante, como sobretudo as epifanias que valem versos e uma eternidade (pelo menos o desejo de uma eternidade no prolongamento do nosso olhar). Ser viciado em poesia (que o são também aqueles que escrevem equações ou partituras, aqueles que modelam cerâmica ou coreografam pulsões) é uma porta aberta para o princípio, para o reconhecimento de que nos nossos gestos (nos mais ínfimos e risíveis) se repete o começo do cosmos, o movimento inicial, vital, verbal que acelera as veias e nos torna senhores da nossa própria ausência. 

Milhões de páginas foram escritas sobre o mesmo assunto, em centenas de línguas, em milhares de universidades, mais objetiva ou mais subjetivamente. Do que dela disseram Aristóteles, Horácio, Wordsworh, Edgar Alan Poe, Derrida, Octavio Paz, João Cabral de Melo Neto, Bloom, George Steiner se fizeram códices e volumes imensos. Pura repetição! Ainda ecoam nas paredes da minha cabeça as frases eruditas com Ruy Belo procura agadanhar Na Senda da Poesia (1969) os grandes filões desta arte, que é religião e mito, ilusionismo e música, ciência e pão, amor e morte. 

Cada poema (conforme deixei escrito em certo apontamento de 1998) é uma reedição do universo, cada um é a busca de uma ordem no caos permanente, a crença num lugar eterno como se crê num qualquer ponto abstrato, no movimento de cá para lá e de lá para cá do pêndulo. 

O dito apontamento, escrito em caligrafia descuidada, provavelmente embriagada pela recente leitura de Gilles Deleuze, num caderno muito sujo pela cinza dos cigarros, não é grande coisa, admito. Gostava de filosofar, de tentar dizer por palavras minhas o que outros haviam porventura escrito com solene profundidade. Mas ficou aí o meu Credo, lídima profissão de fé, que o tempo não viria senão a corroborar: 

«Nada em poesia é inócuo ou arbitrário. Nem sequer o silêncio que intervala as palavras, e as intervala entre o instante e o infinito. Nem sequer o modo como um homem ou uma mulher decidem viver para melhor a segregarem, como o fazem e o fizeram as límpidas abelhas de todos os tempos. Nada em poesia é inocente. Cada poema é um Big-Bang prodigioso. Somos poesia e à poesia havemos de tornar, não no fim, mas outra vez e sempre no princípio.»

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Cada um de nós viaja para o lugar de todos

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Helmut Newton_young woman
Fotografia de Helmut Newton

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No preciso instante em que o autor destas palavras escreve a vírgula à direita, zarpa em direção a um ponto cada vez mais minguado no horizonte um batelão. Nele vai um moço de quem me afeiçoei nos últimos anos, moço generoso, antigo aspirante a um posto na Marinha, com ideias próprias, porém com um desgosto a morder-lhe o coração desde que em Itália, num bordel, conheceu uma dessas mulheres fatais, sicilianas, mistura de sangue latino e mourisco, capazes, como o próprio diabo, de roubar-nos a alma indefesa e de elevar-nos à condição imerecida de mártires. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? 

‒ Eu falo sempre de amor, meu caro jovem. 

‒ O senhor começa a parecer um poeta… 

‒ E tu começas a parecer-me um bom ouvinte! 

‒ Bem, o senhor diz as coisas de um modo… 

‒ A mim só me interessa perguntar e nunca dar respostas ou ter certezas… 

Lisboa ofende-se facilmente com as opiniões de um velho. Não digo toda a Lisboa, não pelo menos a que atraca aqui, neste antro de gente de mar e rio sem nome, sem passado, sem destino certo. Gente que vem beber aguardente e cismar ao pôr-do-sol, estivadores corruptos, marujos desencaminhados, antigos pescadores de olhos baços, com medo da saudade do mar. 

Uma tarde o moço sentou-se no outro lado da mesa. Vinha bêbado já. A conversa durou menos do que um braço-de-ferro contra um maricas. 

‒ Você aí, com esse ar de intelectual. Está-me a foder a paciência… 

Não respondi. Não foi preciso. Puseram-no imediatamente na rua a pontapé. Meia dúzia de chapadas depois, o moço voltou para pedir desculpa. Mas estava tão bêbado que se pôs a chorar. Chegara de Messina havia três semanas. 

‒ Deixei de acreditar nas pessoas… 

‒ Isso não é uma doença, meu amigo. Isso é a cura! 

No coração do próprio universo, nas cordas incandescentes dos triliões de sóis sobre as nossas cabeças e debaixo dos nossos pés há sempre o rosto de uma mulher. Que ela possa incendiar-nos de alto a baixo, em profundidade, para sempre é coisa que não me surpreende. Sou já tão cheio de idade que todas as histórias diferentes me parecem aos poucos a mesma história. 

À minha frente, caído numa ridícula prostração de macho abatido, um desgraçado ensarilha-me na sua história. Escuto-a sem pressa, sem perturbação, sem surpresa, com os seus ziguezagues, com os seus parênteses, com as suas heroicas fanfarronices: uma mulher de beleza inigualável, o ciúme, a promessa de vingança, o ajuste de contas, facas, um tipo no chão (ou dois), uma fuga precipitada até a um cais sórdido, depois o tribunal marcial e o castigo, a expulsão, e agora somente a rememoração de lençóis interditos, somente o macho com cio e com saudade… 

‒ Nunca mais tive paz… 

‒ Nada do que contas é assim tão extraordinário, meu rapaz… 

‒ O que mais me dói é a falta que me faz o perfume dela. 

‒ O perfume? 

‒ O cheiro do corpo. Não conheci outro paraíso até hoje. Um homem aninha-se nele e deseja morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez. Mas o senhor não ia entender isto, nem que lho explicasse mil vezes… 

Tão néscio és, meu caro jovem. As regras do amor são eternas. Valem tanto hoje como no tempo de Cleópatra. Tão verdadeiras neste instante como no dia em que o primeiro marinheiro fugiu da Sicília, amaldiçoado pela peste. Como se um homem chegado a esta idade, como se este corpo mirrado não tivessem conhecido a mesma inexplicável sedução que te faz enlouquecer no interior da tua própria masmorra. Como se o amor, girando eternamente na mesma calha em espiral não fosse o ADN da espécie. 

Passaram-se entretanto três anos. No preciso instante em que escrevo estas palavras já o batelão se dissipou com o nevoeiro dourado do horizonte. Duas vezes por semana nos reencontramos. Às vezes a aguardente é toda a linguagem que temos em comum. Às vezes, como um relâmpago inesperado de verão, tu recomeças a litania. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? Por uma puta? 

‒ Falo de amor, meu caro. Falo do teu amor!

‒ Sabe lá o que é o amor! 

Com nostalgia leio nos teus olhos a nostalgia. Há sempre o rosto de uma mulher. Essa mulher que te consome as entranhas. Olhos negros como corredores mal alumiados e perigosos, a pele macia e perfumada, os seios duros. A mesma labareda que um dia nos lambe o coração virgem e nos abandona, em cinzas, nus, expostos, à miséria de sobreviver-lhe e de lhe acalentar a memória. 

‒ O cheiro do corpo dela… É dele que me recordo todos os dias… 

Leio nos teus olhos a nostalgia, a impotência e o ciúme e a loucura de três anos de distância, três anos de homens possuindo-lhe o corpo, três anos de álcoois e peixe frito, três anos em que tornaste num igual a estes farrapos que aqui entre semeiam os crimes de saguão, a desobediência militar, o contrabando, a vingança… 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez… Não ia entender nem que lho explicasse mil vezes.

‒ Estou certo, meu amigo, que somos o movimento oposto das árvores. Dos ramos crescemos para as raízes… Com o passar do tempo cada um de nós viaja para o lugar de todos. Esse lugar, essa terra quente e apaziguada, espera-me há muito. O nevoeiro vem chegando, penetrando cada vez mais os meus ossos. Mas tu és jovem. Tu ainda podes tudo. Tens de lancetar essa ferida terrível e tresloucada.

‒ Deixei de acreditar nas pessoas.

‒ Basta! 

Conheço uma só forma de curar o mal do amor. Que é multiplicá-lo! 

No preciso instante em que anoto estas últimas palavras, regozija-te, meu caro amigo. Todos os meus pertences couberam numa caixa, numa chave. Leva-la contigo, sem compreender. A italiana, posso corrobora-lo é ainda muito bela. Bom trabalho me deu encontrá-la, trazê-la, instalá-la, deixá-la de presente a quem precisa de fé. O tempo ensinou-me a errar todos os caminhos para encontrar apenas um. A mim nunca me importaram as respostas ou as certezas. Sou um homem descrente. Mas por uma vez desejo não ter-me enganado. 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez.

Não precisas sequer de explicá-lo, meu bom amigo. As regras do amor são eternas. Eternas! Não ias entendê-lo agora, nem que to explicasse mil vezes.

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O dia em que me ensinaste a voar

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

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Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu, avô. A memória das coisas e a memória dos sonhos às vezes flutuam tão perto que deixamos de as distinguir. Queria ser igualzinho a ti. Usar uma bengala, como a tua bengala. Segurar na cabeça uma boina de feltro escuro, como a tua boina de feltro. Sentir cruzados nas costas uns suspensórios como os teus. Ser igualzinho a ti. Rir como tu rias, caminhar devagar como tu caminhavas, puxar de uma escada e subir a uma macieira, como tu fazias. Ir à algibeira e puxar de uma navalha de osso, como a tua navalha; cortar a maçã em pedaços e comê-la com os olhos postos no infinito, como tu fazias com os olhos, quando comias uma maçã e te sentavas na soleira da porta, esperando que o sol acabasse a sua volta e te viesse sorrateiramente a noite. Foi há tanto tempo, avô, que principio a desconfiar da minha cabeça e, sobretudo, do meu coração traiçoeiro… 

Lá chegou o dia em que te confessei esse devaneio. Tinha tantos… Tu sorrias. Tão devagar que o sorriso, como a luz da tarde, parecia de gesso e sem fim. Tu sorrias, como se de lá de muito longe (da tua própria infância), te acenasse um miúdo igual a mim… Como se lá do arrebol doutro século, amparado por um velho igual a ti, te acenasse a vaga recordação de um sonho igual ao meu sonho. Tinha tantos, avô… Escutavas sempre com ternura infinita, mesmo quando te contei esse meu sonho de querer ter umas asas e voar. Mesmo se me ralhasses por trepar aos bardos e às arvores e aos telhados. Porque eu queria voar. Porque eu queria parecer-me com os pássaros e estudar o azul. Porque eu queria conhecer as coisas como as conhece o vento quando ergue em torvelinho o pó e nos tomba o cavalo de pau… E tu sorrias, sorrias com esse sorriso belo de quem compreende os sonhos sem os manchar com a ironia ou o sarcasmo. Tu sorrias como se sorri ao sol, quando as tardes demoram e nos espera uma noite em solidão. E isso é o ofício sagrado dos avós. E essas são as tardes mais infinitas que nos ficam, mesmo quando a memória começa a duvidar de si mesma e as horas se parecem mais curtas do que as horas de antigamente e o sorriso mais doente e a soleira mais estreita e os sonhos mais impossíveis… 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Queria ser igualzinho a ti. Vestir como tu camisas de flanela. Fumar como tu maços de Definitivos. Usar como tu, à cintura, uma tesoura da poda e ir indo pelo meio dos campos aparando e limpando os ramos, contemplando o milagre das estações sucessivas, esperando que o tempo cumprisse a sua palavra e te levasse em paz… Igualzinho a ti. 

‒ E se te fizesse um papagaio de papel para aprenderes a subir ao céu? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E seguir, confiar, agasalhar-me na sabedoria dos teus gestos. Ver-te juntar numa mesa cartão e cola, sisal e paus descamados de giesta. Ver-te com decisão erguer um trapézio, enquanto me bebias o espanto e semeavas em mim esse amor que abre brechas nas paredes densas da morte. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Foi há tanto tempo, avô! Custa acreditar há quanto já. Ainda os outeiros tinham a magia dos outeiros. Ainda os dentes de leão vogavam sem medo, roçagando-se suavemente na nossa boca. Ainda o azul que os pássaros bebem se podia olhar no espelho límpido dos charcos escavados pelas chuvas de março. Ainda a terra era livre e perfumada. Ainda os dias eram perfeitos na sua dádiva de poesia. 

‒ E se segurasses neste novelo para eu te explicar como se faz? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E és tu, velho trôpego, és tu quem me vem à cabeça, tu, devorado pela artrose, consumido pelas dores (quantas vezes me comovo ao lembrá-lo), és tu quem eu vejo ainda correndo, mancando, gemendo sobre as ervas, falseando ridiculamente os passos, para que esse mágico losango de cartão pudesse ascender ao lugar dos sonhos, para que eu pudesse aprender sozinho a arte dolorosa de acreditar… 

Não sei por que me recordo agora de tudo isto. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Nem porque se tornou cega a luz azul de março. Nem porque se tornou seca a cratera dos charcos. Nem porque se tornaram tão pesadas as asas do amor que me ensinaste. Nem porque deixei de saber erguer ao alto, como um pedaço de mim, como uma extensão de mim, esse trapézio de cartão, preso a um novelo de sisal. Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu. Perdoa, avô! 

‒ E se hoje fizéssemos um corrupio? 

‒ Eia, isso queria eu! 

Nem porque não sei sair correndo como tu, a mancar, suportando as dores, para que as pás coloridas de uma pequena ventoinha pudessem, como os pequenos pardais distraídos da primavera, que depois de curados tu soltavas, acreditar e voar. Porque isso era o meu sonho. E não sei (o tempo tem destas coisas) como fui capaz de o esquecer…

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