Um santo

Dave Herring
Fotografia de Dave Herring

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Perto de Siena, nas imediações da pequena e pacata cidade de Montalcino, mantém-se de pé uma abadia beneditina do século 12, com o seu antigo hospital, a sua torre sineira, os seus jardins e pomares, a sua adega e uma cripta onde declaram jazer os restos de São Varínio, companheiro de Santo Antimo, se alguma verdade existe nas palavras do sacristão a quem cabe o trabalho de abrir e fechar as portas imensas do velho mosteiro.

Regressa aqui todos os verões Monsenhor Enzo Montale, instrutor de teologia, astrónomo aprendiz, poeta e praticante de rapel. Consigo vem um par de jovens sacerdotes e um magote de adolescentes ávidos de jogos eletrónicos, isolamento social e gírias urbanas, miúdos perdidos, a nadar nas imediações como no limbo das águas vazias de onde Deus partiu para a criação do mundo. Reclamam, reclamam a toda a hora, porque Montalcino é um vilarejo sem subúrbios, os travertinos de Sant’Antimo não admitem grafitos, os quartos do templo são celas abertas que comunicam para o mesmo corredor ecoante e comprido, ao longo do qual transcorre o odor das madeiras, o cântico da água e a voz altissonante do instrutor.

«Meus caros, tende cuidado com as palavras: o dito dito está. Uma vez saídas da boca, as palavras são como cebolas descascadas. Vão parecer-vos de um modo ou de outro cruas e muito malcheirosas.»

Todos os verões, depois das aulas, os pais italianos chegam à lacónica conclusão de que não sabem o que fazer com os filhos. Não os compreendem e não compreendem em que momento erraram na sua educação, nem vislumbram um modo de emendarem a mão, se é que ainda vão a tempo.

Por isso, enviam-nos a Montalcino na esperança de que o teólogo possa encontrar na vetusta construção medieval algum do material antiquíssimo de que outrora se fabricavam os milagres.

Monsenhor Enzo principia os cursos estivais a meio de junho e fá-lo tão apaixonadamente que os resultados não podiam ser menos dececionantes: já uma meia dúzia de ex-alunos professou votos, muitos optaram por se juntar a instituições de caridade e a associações de animais, quase todos corrigiram o rumo das suas vidas impregnando-as nalguma espécie de sentido metafísico.

Bem gostaria ele de fazer observar com todo o rigor os cartapácios da Ordem, a famosa Regra de São Bento, de a seguir pura e duramente à boa maneira do seu noviciado. Se o fizesse os instruendos seriam chamados para momentos alternados de oração, cântico, jejum, penitência, sabedoria. Seriam acordados às quatro da manhã para se abluírem das máculas novas e passadas, beberiam chá de urtigas, mortificariam o corpo com banhos no rio (o fresco Orcia que flui não muito longe) e envergariam túnicas de burel. Jantariam e ceariam aveia e fruta, rezariam o terço e meditariam nas Escrituras, sem outras distrações que não a simplicidade do mundo campestre e contemplativo.

Mas os tempos são seculares e a disciplina uma área controversa. Aqui apenas as celas são varridas e arejadas amiúde e todos os pertences dos miúdos postos em caixas de pinho, empilhadas e fechadas por correntes e um grosso cadeado onde se desenha o relevo da cruz do santo de Núrsia e as siglas justapostas.

«Possuir é o erro mais grave dos mortais. É-nos dado o privilégio de desenganarmos os olhos, as mãos e o espírito com o que quer que não nasça no firmamento, nas nossas hortas ou no nosso rio. Nem a poesia se possui, porque também ela é uma forma de vaidade.»

Este Monsenhor é um atleta. Sobe e desce ravinas, içando-se e prendendo-se perigosamente por cordas desportivas, enquanto recita aos discípulos, cada vez mais fanaticamente rendidos a si, trechos da Imitação de Cristo de Tomás de Kempis ou poemas de Tonino Guerra. A sua felicidade é o seu gáudio, o seu gáudio é o apresto com que alavanca as jovens almas transviadas pelo futor das cidades ao encontro da luz limpa deste silêncio toscano.

Não afirmamos que seja fácil.

Em todas as gloriosas tarefas empreendidas ao serviço de causas maiores, deparamo-nos com escolhos. É exemplo disso esta Giuliana Buonarroti. Tem 17 anos e pírcingues espalhados por tantas partes do corpo que os não poderemos numerar, salvo despindo-a. Giuliana é das pessoas mais renitentes, mais recalcitrantes, azedas, desafiadoras que transpuseram o lintel das portas sagradas da abadia. Enzo Montale ainda não lobrigou o modo de a conquistar.

«Não estou pra isto, cazzo

E reitera-o a toda a hora em palavras, gestos, esgares, acutilâncias, zombarias, delinquentes atropelos à castidade do lugar. Agora mesmo lhe vemos manigantes brilhos metálicos no lugar deixado entrever pelas duas metades descaídas de couro do que se suporia ser um top curto e justo e é um indecoroso desfolhar de rosa incontida, de pele morena e tatuada, de fogo luxurioso e uivante.

Enzo Montale esconde bem os sentimentos. Também esta pequena filha do Criador se há de domar a seu tempo, pois domados foram os leões na caverna de Daniel.

Em Montalcino a brisa estival arrasta consigo o cheiro da cevada, da colza, do trigo enxuto. É a esta grande castidade que o consola de tudo ao final do dia. Talvez muitos outros clérigos hajam nela encontrado refrigério para extirparem, nas noites tortuosas, os brotos do pecado.

Enzo sabe que Satanás nos unta os lábios com mel e sabe que com lubricidade derrama sobre o nosso corpo vencido a sedução mais abrasadora, grotesca e inesperada. Nas pupilas fuzilando no escuro de Monsenhor Montale passa e repassa a tira de cabedal de Giuliana, o decote assanhadamente aberto, o desenho formidável dos seus mamilos acerados por uma espécie da anel. É horrível, é maravilhoso, é um pecado muito grande!

Felizmente ele sabe como desensarilhar todas essas teias da luxúria, todos os liames que inçam sobre a carne e a conspurcam. Monsenhor envergonha-se muito de que essa mesma carne, a sua, tenha quase caído em tentação, escutando ali ao perto o respirar excitado, insone, diabólico, da jovem que tão abertamente o afronta e lhe arremessa olhos cúpidos e sem fundo.

Felizmente o caudal bem-aventurado do Orcia lava todos os resquícios do fogo e das cinzas. Em segredo mergulha nas águas e nu nada do pecado para a santidade, da noite para a madrugada, do tormento para a grande liberdade do perdão.

Oh, a brisa da madrugada é revigorante. Envergando uma túnica de estamenha regressa pelos caminhos de terra e à luz das estrelas ao mosteiro. Ainda vai a tempo das matinas. Tendo acabado de aprender mais uma duríssima lição, sente-se poder continuar a ensinar. Ensinar é o seu caminho e o caminho de Enzo Montale, assim crê, é o caminho da salvação.

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