OS TRASGOS

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Fotografia de Wally Senders

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Pelas mãos do filólogo e professor universitário João de Castro Assis passam páginas de um autor seiscentista totalmente desconhecido de nós, de seu nome Anastácio Paim de Noronha, autor da monografia que o académico vem estudando, anotando e convertendo em grafia atual.

O nome do livro, impresso em Madrid, no ano da providência de MDCXXVIII, leva por título o seguinte dizer: RELAÇÃO DOS ESTRANHOS CASOS, OCORRIDOS NAS PROVÍNCIAS DO MINHO, TRÁS-OS MONTES E BEIRAS, NOS TEMPOS DE AGORA DE ANTANHO, MANDADOS JUNTAR PELOS ILUSTRÍSSIMOS, NOBILÍSSIMOS, CONDES DO VIMIOSO, DOM LUÍS DE PORTUGAL E DOM AFONSO DE PORTUGAL, SEU FILHO.

É um cartapácio imenso, repleto de humor e de fantasia, plausivelmente decalcados do JARDÍN DE FLORES CURIOSAS do leonês Antonio de Torquemada. Um dos curiosos relatos nele compilados reproduzimo-los nós de seguida:

«Nos começos do governo do rei Dom Manuel, nosso senhor, sucedeu a certo tanoeiro que na comarca de Montes Longos vivia, conhecido tanto pelo muito de abastado que tinha quanto pelo muito de avarento que era, que lhe fossem à fazenda e lhe furtassem umas determinadas moedas de ouro, bons cruzados de lei, que ele tinha bem contadas no interior de uma bolsa de couro, guardada em sítio de sua casa onde ninguém, por mais que se pusesse a argueirar, podia facilmente descobrir.

Logo desconfiou o da tanoaria que lhas surripiara algum dos moços que consigo dividiam o mester e que mantinha de costume mal assalariados. Deram-lhe as horas por dormir o sometimento de lhes armar cilada, a fim de retear o larápio e o surpreender e o entregar à justiça.

O que fez o astuto mesteiral?

Escondeu no chão da oficina, em esconsos que ele bem conhecia, alguns dos solarosos cruzados de ouro que possuía, de modo a que dessem com eles os moços e aquele que acostumado ao mau costume da rapina lhos gualdripasse e ele, como anzol à enguia, o apanhasse no exato ámen-jesus.

Vai daí pôs-se com bons modos a pedir:

– Fulano, traz-me isto de tal parte, sicrano vai-me por aquilo ali, beltrano chega-me a plaina e o formão, fulano passa daí o argolame que quero cintar as ripas e acabar esta pipa…

E iam os serventes muito depressa direitos ao que lhes pedia o mestre. Até que um dos quais muito se espantou em certo lugar da oficina e largou em grandes brados:

– Venha aqui depressa, mestre, que vejo nascer da terra tanto ouro que vosmecê nem com mãos ambas o poderá segurar.

E era em boa verdade grande o prodígio: ajuntavam-se tantas peças naquele bocado, como desse nele a magia e se multiplicassem infinitamente os cruzados sotopostos na terra escura pelo bendito tanoeiro. Mas assim que lhes tocava ele com os dedos trémulos, logo a ilusão se esfumava como quando caminhamos nós pela vereda de um sonho. E assim se passando as coisas foram todos tomados de um grande susto.

Tempos mais tarde, sempre artificioso e não querendo retrautar o que consigo mesmo ajustara, o dito tanoeiro pediu a outro servente que lhe fosse à mesa da cozinha e lhe trouxesse o vinho, a boroa e o tanheiro do toucinho que estavam sobre o bancal, dizendo que era ocasião boa para merendarem todos e que muito convinha a todos saciarem-se do aperto da sede e da fome.

Estranhou o moço da repentina liberalidade do somítico patrão, sem suspeitar que na mesa, muito acercado do pão, estaria à vista desarmada um medalhão de ouro lavrado com sua corrente, o qual valeria uma fortuna das grandes.

Foi o ajudante à cozinha e não tardou a regressar, lívido como cal, e querendo falar não podia senão gaguejar, dizendo ter visto na dita cozinha bancos a movimentarem-se sozinhos e dois presuntos graúdos mexerem-se no ar, sem que humano braço ou boca de alimária lhes pegasse.

– Zombas comigo, trapaceiro maldito!

– Pois se o mestre não acredita, vá e veja com os seus próprios olhos!

Foi o tanoeiro ver, levando à retaguarda, pelo sim pelo não, e com súbito receio, a mesurada dos serventes e a findar a comitiva uma serviçal que ali viera por fora, a mando da patroa, buscar uma metade de meia canada de vinho para a ceia.

Não se viu coisa de incomum natureza, a não ser que o pesado medalhão de ouro havia sumido de seu poiso anterior, não se divisando a que nova paragem fora ir ter.

Foi o inocente mancebo entregue ao corregedor, que no entanto por meio nenhum pôde fazê-lo confessar, nem de modo algum deu com o ouro roubado.

– Pagarás pela grande avania que fazes a teu mestre.

– Senhor corregedor, grande diabo mora naquela casa, que ouro aparece do chão e ouro no chão desaparece…

E o moço contou ao atónito corregedor tudo o que sabia e se passava naquela dita casa. Mandou o corregedor um oficial de justiça confirmar da boca dos outros moços o que havia de se confirmar, e confirmou-o. E da boca do mestre tanoeiro escutou o corregedor em pessoa que eram liornas tudo quanto diziam os trapaceiros ajudantes, acrescentando que o seu ouro, pratarias e fazenda lhos roubavam de amiúde em sua casa, e que aquilo seria decerto manha concertada entre eles.

Não tinha o tanoeiro terminadas estas palavras, quando para se limpar do abundante suor que lhe corria da tez tirou da algibeira o lenço da mão e passando-o nas faces logo se descobriram, mal embuçadas no pano grosso, rebrilhando, as fartas correntes do medalhão extraviado.

Zurziu o corregedor o atarantado tanoeiro com ditos ásperos, atribuindo à sua maldade e supina avareza a invenção de todos os furtos de que se lastimava e ameaçando com termos furibundos mandar açoitá-lo publicamente, se continuasse a proferir tais e tão graves doestos, para melhor exemplo dar aos argentários e difamadores.

Correu depois a soada espantosa de que naquela casa, fosse na oficina, fosse nos quartos, nas despensas, nos desvãos, nas escadas de pedra, à luz do dia ou a horas mortas, viam ser arrastada toda a sorte de objetos, móveis e alfaias, levados a direito pelo chão, como investidas de um touro, ou cabriolando pelo ar, como volteaduras de uma mosca. Dizia quem isto o pôde saber que rolavam pelos tabuados incontáveis moedas flamejantes, acordando quem dormia ou atraindo mais e mais a sandice do tanoeiro, pois que as buscava apanhar e logo elas lhe ardiam entre os dedos como pequenos tições saídos dalguma forja infernal.

E por causa destas coisas chamaram um cura, o qual lhes bateu à porta e inteirado de tudo quanto se disse reconheceu, persignando-se com muitas mesuras e solenidade, que aquilo era obra por certo de uns trasgos e fez o que tinha de ser feito, esconjurando-os. A partir de então, cessaram as trebelhadas manias de que se dá notícia aqui, livrando-se a casa das almas más que nela habitavam e emendando-se aquele dito mestre tanoeiro de seu vício nefasto.»

Espera-se para o ano que vem a republicação do dito livro, com a chancela de uma das escassas editoras que por cá não esqueceram ainda o que sejam bons livros, i.e., dos que devam durar uma mão cheia de séculos, sem escaparate, crítica literária ou prefácio do eminentíssimo escritor – minuscófilo – vhm.

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O DESERTO É UM BOM LUGAR

Dunas, deserto, Marrocos, areia vermelha
Fotografia de Jörg Peter

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O beduíno Nasser Yubanim atravessa uma vez mais aquilo a que chamam erg, dunas avermelhadas e escaldantes, paredes duras de areia cantante e perfumada, em cujo dorso o vento se contorce como uma serpente. Custa-lhe imaginar que possa existir no mundo outra paisagem tão bela e tão próxima de Deus, exceto nos oásis à noite, quando o som da água e as estrelas por cima da copa das palmeiras se entendem, uma com as outras, como as palavras meditadas no Corão.

Disseram-lhe uma vez que existem tantas estrelas como grãos de areia na Terra. Duvida que possa haver no universo o que quer que seja em número maior do que estes minúsculos pedaços de rocha erodida. Leva os pés cansados e ardentes. A cáfila segue-o atrás de si como segue ele o seu destino: de uma casbá para outra casbá, adiante, sem perguntas.

Também lhe dizem que noutras paragens do mundo há gente ociosa, gente que descansa ao sol, que brinca na água, que se diverte com a fútil alegria da riqueza e do poder. É algo em que dificilmente pode crer.

Na sua cabeça sobra apenas lugar para o coração e no coração manda somente a sua cabeça limpa e sincrética: nascemos para uma jornada de transformação e transformamo-nos caminhando em direção a Deus. O deserto é uma provação, mas é um bom sítio para se conquistar a simpatia e o respeito de Alá. O beduíno Nasser Yubanim não dá ouvidos a quem lhe assegura que há lugares onde caberiam cem mil oásis juntos. Para que quereria Deus esbanjar o Paraíso?

Não, este é o lugar perfeito para se ser perfeito. Por isso, as sandálias exasperam-me, a sede agasta-me, o ronco insano destas paredes movediças atormenta-me. Os escorpiões e criaturas rastejantes afugentam-me, o sol e o vento mordem-me e açoitam-me, mas estou na direção certa. Nada pode existir mais belo e mais nobre do que caminhar assim, sem despojos, nem ilusões.

É um homem simples, sem dúvida. E como ser-se na verdade de outro modo? Que adianta dissipar o tempo, adiando-o?

MILAGRES DE NATAL

Homem Velho
Fotografia de Pete Linforth

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para a Elsa, para a Marta, para a Catarina

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Meter lenha na fornalha era, em todo o caso, o melhor que tinha a fazer. Enquanto os filhos discutiam, o ancião enfiava gravetos e cavacos pela portinhola do fogão e dava um jeito às costas para que quando o calorzinho as encontrasse as pudesse aquecer com outro cuidado.

Mas o que discutiam os filhos?

Justamente o que fazer consigo. E não era fácil. Viviam todos em lugares muito separados entre si, cada qual com a sua ranchada de miúdos, cada um a contas com a vidinha respetiva. E deve fazer-se bem as contas, oh se se deve! Falecida e enterrada a mãe, estando todos ali reunidos, a oportunidade era de ouro.

Quem tomaria conta do velho?

Nenhum dos oito rapazes, nem sequer a rapariga mostrou interesse, paciência ou disponibilidade para ficar com ele ou levá-lo para longe.

O velhote escutava absorto. Era mister que se começasse com os preparativos da Quadra: a casa precisava de ser limpa; ele mesmo iria com a tesoura da poda cortar os ramos de gilbardeira e fazer com eles a vassoura e varrer com ela a fuligem incrustada nas telhas. Era tempo de lavar com sabão as panelas de ferro, tirar do sal as peças de carne, tirar do serrim as uvas guardadas em setembro, tirar das arcas o linho e as pratas. Era mister que se preparasse o presépio e os quartos e essa comprida mesa onde se haveria de sentar a multidão de filhos, noras e netos que haveriam de partilhar a noite de Consoada.

O frio punha-lhe os ouvidos em riste: a gritaria batia-lhe nos tímpanos como lâminas de gelo. Porque discutiam aqueles rapazes? Aquela moça tão boa, tão igual à mãe, tão parecida com essa mulher que em quase três das quatro partes do século foi a sua?

Em todo o caso, o melhor era manter vivo o lume, esquecer as misérias do mundo, trazer de volta os gestos de antigamente – aqueles de que se alimenta genuinamente um homem. As costas e os pés esquentados são um consolo para o qual não existem palavras…

Sim, quem tomaria conta do velho?

Verdade seja dita: já poucos hoje acreditam em milagres de Natal.

A IGREJINHA

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Fotografia de Pete Linforth

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Em Albitreccia, a meio do vilarejo, numa colina sobre o bosque, ergue-se como uma ilhota de pedra a pequena igreja medieval. Ou o que dela sobrou.

Os séculos despiram-na impiedosamente. Primeiro dos sinos e do ouro litúrgico, depois das imagens ricamente esculpidas em cedro e dos frescos, por fim dos vitrais e dos telhados, das portas e da pia batismal. Os lavradores chegaram a usá-la para guardarem as reses. Agora nem os vadios ali querem entrar. É só um amontoado de granito e tábuas mal pregadas, dispersas pelo chão barrento.

Um professor estrangeiro afirma que na pedra do tímpano, em letras quase apagadas, se lê que foi consagrada no ano de 701 a Santa Luzia de Siracusa. Com efeito, muitos são aqueles que, saindo ou entrando no bosque nos últimos dias de outono ali veem luzes misteriosas. Falam em centenas de velas acesas, ardendo no meio da solidão.

Os céticos admitem que a lua cheia, reluzindo em folhas húmidas da carvalho, criam esse revérbero magnífico. Especialmente quando as neblinas não ocultam inteiramente a paisagem e ampliam o efeito ótico.

Muitos são aqueles que creem que os mortos ali rezam de novo, uma vez por ano, não sabem se sabe se pela sua, se pela nossa salvação.

AS ROMÃZEIRAS

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Fotografia de Coco Parisienne

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No centro da cidade, no lugar que tinha sido uma floresta de amieiros no tempo dos celtas, fizeram os romanos nascer um grande jardim de figueiras. Acredita-se que em homenagem à deusa Pomona, ou como lembrança da Figueira Ruminal do Capitólio. Outros, porém (versão mais crível), asseguram que os soldados de Sulpício Galba plantaram ali um bosque de carvalhos-brancos, evocativo daquele outro bosque em que moravam as dríades querquetulanas, em Roma, junto à muralha de Sérvio.

Esse carvalhal sagrado existia ainda no tempo do visigodos, porque (um cronista contemporâneo de Santo Isidoro declara-o) “com madeira de um roble dos antigos pagãos construíram a Hermenegildo o féretro, encimado por uma grande cruz esculpida, por amor da qual mandou Leovigildo, seu pai, cortar-lhe a cabeça. E a inumeráveis outros godos mártires deram a morte e os enterraram com lenhos trazidos da mesma mata”.

Uma centúria se passou, ou pouco mais. Os omíadas de Tárique subiram de África, passaram a fio de espada o rei Rodrigo, trucidaram sem piedade os nazarenos que lhes faziam frente, pilharam e incendiaram vilarelhos, escravizaram servos e senhores das cidades da sua conquista, e aos poucos, num vagar de séculos, levantaram do solo carbonizado e ensanguentado planícies magníficas de amendoeiras.

Com elas branquejou a paisagem muito tempo, até Alfonso, filho de Urraca, imperador da Hispânia, ordenar que fossem arrancadas todas essas árvores e, para melhor purgação dos vestígios islâmicos, abrissem no lugar onde elas frutificavam os caboucos de um mosteiro cisterciense. Quis o destino que os monges de S. Roberto cultivassem nos seus vergéis e bosquedos toda a espécie de plantas e ervas e árvores. Um deles, Frei Juan de Zamora, lendo muitas vezes cartapácios de antanho com cronicões e memórias preciosas, meditando amiúde sobre os desígnios do Senhor, tão esquecido da barbárie humana, sugeriu que no centro do claustro, a ladear o belo repuxo de águas cristalinas, plantassem cinco romãzeiras.

Assim fizeram e ainda hoje, no lugar que foi de amieiros, figueiras, carvalhos e amendoeiras, vermelheja, tantas quantos os dedos de uma mão, as cinco árvores do romeiral. Uns afirmam que em louvor das cinco chagas de Cristo. Outros, porém (tese erudita, menos defensável), asseveram que para homenagear todo o sangue inocente, derramado em dois milénios de terrível predação.

Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres – Discurso de Agradecimento

João Ricardo Lopes
João Ricardo Lopes, lendo o discurso de agradecimento

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Excelentíssimas senhoras e excelentíssimos senhores,

Permitam-me que encete, deste modo, o meu discurso de agradecimento. Gostaria de o fazer, aludindo à luz…

Tal como o silêncio, ou como as palavras, a luz pode encher-nos de uma felicidade imensa, ou pode arremessar-nos com violência contra as coisas. Não ignoramos a natureza prodigiosa de que é feita, nem o despudor da sua força, quando ao revelar mostra, quando ao mostrar-nos esfacela.

Aprendemos nas aulas de Ciências que a luz é uma radiação eletromagnética propagada ao longo do vácuo, uma corrente de ondas e de partículas, de fotões e de neutrinos, de elementos subatómicos, cuja designação nos aguça a curiosidade e nos atira para fora do senso comum. A luz é feita de nada, mas por causa dela tudo existe. «Faça-se a luz!» principia assim o Génesis.

Aprendi, sobretudo, nas viagens que, matinal e diariamente, faço para o trabalho que a luz é uma espécie de milagre, uma transformação, um eclodir de vida que à hora certa atinge a massa escura das montanhas do Marão e cai obliquamente sobre a paisagem para nela acordar a visão dos campos, das vinhas, dos riachos recobertos de névoa, dos pássaros, dos canteiros repletos de verde e de olor.

A luz é essa proximidade repentina com aquilo que nos rodeia: com o asfalto atafulhado de folhas outoniças, com o reflexo além no vidro de uma qualquer janela sobranceira, com a cor quase feérica dos bordos, dos plátanos, dos choupos, dos carvalhos, dos castanheiros, de tantas outras árvores benditas nesta altura do ano.

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Marco Martins (Presidente da Câmara de Gondomar) e José António Gomes (escritor e professor universitário)

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As viagens demoram-nos no que nelas há de dádiva da luz. Por exemplo, as memórias que se foram e se vão alojando por dentro dos olhos. A vela transbordante, a tremeluzir nas noites de tempestade. O fósforo riscado numa cave antiquíssima na casa dos avós. O candeeiro a petróleo com o seu halo estampado na parede, onde a caliça e o caruncho se entendem. Por exemplo, as labaredas da lareira, a desenhar sulcos no rosto infantil. Por exemplo, o rouquejar das panelas de ferro, com o unto a dissolver-se em bolhas translúcidas pelo meio do caldo. Por exemplo, a gambiarra suspensa das traves, a dançar entre teias de aranha, a pendular com o vento, a brincar com as sombras que sobem da terra batida ao teto. Por exemplo, ainda, o vinho a vidrar nas tigelas, ou as contas do terço, rebrilhantes, a passar entre os dedos de uma avó lendária, numa sonolência que não sabe morrer. A luz é um cismar, também, um pasmo longínquo, uma saudade que regressa por instantes, enquanto o automóvel nos balança nas curvas da estrada e se escuta na rádio um adágio pungente de Barber, ou Bach, ou Marcello, ou Vivaldi. A luz dimana, voluteia, rasga, disseca, queima.

A luz, permitam-me que dela fale um pouco mais, vi-a maravilhosamente em Milão, na Ceia de Emaús de Caravaggio. A mesma que se acende, em chiaroscuro, entre as figuras da Ronda da Noite de Rembrandt, uma das melhores recordações que guardo do Rijksmuseum. É a mesma presença vivificante que abre mais as rugas de São José, no quadro de Georges de la Tour que me inspirou um dos poemas deste livro. Ou que explode nos girassóis de van Gogh. Ou que serenamente nos acolhe nos quadros de Vilhelm Hammershøi.

A luz é, ainda, o reino insuperável de leveza e de simetria, ao mesmo tempo do colosso e da bizarria das catedrais que tanto amo, em cujos vitrais saturados de cor e de narrativa os nossos olhos se esquecem do pouco que somos e do escasso que podemos viver.

A luz sentimo-la às vezes perdida na pele. E depois na alma. Também assim o escreveu Dostoievski, no primeiro capítulo de Humilhados e Ofendidos, quando pela voz do narrador exclama, emocionado: “É extraordinário o poder de um raio de sol sobre a alma de um homem!” Sentimo-la nós assim, especialmente nos dolorosos dias em que nos mingua o ânimo e nos pesa mais o corpo.

A luz – admitamos em suma a sua natureza indefinível e irrepetível (em nós, contra nós, depois de nós) – talvez não ilumine. Talvez nós é que ardamos como insetos atraídos pela lâmpada e atravessados, algures, no seu caminho. Sabemo-nos feridos e consolados por ela. Sabemo-nos despidos e cobertos pelo seu manto. Sabemo-la a viajar pelo tempo e pelo espaço e a deter-se às tantas num pormenor. Esse pormenor em que ela e nós nos encontramos é a poesia.

É dessa luz que, muito particularmente, eu necessito. Dessa luz-silêncio, dessa luz-palavra, dessa luz-poesia. É por causa dela, em obediência ao seu poder que nasceu este e todos os meus outros livros.

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José Augusto Nunes Carneiro (editor), João Ricardo Lopes, Marco Martins e José António Gomes

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Estou em Fânzeres pela segunda vez.

Há vinte anos recebi aqui um prémio da maior importância para o percurso na escrita que então começava: foi essa distinção, atribuída a Além do Dia Hoje que o desencadeou. Aqui se fez publicar o meu primeiro livro.

Duas décadas volvidas, regresso com Em Nome da Luz. Tomando de empréstimo um verso de Emmanuel Hocquard, «Esse livro passou a ser o meu primeiro livro». Toda a luz que com ele encontrei partilho-a convosco!

Sinto-me profundamente agradecido a esta terra. Agradeço à Junta de Freguesia de Fânzeres e de São Pedro da Cova, na pessoa da Senhora Presidente (Sofia Martins), este Prémio, o livro publicado, este serão verdadeiramente inesquecível e repleto de dignidade. Endereço-lhe, a si, aos autarcas que a antecederam, também, as minhas sinceras felicitações por terem sabido, não apenas sustentar este projeto literário, como sobretudo aquilatar com ele e para ele prestígio nacional.

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Executivo da União de Freguesias de Fânzeres e de São Pedro da Cova (em destaque, a Presidente de Junta, Sofia Martins)

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Agradeço, de modo igual, aos três distintos membros do júri deste Prémio, que primeiramente me leram: a Augusta Cosme; a José Augusto Nunes Carneiro (poeta, editor); ao Professor José António Gomes (cujas palavras há pouco escutadas verdadeiramente me tocaram, e cuja poesia – sob o nome de João Pedro Mésseder – há tantos anos venho estudando com os meus alunos).

Agradeço, de um modo particular, de um modo fraterno, a todas e a todos (família, amigos, conhecidos, curiosos, autarcas, funcionários, artistas presentes), a todas e a todos os que hoje, aqui, nesta Casa de Montezelo, se associaram à cerimónia, partilhando a sua presença, o seu tempo, o seu afeto, a sua luz.

Bem hajam, por isso! Muito obrigado!

Fânzeres, 11 de novembro de 2022

João Ricardo Lopes

PRÉMIO NACIONAL DE POESIA DA VILA DE FÂNZERES (31.ª EDIÇÃO)

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Recebi na passada segunda-feira, pela voz da senhora Presidente da Junta da Freguesia de Fânzeres, Dra. Sofia Martins, a notícia da atribuição do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres este ano ao livro original EM NOME DA LUZ, distinção que recebo pela segunda vez, depois de em 2001 a ter conseguido com o volume ALÉM DO DIA HOJE.

Soube-o na escola, no final de uma aula, entre corredores apinhados. Confesso que a novidade me abalou e me comoveu profundamente. Não foi fácil o percurso deste livro, iniciado no parque de estacionamento do IPO, no Porto, e construído como uma defesa, como uma resposta, como um caminho de salvação, como um ir para onde a poesia somente nos sabe levar.

Quem me conhece sabe que uso as palavras para que elas signifiquem e para que dentro delas signifiquem as pessoas. Nem sempre sou entendido, ou estimado, ou lembrado. Às vezes vivo longe (numa espécie de voluntário eremitério, como o que Nietzsche atribui a Zaratustra). Quem me conhece sabe o quanto tenho devotado à poesia o melhor da minha vida. E sabe o quanto me vem a poesia guindando bem alto, para lá de certa luz impura (de panegírico fácil e amizade hipócrita), onde o seu silêncio apenas me pode tocar.

Mas agradeço aos deuses tutelares esta espécie de fuga. Ao cabo de tantos anos, receber um novo prémio literário sabe bem. Sobretudo, porque este reconhecimento chega de quem me não conhece, mas às minhas palavras sim.

E não se pode pedir mais. Nem melhor.

A TOKAREV

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Fotografia de Bananayota (Pixabay)

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O desespero levou Bartinik Sendecki, na manhã do vigésimo nono aniversário, a procurar certo tijolo esburacado onde escondia uma anacrónica Tokarev TT 30. Não pôde retirá-la de dentro da peúga sem estremecer: ao fim e ao cabo, uma arma – qualquer que seja a sua forma origem, a sua idade, a sua forma de matar, é um objeto incerto e um teste ao livre-arbítrio.

Cansado, doente, sem dinheiro, vítima do azar, da solidão, de si mesmo (aos poucos começava a odiar-se com fanatismo), Sendecki dispunha de um recurso inestimável: o poder de fogo de uma pistola que andara no coldre do bisavô durante a Segunda Grande Guerra e que desaparecia e reaparecia agora a cada vinte anos, à medida que mudava de casa e de mãos e que por uma ou por outra razão, era preciso ocultá-la das rusgas da polícia.

O que fazer?

Sendecki imaginou todos os cenários: suicidar-se, assaltar um banco, penhorá-la. O desespero, embora seja bastante dramático. Abandonou o apartamentozinho decrépito na Wawrzyszew disposto a mudar alguma coisa, a cometer um ato, a avançar nalguma direção.

Tinha fome. Para sermos rigorosos, não comia em condições desde que lhe comera um prato de Żurek cinco dias antes. Quando cruzou a terceira esquina, na Sándora Petöfiego, em direção ao Parque Wyspa, deteve-se diante de uma furgoneta amarela e azul. Era um dos milhares de negócios ambulantes de Varsóvia. Vendia cachorros quentes e sodas. O cheiro das salsichas aquecidas, embrulhadas em molho e pão, tão perto das suas narinas e da sua boca embruteceu-o.

Decidiu roubar ali mesmo o primeiro instante da sua nova vida. O que tinha a perder?

Mas não foi capaz. A rapariga, de um louro fulvo e sedoso, Anna Gralówna, sorriu-lhe com enorme simpatia. Tinham sido colegas de carteira na escola preparatória, tinham fumado juntos um dos primeiros cigarros, tinham dados beijos e trocado carícias.
«Há quanto tempo, Bart!» foi o que conseguiu escutar, antes de cair de borco no cimento duro.

Nada mais terrivelmente humilhante do que confessar a imprudente tristeza de não ter que comer. Anna fez questão de lhe segurar o cachorro nas mãos, enquanto disfarçadamente secava as lágrimas com as costas da mão. «Bartinik Sendecki, temos muito que conversar. Temos sim, meu menino!»

No interior do bolso, a Tokarev pouco pesava. Muda e cheia de vergonha, esforçava-se por se manter quieta. Muito mudados estavam os tempos na Polónia. Limitar-se a ficar oculta, como uma mentira precocemente inutilizada. Se isto era coisa que se fizesse a uma filha da Revolução! Se era!

MOTIVOS DE ORGULHO

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Fotografia de Robert Balog

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A minha avó era enfermeira, chamava-se Mabília Roriz, disse o fulano lingrinhas. Cuidava de hortênsias e fazia abortos nas traseiras de sua casa, onde entravam as moças, mas nunca a polícia. Foi a primeira mulher a fumar nos cafés da vila, onde a vinham escutar os bufos e os bons.

Percebia-se nestas palavras e noutras um enorme orgulho filial.

A minha avó chamava-se Amélia. Teve dez filhos, de que vingaram sete. Criou-os como pôde, sem mais dados relevantes que isto: manejava teares mecânicos com a mesma destreza com que punha uma enxada na terra. Era desbocada, honesta e amiga dos pobres.

Deverei ufanar-me?

O SILÊNCIO

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Fotografia: English

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Enquanto não poisava completamente a noite, ele ia passando em revista as notas de agenda. Era cada vez mais complicado tê-las organizadas na memória. O jantar, no fogão, dava mostras de estar quase pronto. No chuveiro terminara o som da água a correr. Daí a nada ela viria juntar-se-lhe.

O tempo do desejo acabara irremediavelmente. Agora, só uma força irresistível, cheia de hipocrisia os colava um ao outro.

Comeram em silêncio. Um silêncio mastigado, interrompido, tilintante. Ela levantou-se e retirou do frigorífico um refrigerante. Quis saber se ele beberia sumo ou vinho ou água.

Às vezes há no modo de perguntar um ódio a que se pode responder apenas com um ódio ainda maior. Quis responder, preferiu não beber coisa nenhuma.

Terminada a refeição, ele levantou-se e trouxe um cestinho com fruta. Descascou uma laranja para si, mas quis dar-lha. Ela recusou. Precisava de telefonar, coisa rápida. Os cafés tirava-os a seguir. Algo lhe vinha ao fundo da alma como uma expectativa, uma adivinhação, um ressentimento.

Limpou tudo, arrumou a mesa, guardou o pão sobrante, devolveu os frascos do ketchup e da mostarda ao frigorífico, varreu a cozinha, passou a esfregona sobre as tijoleiras brancas. Verificou o balde do lixo, achou ser altura de lhe trocar o saco. Desceu à rua, depositou o saco num lugar próprio e subiu. Nessa altura, ela falava ainda, mais baixo, quase abafando a voz.

Ele quis fumar. Já a noite derrubara tudo. Já a cidade afundava no seu torpor de animal morrente. Às vezes o ódio é mais do que um estado. É um convencimento. Digamos, uma salvação.