A VINHA

garrafa e vinho tinto; bottle and red wine; bouteille et vin rouge; bottiglia e vino rosso
Fotografia de Vinotecarium

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A vinha estende-se por uma área pedregosa, calcária, atingindo com o seu verde às vezes ralo as encostas mais a sul do rio. Não é ainda uma paisagem bonita, nem suficientemente encorajadora quer em número de litros, quer na qualidade neles encontrada.

Mas de Bernard Mureau não se pode afirmar que seja pessoa para deitar os bofes de fora à toa. Agora mesmo o vemos, tinto como uma cereja, a teimar com a picareta no torrão endurecido de um panascal, com o propósito firme de o transformar em terra produtiva.

Grandes revoadas de pó saem de ao pé de si e vêm encosta abaixo, assentando entre as folhas mortas destas videiras obstinadas. O pó cobre os carreiros de formigas e as formigas, iguais a fantasminhas teimosos, avançam na direção dos montículos açucarados em que se transformaram ao fim e ao cabo os gaipelos abandonados no chão. Em breve não haverá calor, nem carcaças doces de uvas, nem motivos para aqui processionarem as formigas.

Mureau tem uma visão.

É um desses loucos determinados a deixarem a sua marca, desses que britam a pedra por um quinhão de celebridade, por um nome, por um aroma inconfundível.

Além, mais perto da casa do que da pedreira, nas caves desensarilhadas para já de teias de aranha, no interior de cubas herméticas e imaculadas, repousa o primeiro manancial da quinta. Mureau torceu o nariz, sabe-o ainda titubeante, insuficiente, em formação.

Mas se, por um lado o assalta a ideia de parar por aqui, de acabar com a sísifica tortura de esventar pedra e de viver o seu tempo com um mínimo de paz e de prazer, por outro, espicaça-o a insânia de transformar rocha em vinho, de vencer impossivelmente, de impor à terra o seu tributo implacável. É neste segundo estado que se sente mais quem é. As mãos enrijam, a longa lâmina da picareta endurece, todo ele esmilha com mais vontade a penedia escabrosa.

Ninguém duvida que um dia se beberá daqui a melhor pinot noir de toda a Toulon, da região da Provença, do sul da Europa. Cavando e escando, há nesta sua férrea determinação a escrita profética de um demente.

E os dementes assustam. Ah, se assustam…

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PENSAMENTOS SOLTOS

Noruega, Ártico, gelo, calote, frio
Fotografia de Cristian Manieri

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A vida em Jan Meyen é assombrosamente dura.

Ao longo dos 365 invernos do ano, espera-se a melhor oportunidade para fotografar a bela linha azul turquesa da costa e as calotas que cobrem quase por completo o território da ilha.

Ou para escalar o Beereberg e observar a fosforescência hipnótica do firmamento noturno, varado de ponta a ponta pelas luzes boreais.

Ou para rezar.

Aqui, ou além nas ilhotas de Francisco José, a leste de Svalbard, ou na Gronelândia, mais a oeste ainda, a vida é um apontamento delicado. Os gestos, mesmo os banais, são um meio de superação desesperado.

Raras vezes pernoitam cá forasteiros. A palavra forasteiros é, ela própria, insidiosa, divertida, extravagante até. Os ursos polares e as foras diriam, se pudessem, que aqui indígena é somente o gelo. Ou talvez nem ele.

Aqui, neste acampamento de Olonkinbyen, reza-se.

Reza-se entre pensamentos adormecidos pelo frio. Reza-se por causa da cruz que pregaram numa das paredes da sala aquecida, onde todos os dezoito funcionários da Coroa se agregam duas vezes por dia.

Eles persignam-se ao vê-la, é um instinto.

Quando o vento glaciar queima o rosto e seca as lágrimas, quando no meio das tempestades de neve o som dos passos é amortecido pelo grande silêncio que lamina os ouvidos, Deus é um assunto muito sério:

Niels e Fiona juram que O escutaram em 2004, uma hora antes de perderem os sentidos.

Magnus, que os resgatou debaixo de uma chuva de salpicos aguçados, jura que Deus não existe e enfurece-se se lhe dizem que foi Ele quem o guiou até aos companheiros em perigo.

“Foram os meus três cães quem vos salvaram” repete sem entusiasmo.

Em Jan Meyen, Deus é uma voz longínqua.

A correnteza que desce do Ártico atemoriza todos os colossos. Um café quente, casacos, luvas e botas adequadas, mais a esperteza dos cães e a porcaria da aparelhagem anacrónica são tudo aquilo de que se precisa. Afora os víveres que o helicóptero atira de quando em quando.

Aqui todos os superlativos se assemelham a um desperdício.

Niels e Fiona são de opinião que Deus assume as formas mais extraordinárias. E que nos pormenores se escondem as grandes verdades do universo.

“Até o som do vento é diferente quando O escutamos. Até o gelo estremece de outro modo quando os Seus pés pisam aqui, ao lado dos nossos.”

Mas não existe consenso.

Linnea, a chefe da estação meteorológica – uma moderadora, portanto –, alega que nem valeria de muito negociar com pessoas tão diferentes. Não há dois seres humanos idênticos, ainda que gerados e nascidos nas exatíssimas mesmíssimas condições. E a questão de Deus é a grande não-questão de todos os tempos:

“Que importa discutir a fé, a maior das nossas reservas pessoais?”

Nos seus mapas há cores fosforescentes, círculos e sublinhados confusos, asteriscos, flechas, números que só ele parece entender.

Porém, essa linguagem é tradutível: o rigor ou a falta dele pode gerar cataclismos. O reino da Noruega conta com o empenho destas mulheres e destes homens: Niels, Fiona, Magnus, Knud, Mette, Jakob, Ada, Henrik, Olav, Markus, Vilde, Alinor, Iben, Tuva, Hedvig, Sigrid, Sverre e, acima deles, ela, a líder do grupo, sabem que domar o frio, a solidão e as próprias angústias constitui um feito de que o mundo não se dá conta.

Aqui, em Jan Meyen, a vida põe-se contra si própria. Todos os detalhes contam.

Nenhum dos dezoito que habitam este pequeno mundo imenso voltará ao continente como veio. Para quê gastar a cabeça com questões tão fundamentais?

Talvez aqui a cruz seja um sinal de civilização e não de fé. “Mas que importa isso?”, modera Linnea, entre encapuzados enchumaçados, acabados de chegar, ou prontos a enfrentar, as temperaturas mais baixas do planeta.

“Deus é muito mais do que entendimento. É a cama onde esperamos deitar-nos…”

A FOME

Fotografia de Simone Miotto sobre a seca
Fotografia de Simone Miotto

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“A fome veio para ficar” disse o padre Paolo Gentile, pondo os olhos muito longe, nos vitrais, na pomba do Espírito Santo, nos olhos atordoados dos apóstolos.

Na aldeia, os ricos tinham-se tornado remediados, os remediados pobres, os pobres em gente miserável. Tudo por culpa da chuva, da chuva que não havia modos de cair, dos campos transformados em camas de pó, das árvores secas, dos rios vazios… Tudo por culpa da ganância, dos açambarcadores poderosos, dos cruéis monopolistas que impunham os preços. Do pouco faziam muito e o muito do pouco engordava-os. Os monopolistas açambarcadores eram os únicos a dar-se bem com a fome, a lucrar com ela, a compreender verdadeiramente as homílias do padre. Eram os únicos a manter a contradição: por isso, tornavam-se mais intocavelmente inumanos, iguais aos próprios santos para onde Paolo Gentile dirigia o olhar cismoso e condoído.

Havia pessoas a precisar de massa, de arroz, ovos, carne, azeite, pessoas que pouco tempos antes doavam com facilidade massa, arroz, ovos, carne e azeite. Não se percebia bem como tinham tropeçado na desgraça, como tão depressa, tão meticulosamente, tão à vontade as havia castigado o destino.

O padre erguia ambos os braços em grandes gestos apelativos, lembrava Cristo, circumpunha exemplos pródigos de amor e de solidariedade pelo próximo. Repetia a máxima de São Columba de que “A roda da fortuna mexe tantas vezes e tão depressa que ninguém está a salvo do seu cirandar cruel”. Contudo as esmolas eram iguais à terra gretada. Tocavam-lhes as mãos e logo desapareciam em farrapos polvorentos, grãos irrisórias de coisa nenhuma.

Em Sant’Angelo, a carestia foi enorme nesse tempo. Cozinhava-se algum peixe com algas uma vez por dia e não raro desenterrava-se tubérculos e raízes de arbustos. Usava-se ervas bravas e folhas de urtiga para suprir a falta de fruta e hortaliça. Os afortunadas que as encontrassem podiam apanhar bagas e amoras, se o sol as não havia crestado. E com elas almoçam ou jantavam.

No início do outono, o céu encheu-se de ódio e cobriu toda a ilha com nimbos. A chuva mergulhou sobre Forio, Casamicciola Terme, Ischia, Piano Liguori, Serrana Fontana, enxurrando em simultâneo terrenos agrícolas, veredas, baldios, canteiros e jardins. O ocre, o almagre, o grés, o amarelo do capim extenuado, transformaram-se em feios espelhos de água barrenta. Os silos, onde os agiotas guardavam com mil olhos e dez mil canos de espingarda o caviloso recheio de sua avarícia, não puderam impedir que a tempestade e o aluvião entrassem pelas frinchas, pelas janelas, pelos telhados varridos e encarquilhados, pelos umbrais sem porta.

De modo que então, sim, tudo se perdeu. E a fome, único poder legitimado, assenhoreou-se das almas cristãs como uma praga bíblica, como uma verdade, como uma paga violenta e irrespondível, com nenhuma, com toda a razão…

COISAS INSÓLITAS

Coisas insólitas
Fotografia de Petri Damstén

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O suplemento cultural do El País noticiava na semana passada, e a propósito da entrevista com Hernán Diego Caballero – o mais caro, o mais culto, o mais singular cangalheiro de Madrid – uma série de factos bizarros, a que chamaram nas caixas laterais da peça “Cosas Increíbiles”.

Recordemo-las:

A nadadora

Paloma Martínez*, ex-atleta olímpica, nadadora, divorciada cinco vezes, exigiu em testamento que a depositassem no caixão completamente nua, devendo o esquife ser de madeira de cedro azul e conter dois palmos bem medidos de areia proveniente de Alicante, sua terra natal.

Exigiu, igualmente, que a não maquilhassem, mas que, antes de ser encaminhada para o crematório, lhe desenhassem “ao de leve” um sorriso no rosto, “delicado, mas trocista”. Não dispensou o velório, mas quaisquer tipos de cerimónias religiosas foram liminarmente excluídos, por sua vontade.

Varrida a areia da urna – não constante, diga-se, do circuito cinerário de todos os fins –, o funcionário de serviço leu, eram nove menos um quarto, sobre o tampo do féretro a lacónica inscrição: «Em suma, fui uma tola!»

O podologista

Gervasio Muñoz, podologista, viúvo de noventa e muitos anos, pretende ser sepultado com as fotografias do casamento, ocorrido em junho de 1946. Explicação: a mulher, Concepción Aguilara, possuía os pés mais bonitos que viu em toda a sua vida e nunca eles lhe pareceram tão belos como no dia da boda, calçando uns modestos peep-toe feitos de uma imitação de pele de cobra e emprestados pela sua irmã mais velha.

Na campa de Gervasio todos os recipientes deverão apresentar a forma deste membro inferior e todos deverão – pelo período de vinte anos – ser enchidos uma vez por semana com orquídeas brasileiras, as prediletas da sua defunta.

Deixa testamentada a soma de oitenta e cinco mil euros para este efeito.

O engenheiro

Daniel Guarnido, engenheiro de telecomunicações, lunático, declara ser pedido expresso de sua mãe, Leonor del Prado, festejar a partida como festejaria um novo casamento ou o centésimo aniversário. Todos os interessados em participar no programa exequial devem rever o repertório dos ABBA. Com efeito, o sistema sonoro da capela mortuária prepara-se para repetir o Chiquitita, o Mamma Mia, ou o Voulez-Vous.

Momento culminante –garantiu-o Caballero ao El País, sob palavra de honra – acontecerá quando os músicos tocarem um arranjo musical, especialmente concebido para a ocasião, do Take A Chance On Me e toda a assistência responder em coro, e comovida, eufórica, incapaz de resistir – e muito fácil de adivinhar – se entregar a um pezinho de dança.

Nota: o engenheiro quer filmar o evento e oferecer a todos os amigos e convivas a possibilidade de o recordar, contando que acedam a uma plataforma de streaming. Caso é para que reflitamos neste sábio pensamento de um autor anónimo: «Nunca nada será tão estranho que o não possa ser mais ainda.»

O traficante

Na mesma linha de pensamento – sem que, contudo, tenha ocorrido a Hernán Diego Caballero a evidente falta de originalidade temática – Pablo Iñigo desejou que o seu derradeiro avistamento neste mundo fosse assinalado com a presença de um DJ, colunas de potência máxima e dançarinas repletas de sensualidade. Aos convidados – “Convidados, pois claro”, enfatizou o cangalheiro, “e do melhor pano social” – a eles foi servida uma mistura de uísque, bebidas energéticas e o remanescente do produto que na etapa final da sua curta vida Iñigo comerciou “entre os nossos filhos, nos melhores bairros da nação”.

Não importa que o barulho, as moças delirantes, as drogas, o álcool, o grotesco ataúde enfeitado com fitas néon coloridas, os gritos orgásmicos saídos de todos lhe hajam parecido um fornízio bíblico.

“Na nossa empresa o lema é «Em tudo agradar ao cliente, como se não houvesse amanhã»”.

O eletricista

Por último, o caso de Jose Luis Ibarzabal, eletricista. Mostrou-se irredutível no modo de aparecer diante do Criador. Em lugar de um terço, quis as mãos unidas a uma lâmpada vulgar em forma de pera, das antigas. Também desejou que o não vestissem com fato e gravata, mas com o macacão azul-sulfato. Não quis sapatos, mas as botas de trabalho e o cinto das ferramentas. “Se Deus fez a luz e a luz se fundiu, vou em boa altura”.

Foi de rir.

Ao forro acetinado da tumba decretou que cosêssemos as placas retrorrefletoras com os sinais de perigo e de aviso a que se acostumou. O mais bizarro de todos – obra do seu engenho e sentido de humor – uma caveira iluminada com o brilho de uma explosão e o seguinte dizer: Cuidado com os mortos. Eles cagam-se!

* N. A. Todos os nomes próprios foram devidamente reintegrados no nosso texto, pese “a inoportunidade e deslealdade” (sic) de o termos feito, como muitíssimo bem o lavrou no seu protesto (a nós dirigido em sobrescrito de janela e com monograma dourado) Hernán Diego Caballero, acionista principal da empresa TE INMORTALIZAMOS, a quem pedimos (e às famílias dos visados) as mais sinceras desculpas.

UM EXPLORADOR

Pierre Pellegrini
Fotografia de Pierre Pellegrini

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Durante a noite Emerenciano Castanheira voava. O corpo descobria-se livre e leve, abria os braços e punha-se a subir e a esvoaçar à volta da casa, cada vez mais depressa, cada vez mais alto, cada vez mais amplamente, em círculos, como um pássaro enlouquecido.

Era um sonho recorrente. Emerenciano via-se a encostar a escada de eucalipto à parede nascente, junto ao limoeiro, a trepar por ela até ao telhado, como se fosse limpar uma chaminé, e depois, empoleirado sobre uma das empenas, contemplado o casario ao redor, acontecia exatamente o que se disse atrás: Emerenciano batia os braços e voava.

A vertigem da ascensão compensava-a a vista: tudo tão pormenorizado, tão realista, tão coerente que não podia ser senão verdade: o defeito das telhas, a casota do cão lá em baixo, e o animalzinho com as patas de fora, os grandes postes de eletricidade com ninhos de cegonhas, a torre piramidal da igreja que afinal se parecia um quadrado cortado por um enorme X entre os ângulos, a copa dos grandes choupos e as veias averdiscadas dos arroios pelo meio da terra ocre, tudo coerente, realista, pormenorizado, até chegar ao branco das nuvens e aí se perder de susto, na confusão láctea do nevoeiro.

Quando despertava, Emerenciano Castanheiro sentia-se muito bem-disposto. Orgulhoso até. No final destes seus voos oníricos, a vida parecia-lhe outra, mais divina, mais sabedora de coisas indiscretas (nos sonhos, a sua visão de ave atingia amores clandestinos de mulheres casadas com moços da tropa, negócios proibidos de candongueiros de café e cigarros, roubos nos alambiques e nos lagares de azeite, até as lágrimas que as mulheres camponesas engoliam, quando triplamente vergadas pela condição de género, do trabalho, de mães pobres). Do alto apanha-se tudo e os braços valentes e os olhos acutilantes de que Emerenciano Castanheira dispunha eram armas nada despiciendas. Numa palavra, sentia-se um explorador.

Admitamos que um felizardo, também. Quantos de nós não gostaríamos de, no despudor dos sonhos, ampliada pela lente destes voos, termos da vida e da vizinhança uma visão tão certa?

Felizmente, Emerenciano era ajuizado e discretíssimo. As palavras precisam de um travão e ele sabia-o. O que à sua cabeça vinha na sua cabeça ficava. Era melhor assim. Muito melhor!

Quantos de nós não gostaríamos de um tal poder?

OS TRASGOS

Wally - woodworking
Fotografia de Wally Senders

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Pelas mãos do filólogo e professor universitário João de Castro Assis passam páginas de um autor seiscentista totalmente desconhecido de nós, de seu nome Anastácio Paim de Noronha, autor da monografia que o académico vem estudando, anotando e convertendo em grafia atual.

O nome do livro, impresso em Madrid, no ano da providência de MDCXXVIII, leva por título o seguinte dizer: RELAÇÃO DOS ESTRANHOS CASOS, OCORRIDOS NAS PROVÍNCIAS DO MINHO, TRÁS-OS MONTES E BEIRAS, NOS TEMPOS DE AGORA DE ANTANHO, MANDADOS JUNTAR PELOS ILUSTRÍSSIMOS, NOBILÍSSIMOS, CONDES DO VIMIOSO, DOM LUÍS DE PORTUGAL E DOM AFONSO DE PORTUGAL, SEU FILHO.

É um cartapácio imenso, repleto de humor e de fantasia, plausivelmente decalcados do JARDÍN DE FLORES CURIOSAS do leonês Antonio de Torquemada. Um dos curiosos relatos nele compilados reproduzimo-los nós de seguida:

«Nos começos do governo do rei Dom Manuel, nosso senhor, sucedeu a certo tanoeiro que na comarca de Montes Longos vivia, conhecido tanto pelo muito de abastado que tinha quanto pelo muito de avarento que era, que lhe fossem à fazenda e lhe furtassem umas determinadas moedas de ouro, bons cruzados de lei, que ele tinha bem contadas no interior de uma bolsa de couro, guardada em sítio de sua casa onde ninguém, por mais que se pusesse a argueirar, podia facilmente descobrir.

Logo desconfiou o da tanoaria que lhas surripiara algum dos moços que consigo dividiam o mester e que mantinha de costume mal assalariados. Deram-lhe as horas por dormir o sometimento de lhes armar cilada, a fim de retear o larápio e o surpreender e o entregar à justiça.

O que fez o astuto mesteiral?

Escondeu no chão da oficina, em esconsos que ele bem conhecia, alguns dos solarosos cruzados de ouro que possuía, de modo a que dessem com eles os moços e aquele que acostumado ao mau costume da rapina lhos gualdripasse e ele, como anzol à enguia, o apanhasse no exato ámen-jesus.

Vai daí pôs-se com bons modos a pedir:

– Fulano, traz-me isto de tal parte, sicrano vai-me por aquilo ali, beltrano chega-me a plaina e o formão, fulano passa daí o argolame que quero cintar as ripas e acabar esta pipa…

E iam os serventes muito depressa direitos ao que lhes pedia o mestre. Até que um dos quais muito se espantou em certo lugar da oficina e largou em grandes brados:

– Venha aqui depressa, mestre, que vejo nascer da terra tanto ouro que vosmecê nem com mãos ambas o poderá segurar.

E era em boa verdade grande o prodígio: ajuntavam-se tantas peças naquele bocado, como desse nele a magia e se multiplicassem infinitamente os cruzados sotopostos na terra escura pelo bendito tanoeiro. Mas assim que lhes tocava ele com os dedos trémulos, logo a ilusão se esfumava como quando caminhamos nós pela vereda de um sonho. E assim se passando as coisas foram todos tomados de um grande susto.

Tempos mais tarde, sempre artificioso e não querendo retrautar o que consigo mesmo ajustara, o dito tanoeiro pediu a outro servente que lhe fosse à mesa da cozinha e lhe trouxesse o vinho, a boroa e o tanheiro do toucinho que estavam sobre o bancal, dizendo que era ocasião boa para merendarem todos e que muito convinha a todos saciarem-se do aperto da sede e da fome.

Estranhou o moço da repentina liberalidade do somítico patrão, sem suspeitar que na mesa, muito acercado do pão, estaria à vista desarmada um medalhão de ouro lavrado com sua corrente, o qual valeria uma fortuna das grandes.

Foi o ajudante à cozinha e não tardou a regressar, lívido como cal, e querendo falar não podia senão gaguejar, dizendo ter visto na dita cozinha bancos a movimentarem-se sozinhos e dois presuntos graúdos mexerem-se no ar, sem que humano braço ou boca de alimária lhes pegasse.

– Zombas comigo, trapaceiro maldito!

– Pois se o mestre não acredita, vá e veja com os seus próprios olhos!

Foi o tanoeiro ver, levando à retaguarda, pelo sim pelo não, e com súbito receio, a mesurada dos serventes e a findar a comitiva uma serviçal que ali viera por fora, a mando da patroa, buscar uma metade de meia canada de vinho para a ceia.

Não se viu coisa de incomum natureza, a não ser que o pesado medalhão de ouro havia sumido de seu poiso anterior, não se divisando a que nova paragem fora ir ter.

Foi o inocente mancebo entregue ao corregedor, que no entanto por meio nenhum pôde fazê-lo confessar, nem de modo algum deu com o ouro roubado.

– Pagarás pela grande avania que fazes a teu mestre.

– Senhor corregedor, grande diabo mora naquela casa, que ouro aparece do chão e ouro no chão desaparece…

E o moço contou ao atónito corregedor tudo o que sabia e se passava naquela dita casa. Mandou o corregedor um oficial de justiça confirmar da boca dos outros moços o que havia de se confirmar, e confirmou-o. E da boca do mestre tanoeiro escutou o corregedor em pessoa que eram liornas tudo quanto diziam os trapaceiros ajudantes, acrescentando que o seu ouro, pratarias e fazenda lhos roubavam de amiúde em sua casa, e que aquilo seria decerto manha concertada entre eles.

Não tinha o tanoeiro terminadas estas palavras, quando para se limpar do abundante suor que lhe corria da tez tirou da algibeira o lenço da mão e passando-o nas faces logo se descobriram, mal embuçadas no pano grosso, rebrilhando, as fartas correntes do medalhão extraviado.

Zurziu o corregedor o atarantado tanoeiro com ditos ásperos, atribuindo à sua maldade e supina avareza a invenção de todos os furtos de que se lastimava e ameaçando com termos furibundos mandar açoitá-lo publicamente, se continuasse a proferir tais e tão graves doestos, para melhor exemplo dar aos argentários e difamadores.

Correu depois a soada espantosa de que naquela casa, fosse na oficina, fosse nos quartos, nas despensas, nos desvãos, nas escadas de pedra, à luz do dia ou a horas mortas, viam ser arrastada toda a sorte de objetos, móveis e alfaias, levados a direito pelo chão, como investidas de um touro, ou cabriolando pelo ar, como volteaduras de uma mosca. Dizia quem isto o pôde saber que rolavam pelos tabuados incontáveis moedas flamejantes, acordando quem dormia ou atraindo mais e mais a sandice do tanoeiro, pois que as buscava apanhar e logo elas lhe ardiam entre os dedos como pequenos tições saídos dalguma forja infernal.

E por causa destas coisas chamaram um cura, o qual lhes bateu à porta e inteirado de tudo quanto se disse reconheceu, persignando-se com muitas mesuras e solenidade, que aquilo era obra por certo de uns trasgos e fez o que tinha de ser feito, esconjurando-os. A partir de então, cessaram as trebelhadas manias de que se dá notícia aqui, livrando-se a casa das almas más que nela habitavam e emendando-se aquele dito mestre tanoeiro de seu vício nefasto.»

Espera-se para o ano que vem a republicação do dito livro, com a chancela de uma das escassas editoras que por cá não esqueceram ainda o que sejam bons livros, i.e., dos que devam durar uma mão cheia de séculos, sem escaparate, crítica literária ou prefácio do eminentíssimo escritor – minuscófilo – vhm.

O DESERTO É UM BOM LUGAR

Dunas, deserto, Marrocos, areia vermelha
Fotografia de Jörg Peter

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O beduíno Nasser Yubanim atravessa uma vez mais aquilo a que chamam erg, dunas avermelhadas e escaldantes, paredes duras de areia cantante e perfumada, em cujo dorso o vento se contorce como uma serpente. Custa-lhe imaginar que possa existir no mundo outra paisagem tão bela e tão próxima de Deus, exceto nos oásis à noite, quando o som da água e as estrelas por cima da copa das palmeiras se entendem, uma com as outras, como as palavras meditadas no Corão.

Disseram-lhe uma vez que existem tantas estrelas como grãos de areia na Terra. Duvida que possa haver no universo o que quer que seja em número maior do que estes minúsculos pedaços de rocha erodida. Leva os pés cansados e ardentes. A cáfila segue-o atrás de si como segue ele o seu destino: de uma casbá para outra casbá, adiante, sem perguntas.

Também lhe dizem que noutras paragens do mundo há gente ociosa, gente que descansa ao sol, que brinca na água, que se diverte com a fútil alegria da riqueza e do poder. É algo em que dificilmente pode crer.

Na sua cabeça sobra apenas lugar para o coração e no coração manda somente a sua cabeça limpa e sincrética: nascemos para uma jornada de transformação e transformamo-nos caminhando em direção a Deus. O deserto é uma provação, mas é um bom sítio para se conquistar a simpatia e o respeito de Alá. O beduíno Nasser Yubanim não dá ouvidos a quem lhe assegura que há lugares onde caberiam cem mil oásis juntos. Para que quereria Deus esbanjar o Paraíso?

Não, este é o lugar perfeito para se ser perfeito. Por isso, as sandálias exasperam-me, a sede agasta-me, o ronco insano destas paredes movediças atormenta-me. Os escorpiões e criaturas rastejantes afugentam-me, o sol e o vento mordem-me e açoitam-me, mas estou na direção certa. Nada pode existir mais belo e mais nobre do que caminhar assim, sem despojos, nem ilusões.

É um homem simples, sem dúvida. E como ser-se na verdade de outro modo? Que adianta dissipar o tempo, adiando-o?

MILAGRES DE NATAL

Homem Velho
Fotografia de Pete Linforth

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para a Elsa, para a Marta, para a Catarina

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Meter lenha na fornalha era, em todo o caso, o melhor que tinha a fazer. Enquanto os filhos discutiam, o ancião enfiava gravetos e cavacos pela portinhola do fogão e dava um jeito às costas para que quando o calorzinho as encontrasse as pudesse aquecer com outro cuidado.

Mas o que discutiam os filhos?

Justamente o que fazer consigo. E não era fácil. Viviam todos em lugares muito separados entre si, cada qual com a sua ranchada de miúdos, cada um a contas com a vidinha respetiva. E deve fazer-se bem as contas, oh se se deve! Falecida e enterrada a mãe, estando todos ali reunidos, a oportunidade era de ouro.

Quem tomaria conta do velho?

Nenhum dos oito rapazes, nem sequer a rapariga mostrou interesse, paciência ou disponibilidade para ficar com ele ou levá-lo para longe.

O velhote escutava absorto. Era mister que se começasse com os preparativos da Quadra: a casa precisava de ser limpa; ele mesmo iria com a tesoura da poda cortar os ramos de gilbardeira e fazer com eles a vassoura e varrer com ela a fuligem incrustada nas telhas. Era tempo de lavar com sabão as panelas de ferro, tirar do sal as peças de carne, tirar do serrim as uvas guardadas em setembro, tirar das arcas o linho e as pratas. Era mister que se preparasse o presépio e os quartos e essa comprida mesa onde se haveria de sentar a multidão de filhos, noras e netos que haveriam de partilhar a noite de Consoada.

O frio punha-lhe os ouvidos em riste: a gritaria batia-lhe nos tímpanos como lâminas de gelo. Porque discutiam aqueles rapazes? Aquela moça tão boa, tão igual à mãe, tão parecida com essa mulher que em quase três das quatro partes do século foi a sua?

Em todo o caso, o melhor era manter vivo o lume, esquecer as misérias do mundo, trazer de volta os gestos de antigamente – aqueles de que se alimenta genuinamente um homem. As costas e os pés esquentados são um consolo para o qual não existem palavras…

Sim, quem tomaria conta do velho?

Verdade seja dita: já poucos hoje acreditam em milagres de Natal.

A IGREJINHA

Pete Linforth - abbey
Fotografia de Pete Linforth

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Em Albitreccia, a meio do vilarejo, numa colina sobre o bosque, ergue-se como uma ilhota de pedra a pequena igreja medieval. Ou o que dela sobrou.

Os séculos despiram-na impiedosamente. Primeiro dos sinos e do ouro litúrgico, depois das imagens ricamente esculpidas em cedro e dos frescos, por fim dos vitrais e dos telhados, das portas e da pia batismal. Os lavradores chegaram a usá-la para guardarem as reses. Agora nem os vadios ali querem entrar. É só um amontoado de granito e tábuas mal pregadas, dispersas pelo chão barrento.

Um professor estrangeiro afirma que na pedra do tímpano, em letras quase apagadas, se lê que foi consagrada no ano de 701 a Santa Luzia de Siracusa. Com efeito, muitos são aqueles que, saindo ou entrando no bosque nos últimos dias de outono ali veem luzes misteriosas. Falam em centenas de velas acesas, ardendo no meio da solidão.

Os céticos admitem que a lua cheia, reluzindo em folhas húmidas da carvalho, criam esse revérbero magnífico. Especialmente quando as neblinas não ocultam inteiramente a paisagem e ampliam o efeito ótico.

Muitos são aqueles que creem que os mortos ali rezam de novo, uma vez por ano, não sabem se sabe se pela sua, se pela nossa salvação.

AS ROMÃZEIRAS

cocoparisienne - monk
Fotografia de Coco Parisienne

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No centro da cidade, no lugar que tinha sido uma floresta de amieiros no tempo dos celtas, fizeram os romanos nascer um grande jardim de figueiras. Acredita-se que em homenagem à deusa Pomona, ou como lembrança da Figueira Ruminal do Capitólio. Outros, porém (versão mais crível), asseguram que os soldados de Sulpício Galba plantaram ali um bosque de carvalhos-brancos, evocativo daquele outro bosque em que moravam as dríades querquetulanas, em Roma, junto à muralha de Sérvio.

Esse carvalhal sagrado existia ainda no tempo do visigodos, porque (um cronista contemporâneo de Santo Isidoro declara-o) “com madeira de um roble dos antigos pagãos construíram a Hermenegildo o féretro, encimado por uma grande cruz esculpida, por amor da qual mandou Leovigildo, seu pai, cortar-lhe a cabeça. E a inumeráveis outros godos mártires deram a morte e os enterraram com lenhos trazidos da mesma mata”.

Uma centúria se passou, ou pouco mais. Os omíadas de Tárique subiram de África, passaram a fio de espada o rei Rodrigo, trucidaram sem piedade os nazarenos que lhes faziam frente, pilharam e incendiaram vilarelhos, escravizaram servos e senhores das cidades da sua conquista, e aos poucos, num vagar de séculos, levantaram do solo carbonizado e ensanguentado planícies magníficas de amendoeiras.

Com elas branquejou a paisagem muito tempo, até Alfonso, filho de Urraca, imperador da Hispânia, ordenar que fossem arrancadas todas essas árvores e, para melhor purgação dos vestígios islâmicos, abrissem no lugar onde elas frutificavam os caboucos de um mosteiro cisterciense. Quis o destino que os monges de S. Roberto cultivassem nos seus vergéis e bosquedos toda a espécie de plantas e ervas e árvores. Um deles, Frei Juan de Zamora, lendo muitas vezes cartapácios de antanho com cronicões e memórias preciosas, meditando amiúde sobre os desígnios do Senhor, tão esquecido da barbárie humana, sugeriu que no centro do claustro, a ladear o belo repuxo de águas cristalinas, plantassem cinco romãzeiras.

Assim fizeram e ainda hoje, no lugar que foi de amieiros, figueiras, carvalhos e amendoeiras, vermelheja, tantas quantos os dedos de uma mão, as cinco árvores do romeiral. Uns afirmam que em louvor das cinco chagas de Cristo. Outros, porém (tese erudita, menos defensável), asseveram que para homenagear todo o sangue inocente, derramado em dois milénios de terrível predação.