UM EXPLORADOR

Pierre Pellegrini
Fotografia de Pierre Pellegrini

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Durante a noite Emerenciano Castanheira voava. O corpo descobria-se livre e leve, abria os braços e punha-se a subir e a esvoaçar à volta da casa, cada vez mais depressa, cada vez mais alto, cada vez mais amplamente, em círculos, como um pássaro enlouquecido.

Era um sonho recorrente. Emerenciano via-se a encostar a escada de eucalipto à parede nascente, junto ao limoeiro, a trepar por ela até ao telhado, como se fosse limpar uma chaminé, e depois, empoleirado sobre uma das empenas, contemplado o casario ao redor, acontecia exatamente o que se disse atrás: Emerenciano batia os braços e voava.

A vertigem da ascensão compensava-a a vista: tudo tão pormenorizado, tão realista, tão coerente que não podia ser senão verdade: o defeito das telhas, a casota do cão lá em baixo, e o animalzinho com as patas de fora, os grandes postes de eletricidade com ninhos de cegonhas, a torre piramidal da igreja que afinal se parecia um quadrado cortado por um enorme X entre os ângulos, a copa dos grandes choupos e as veias averdiscadas dos arroios pelo meio da terra ocre, tudo coerente, realista, pormenorizado, até chegar ao branco das nuvens e aí se perder de susto, na confusão láctea do nevoeiro.

Quando despertava, Emerenciano Castanheiro sentia-se muito bem-disposto. Orgulhoso até. No final destes seus voos oníricos, a vida parecia-lhe outra, mais divina, mais sabedora de coisas indiscretas (nos sonhos, a sua visão de ave atingia amores clandestinos de mulheres casadas com moços da tropa, negócios proibidos de candongueiros de café e cigarros, roubos nos alambiques e nos lagares de azeite, até as lágrimas que as mulheres camponesas engoliam, quando triplamente vergadas pela condição de género, do trabalho, de mães pobres). Do alto apanha-se tudo e os braços valentes e os olhos acutilantes de que Emerenciano Castanheira dispunha eram armas nada despiciendas. Numa palavra, sentia-se um explorador.

Admitamos que um felizardo, também. Quantos de nós não gostaríamos de, no despudor dos sonhos, ampliada pela lente destes voos, termos da vida e da vizinhança uma visão tão certa?

Felizmente, Emerenciano era ajuizado e discretíssimo. As palavras precisam de um travão e ele sabia-o. O que à sua cabeça vinha na sua cabeça ficava. Era melhor assim. Muito melhor!

Quantos de nós não gostaríamos de um tal poder?

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O DIA EM QUE ME ENSINASTE A VOAR

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

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Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu, avô. A memória das coisas e a memória dos sonhos às vezes flutuam tão perto que deixamos de as distinguir. Queria ser igualzinho a ti. Usar uma bengala, como a tua bengala. Segurar na cabeça uma boina de feltro escuro, como a tua boina de feltro. Sentir cruzados nas costas uns suspensórios como os teus. Ser igualzinho a ti. Rir como tu rias, caminhar devagar como tu caminhavas, puxar de uma escada e subir a uma macieira, como tu fazias. Ir à algibeira e puxar de uma navalha de osso, como a tua navalha; cortar a maçã em pedaços e comê-la com os olhos postos no infinito, como tu fazias com os olhos, quando comias uma maçã e te sentavas na soleira da porta, esperando que o sol acabasse a sua volta e te viesse sorrateiramente a noite. Foi há tanto tempo, avô, que principio a desconfiar da minha cabeça e, sobretudo, do meu coração traiçoeiro… 

Lá chegou o dia em que te confessei esse devaneio. Tinha tantos… Tu sorrias. Tão devagar que o sorriso, como a luz da tarde, parecia de gesso e sem fim. Tu sorrias, como se de lá de muito longe (da tua própria infância), te acenasse um miúdo igual a mim… Como se lá do arrebol doutro século, amparado por um velho igual a ti, te acenasse a vaga recordação de um sonho igual ao meu sonho. Tinha tantos, avô… Escutavas sempre com ternura infinita, mesmo quando te contei esse meu sonho de querer ter umas asas e voar. Mesmo se me ralhasses por trepar aos bardos e às arvores e aos telhados. Porque eu queria voar. Porque eu queria parecer-me com os pássaros e estudar o azul. Porque eu queria conhecer as coisas como as conhece o vento quando ergue em torvelinho o pó e nos tomba o cavalo de pau… E tu sorrias, sorrias com esse sorriso belo de quem compreende os sonhos sem os manchar com a ironia ou o sarcasmo. Tu sorrias como se sorri ao sol, quando as tardes demoram e nos espera uma noite em solidão. E isso é o ofício sagrado dos avós. E essas são as tardes mais infinitas que nos ficam, mesmo quando a memória começa a duvidar de si mesma e as horas se parecem mais curtas do que as horas de antigamente e o sorriso mais doente e a soleira mais estreita e os sonhos mais impossíveis… 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Queria ser igualzinho a ti. Vestir como tu camisas de flanela. Fumar como tu maços de Definitivos. Usar como tu, à cintura, uma tesoura da poda e ir indo pelo meio dos campos aparando e limpando os ramos, contemplando o milagre das estações sucessivas, esperando que o tempo cumprisse a sua palavra e te levasse em paz… Igualzinho a ti. 

‒ E se te fizesse um papagaio de papel para aprenderes a subir ao céu? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E seguir, confiar, agasalhar-me na sabedoria dos teus gestos. Ver-te juntar numa mesa cartão e cola, sisal e paus descamados de giesta. Ver-te com decisão erguer um trapézio, enquanto me bebias o espanto e semeavas em mim esse amor que abre brechas nas paredes densas da morte. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Foi há tanto tempo, avô! Custa acreditar há quanto já. Ainda os outeiros tinham a magia dos outeiros. Ainda os dentes de leão vogavam sem medo, roçagando-se suavemente na nossa boca. Ainda o azul que os pássaros bebem se podia olhar no espelho límpido dos charcos escavados pelas chuvas de março. Ainda a terra era livre e perfumada. Ainda os dias eram perfeitos na sua dádiva de poesia. 

‒ E se segurasses neste novelo para eu te explicar como se faz? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E és tu, velho trôpego, és tu quem me vem à cabeça, tu, devorado pela artrose, consumido pelas dores (quantas vezes me comovo ao lembrá-lo), és tu quem eu vejo ainda correndo, mancando, gemendo sobre as ervas, falseando ridiculamente os passos, para que esse mágico losango de cartão pudesse ascender ao lugar dos sonhos, para que eu pudesse aprender sozinho a arte dolorosa de acreditar… 

Não sei por que me recordo agora de tudo isto. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Nem porque se tornou cega a luz azul de março. Nem porque se tornou seca a cratera dos charcos. Nem porque se tornaram tão pesadas as asas do amor que me ensinaste. Nem porque deixei de saber erguer ao alto, como um pedaço de mim, como uma extensão de mim, esse trapézio de cartão, preso a um novelo de sisal. Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu. Perdoa, avô! 

‒ E se hoje fizéssemos um corrupio? 

‒ Eia, isso queria eu! 

Nem porque não sei sair correndo como tu, a mancar, suportando as dores, para que as pás coloridas de uma pequena ventoinha pudessem, como os pequenos pardais distraídos da primavera, que depois de curados tu soltavas, acreditar e voar. Porque isso era o meu sonho. E não sei (o tempo tem destas coisas) como fui capaz de o esquecer…