O último dia é sempre um primeiro dia

Clemens Geiger
Fotografia de Clemens Geiger

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A avenida cheia de gente, gente cheia de pressa, faz-me esquecer tudo. Levo encontrões, pisam-me os pés, olham-me como a um animal ferido (com o seu rasto de morte, largo como um cometa). Mas não me importo. Prefiro assim. Os rostos desfilam vertiginosos, belos, muito belos, horríveis, disformes. Não consigo lembrar-me de nenhum. Só da quantidade. Tantos rostos, tantas histórias, tantos eus engastados uns nos outros, tantos futuros incertos, possivelmente brilhantes, provavelmente encurtados, tantos passados cheios de mossas, tantas cicatrizes escondidas, disfarçadas pelos pírcingues e tatuagens. Da quantidade, sim.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que não fazemos diferença nenhuma, absolutamente nenhuma, num mundo repleto de drama, num mundo incapaz de aceitar o drama, num mundo cheio de gente com dramas e absolutamente incapaz de lidar com o drama. Não fazemos falta nenhuma, porra, nenhuma.

O que me fica na memória é a gente à margem, a gente assim como eu, a alimentar os pombos, a gente excluída do caudal, a gente velha, a gente que cisma cada movimento do corpo e o faz rodar devagar, a gente que tem a barba por fazer, a gente que veste casacões de fazenda e rugas descomunais, rugas pronunciadas e verdadeiras como grand canyons, a gente atrelada a cachorros feios e tão sujos que são mesmo uma fotografia, a gente que cheira a óleo e urina e suor e outras secreções talvez secretas.

A avenida é interminável. Todos cabem nalgum lugar. E eu, que me entretenho a não pensar em nada, penso como é engraçado isto de ocuparmos algum lugar, como algures, suspensa num andaime sinistro, há gente-gárgula, como além, no bojo prateado de um boeing, viaja quem sabe o próximo grito da moda, como ali, em frente aos espelhos descomunais das lojas chiques aporta a outra gente, a gente dominadora, a gente a quem se mostra a cabeça subitamente desalojada de chapéus e uma pequena vénia respeitosa. A avenida é interminável. Os vermes têm de esperar a sua vez. Só à noite podem mostrar-se. A noite pertence-lhes. À hora certa os rostos escoarão, trocarão de lugar. Quando a mais ninguém puder pertencer, a avenida há de acoitar estes rostos que olham o vazio e dão de comer aos pássaros. O espaço parecerá maior, desolador, gigantesco. A verdadeira solidão será, portanto, essa.

Mas, neste momento, sou apenas um corpo em movimento, atropelado, empurrado, levado na corrente. Os pés e os olhos esforçam-se por coordenar uma narrativa. A mole de rostos macera, deixa a sua impressão inumana, o seu toque desleal, voyeurista, como se todos fossem um só e um só fosse apenas um sonho. Não consigo lembrar-me de nenhum. Nem sequer da beleza ou da profunda fealdade de um olhar. Aqui sou maquinal e doente como todas as máquinas. Talvez tenha vindo por essa inconfessada razão.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que nada em nós é melhor, ou mais legítimo, ou mais perfeito do que nos outros, nestes todos que caminham, reptam, voam diante os nossos olhos. Não fazemos falta nenhuma, nenhuma, porra. E essa é ainda uma outra solidão, uma lídima solidão sem nome, que nos obriga a viver, a pertencer aos gestos, a ser, a durar, a existir para lá de todos os lapsos de memória e amor.

A avenida é interminável. Não sei há quanto tempo me não dou conta de caminhar. Caminho. Limito-me a não pensar. Em breve, terei todo um novo texto pronto. Não sei qual. Definitivamente, não sei.

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Diga-me você, meu caro!

Andre du Plessis
Fotografia de Andre du Plessis

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Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, eu desempregado, tu no lar de idosos. Aquela frase soou. Certeira e inesquecível como uma reprimenda.

‒ A ruína é sempre mais feia do que bonita, não lhe parece?

Eu desempregado, tu segurando uma bengala, de pé, com olhos trocistas. Em volta um armazém de corpos tremelicantes e babosos, corpos esquecidos retomando às vezes numa grita desenfreada o caminho das dores e da frustração.

‒ Que lhe parece esta velharia toda?

Eu desempregado, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Eu sem voz, aquecendo as mãos desamparadas de um avô a quem o Alzheimer veio furtar os últimos farrapos de lucidez. Eu acabrunhado, aturdido, com a alma pesando-me na alma, como um cacho de melancolia. Eu atrozmente perseguido pelo inverno de uma ponta à outra ponta das paredes. Eu desejoso de me tornar numa centopeia e de poder esgueirar-me por uma fresta. Eu desempregado, em fuga. E tu quieto, vertical como uma âncora suspensa. Em proa. Agudo como um discurso da consciência.

‒ Já viu bem a miséria que nos espera?

Foi por esta altura que nos conhecemos. Que cruzámos palavras. Que estreitámos a distância. Que aprendemos o preço da amizade. Essa que nos obriga a mentir e a falar verdade e a mentir como só na verdade se mente.

‒ Nem tudo na velhice é forçosamente mau, não acha?

Tu muito sereno. Tu muito contido. Tu muito senhor das palavras que, ditas no momento exato, ficam gravadas para sempre. Tu com um sorriso enigmático, quase de mofa, quase de simpatia, quase feliz, quase pungente.

‒ O senhor parece tão bem disposto!

E as velhotas guinchando, chorando, batendo palmas num estertor de loucura. E os velhos, com os coturnos calçados, com o fio de baba, com a lágrima ao canto do olho, enquanto as funcionárias, sempre com voz estridente, sempre fingindo euforia, vinham meter-lhes a sopa na boca, rapar os iogurtes, acomodar-lhes os travesseiros.

‒ Tem aqui tantos amigos!

E tu sem resposta. Tu mordendo o lábio, cheio de intenção. As sobrancelhas franzindo, aconchegando um pensamento satírico, com vontade de me mandar à merda. Tu incapaz de acreditar na piedade voluntariosa. Tu sereno e belo como um mestre grego. Aproximando-te. Mastigando a verdade. Pondo-me a mão no ombro.

‒ Um dia saberá distinguir tão bem a vida da morte, que lhe parecerá insuportável o tempo perdido…

‒ Como assim?

‒  Lá chegará! Lá chegará…

E eu desempregado, à procura de um norte. E tu desprotegido, à espera do fim. Um de cada lado, agarrados à mesma visão, como as duas serpentes entrelaçadas de um caduceu.

‒ Vejo que é bom rapaz. Pena é não ser lá muito esperto…

Foi, sem dúvida, por esta altura. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, embaciando-as, fechando-as numa estranha obscuridade de cinzas e pó. Eu asfixiando, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Tu aos ziguezagues, atravessando um corredor, saindo para o quarto.

‒ Ou talvez seja mais esperto do que parece… E me julgue tolo!

Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro cobrindo os ossos. As horas caindo na penumbra depressa de mais. A noite caminhando como uma sombra gigante sobre os olhos. Foi assim que nos tornámos íntimos. Cheios de retórica. Irmanados pelo mesmo parágrafo de tristeza e de amor. E nunca pude responder-te. Nem agora que morreste e te levam baloiçando, fechado num enigma de mogno, com a cruz ao cimo, feia e sinistra, brilhando, prometendo a eternidade…

‒ Não é feliz aqui?

Eu desempregado. Tu calado, voltando-me uma última vez o rosto, com aquela última frase na ponta da língua, como a despedir, como a dizer, como a perguntar.

‒ Diga-me você, meu caro: o que é a felicidade?

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Pessimismos e happy ends: um guião, o filme

Sven Fennema
Fotografia de Sven Fennema

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Acordei esta manhã encavalitado num ponto de interrogação: porque somos todos tão pessimistas? Todos, sim! Ou quase todos! A esmagadora maioria dos espécimes da espécie! Pessimistas, avessos à ideia de sorte, descrentes de que o happy-end ainda se vende nos mercearias antigas e nas lojas gourmet, aziagos, autorrebaixadores, soturnos. Porquê?

Eu sou um dos tais.

A vida deu-me sempre com o rolo da massa e é caso para dizer que me habituei a caçar o meu quinhão de felicidade e a fugir através de buracos impossíveis na parede. Sou dos que acham que isto não vai passar, que isso não tem remédio, que aquilo não se resolve num passe de mágica. Sou dos que pedem por favor que não me massajem as costas com meia dúzia de palmadas amigas e o ego com duas frases exclamativas. Sou dos que pensam que a minha equipa ainda vai sofrer um golo nos cinco minutos derradeiros do jogo, que desaba num desânimo invencível se ela tem só meia hora para empatar a porcaria do jogo. É-me inato descrer na possibilidade de um golo salvador a meia hora do fim.

Eu sou dos tais, dos derrotistas, desse partido principal de homens e mulheres calejados.

E, contudo, acordei esta manhã a meditar em factos inegáveis e objetivos históricos. Escapei com menos de dois anos aos ataques da bronquite e da asma. Escapei a um atropelamento aos doze. Mais tarde a um aparatoso acidente de viação. Escapei a uma peritonite apendicular aos vinte e um. Escapei, aliás, a quase todas as ites que vêm certificadas na legislação (otites, gengivites, gastroenterites, a uma parotidite infeciosa). Escapei intacto a todas as turmas de todas as escolas por onde passei, como professor, formador, estagiário ou simples assessor pedagógico (muitos afundaram nestas selvas não cartografadas). Escapei a manobras partidárias e a habilidades políticas. Escapei aos desgostos, às perdas, às renúncias e aos vexames. Escapei até ao tribunal terrível do espelho e aos castigos da consciência, algures no alçapão da alma (ou do córtex cerebral). Ainda não morri neste país demente e corrupto!

Pessimista até dizer chega.

E, porém, esta manhã acordei rodeado por um silêncio de pássaros cantando (peço encarecidamente que saiam e batam a porta, se se põem para aí, do outro lado da parede branca, a assinalar-me paradoxos, oxímoros e nonsenses). Acordei desempregado, mas saudável. Abatido pela fadiga, mas depois de uma noite intensa de escrita. Triste, mas feliz. Porque acordei. Porque aqui estou, diante vós, confessando-me pessimista em greve, derrotista em crise, se calhar (afinal) talvez um pouco, um pouco mais, de otimista, vencedor até aqui nos palcos em que a vida e a morte debateram posições e se convenceram de que o seu jogo de xadrez deve continuar.

Acordei agarrado à bengala de uma profunda meditação.

Porque nos acontece (não raro) desatarmos a questionar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo. Mais ou menos como quando decidimos arrumar umas coisas na garagem e damos por nós a remodelar a casa, a pintar as paredes, a trocar de carro. E eu acordei assim, triste, feliz, falando em voz alta para mim mesmo em silêncio, perguntando, respondendo, questionando.

Que raio! Porque não levantar o traseiro e fazer alguma das coisas que sempre quisemos ter feito? Porque não meter na cabeça de uma vez por todas que somos tipos fantásticos, com humor, charme, inteligência? Porque arrastar, como uma sombra, como o peso de uma maldição, a crença de que acabaremos mal, enxotados, sarnentos, lambendo as feridas? Porque não preferir a luz limpa de uma narrativa boa, com final memorável? Se os amigos não faltam? Se a cabeça, mesmo muitas vezes no meio das nuvens, continua acesa e a fervilhar de ideias? Se o coração cicatrizou de todas as punhaladas e ainda bate?

Talvez tenhamos nascidos gauches como Carlos Drummond de Andrade, mas não nascemos avessos à simpatia, nem à confiança, nem à certeza de que quem iniciou este filme (com um argumento de tal qualidade) o pode terminar melhor ainda. Deus, os deuses, as leis da Física Quântica, todas as leis do universo, parecem ter sabido sempre acomodar as coisas. Admitamo-lo: a própria existência é um acidente feliz.

Bebo, por isso, o meu café matinal com aquela sensação de que algo em mim aconteceu, de que qualquer coisa transmudou, como quando um grânulo de areia sai finalmente de dentro da peúga atormentada. De resto, o mais extraordinário dos epílogos, como num filme de mestre, é aquele sobre o qual nada sabemos, de que pouco suspeitamos, em que nos resta esperar. E este, o da vida, não duvidemos, é obra para limpar os óscares todos!

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