Aral

Moinaque, Caracapaquistão, Usbequistão, barcos, Mar de Aral
Fotografia de WaSZI

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É indescritível a sensação de atordoamento que experimenta este viajante nesta parte do mundo, onde se presenciam factos como os que a seguir se enumeram.

Estamos em Moinaque, no noroeste do Usbequistão. O viajante sobe a uma plataforma de madeira, que facilmente se confunde com o passadiço de um porto. Os barcos lá estão, ali, acolá, mais além, tombando uns a estibordo, outros para bombordo, completamente enferrujados, esquecidos, agonizando sobre o leito arenoso do que foi até há escassas décadas uma das margens do mar de Aral. O viajante recebem-no num tugúrio nascido, algures aí, no meio do antigo perímetro lacustre.

Rustam Kerinov conduz um pequeno rebanho de cabras por entre as quilhas e as âncoras oxidadas. Leva ao ouvido um rádio de pilhas, na boca um cigarro quase completamente encarquilhado, nos olhos a devastação enorme de um ofendido.

«Aqui agora estão a plantar arbustos» explica Serik Tolvashev. «É difícil suportar as tempestades de sal».

«Arbustos?»

«Sim, fileiras de saxaul. Plantam-nos a intervalos de um metro. Para que cresçam e limpem o solo».

O viajante mal respira. A poeira embrulha a cidade-fantasma e cai como uma praga bíblica sobre o pelo dos animais. Chicoteia o casco doloroso das embarcações. Em boa verdade, nada segura o vento, nada se opõe aos minúsculos grãos de sal e de areia amalgamados e em movimento.

«De que se alimentam vocês agora» pergunta o estrangeiro.

Ao longe, Rustam Kerinov já não se vê. Do aparelhito anacrónico chegam, a custo, as notas de Boys don’t cry. Será uma alucinação pensa o viajante. Será um sonho, aqui coisa nenhuma é uma certeza: será uma daquelas circunstâncias absurdas de coisas que se misturam no tempo errado no lugar errado.

«Do pouco que nos sobrou da água, do nada que nos ficou de terra fértil, comemos o que calha» diz Serik Tolvashev.

Neste pedaço da geografia usbeque (mais correto seria escrever caracalpaque), as temperaturas descolam no mês de julho. O anfitrião serve um chá na sua cabana improvisada. Na única estante que nela se sustém, o viajante reconhece um velho exemplar do Corão. Fora destas paredes frágeis zune a força de um demónio, de um desastre, de um male sem nome. Mas a fé, a fé em Deus é maior do que o vento monstruoso capaz de embalsamar os vivos. A fé habita cada pedaço do mundo e é capaz de regenerá-lo.

O viajante ao poisar as mãos no chão sente um estremecimento. Vinte, talvez trinta anos atrás, no preciso ponto onde está o tapete estendido era o fundo de um lago. Sobre a sua do viajante nadariam carpas e lúcios, nadariam sargos e rutilos, nadariam bagres e solhas, nadaria pela certa algum esturjão formidável.

O estrangeiro pensa no pescador Rustam Kerinov, no pescador Orazbay Qobil, no pescador Marat Allanazarov, no vendedor de peixe Almas Dosivov, no encarregado da fábrica de conservas Madi Dyussenbayev, em todos os que nesta jornada conheceu já e se lamentam do mar desviado, roubado, evaporado – do mar de que sobrou o sal maldito e as ossadas dos barcos, do mar transformado em pó.

Nesta banda do que foi o grande azul de Aral, a finitude é imensa. Existe nela algo de nostálgico e de belo, como sempre sucede com a decadência no mundo. Mas suplanta-a a dimensão do sofrimento. Milhões de litros de água transviados para alimentar a ganância e o erro. Ao viajante chega-lhe o pensamento de que o sofrimento é a maior de todas as obras de que o ser humano foi capaz até hoje.

Serik Tolvashev conta como aqui perdeu o pai num naufrágio no início dos anos sessenta, era ele ainda uma criança, viva ainda a água que o matou.

Ao viajante custa-lhe acreditar. Mas aconteceu, numa rara tempestade vinda do Cazaquistão, em meados de fevereiro.

«Morreu o meu pai. O tio Dmitry escapou por um triz. Foi um infortúnio.»

Ironias ferozes atravessam-se-nos ao caminho, a sensação é indescritível. O viajante, por exemplo, falhou um concerto dos The Cure em Glastonbury há um par de meses, mas escutou-os há instantes, debaixo de uma súbita tormenta de pó. O viajante vê uma doca à entrada do deserto e escuta o estertor de velhos barcos gementes que afundam na terra enxuta. O mesmo viajante bebe – para se hidratar numa tarde escaldante de verão –, um chá a ferver, depurado pela temperatura elevada das impurezas da água péssima de Moinaque. O viajante – ironia suprema – é informado de que, no sítio exato onde Serik Tolvashev lhe serviu a bebida, sessenta anos andados às arrecuas, um naufrágio vitimou o seu o pai.

Quando regressar a casa, este estrangeiro talvez omita, por prudência, alguns pormenores. A vida, na sua pródiga maquinação, sempre pareceu uma mentira. E quem levará a sério, admitamos, a narrativa de um viajante mentiroso?

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Logótipo Oficial 2024

Just like Heaven

Fotografia de João Almeida
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Era como se em vez de pés e mãos o seu corpo deslocasse trajetórias invisíveis de ar. Mary viajava a partir do mesmo parque de estacionamento, ao longo das mesmas estradas, para as mesmas ruelas com aquela expressão que o tempo costuma ter no início de março, leve, frágil, veemente, adocicada pelo sol imenso, prometedor, talvez não duradouro, sem saber mais do que o agora, sem pedir mais do que viver assim.

Daí a um par de horas voltaria a vê-lo. E ele voltaria a segurá-la nos braços, voltaria a beijá-la, voltaria a olhá-la nos olhos com ternura desmesurada, voltariam a abraçar-se como se abraçam duas folhas de erva, voltariam a trocar doces palavras também elas sem peso, costurando essa cumplicidade que nos prende a uma razão maior de ser.

Na rádio escutava uma daquelas canções pop que preenchiam toda uma época. Achava-lhe piada, tinha ritmo, a letra não era má, a batida oferecia-lhe um pouco mais de amor.

Why are you so far away, she said Why won’t you ever know that I’m in love with you That I’m in love with you
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Em seu redor os prados reverdeciam, prolongavam-se até à linha de mar. Aquela ilha, tantas vezes carcereira, parecia-lhe agora um lugar portentoso: deslumbrava-a a sucessão monótona de campos e cercas, entontecia-a a mistura de perfumes campestres (que intermináveis meses de chuva tinham fabricado) com a brisa oceânica, os penhascos sinistros junto do farol de Skeling Michael produziam nela uma alegria imensa. Era como se o automóvel vogasse sobre nimbos, como se a sua existência simplória de empregada de caixa num qualquer supermercado de província tivesse merecido as honras de uma divindade.

You Soft and only You Lost and lonely
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Mary sentia-se cansada, feliz mas cansada, cansada mas feliz. A música na estação de rádio era vibrante, ela tinha pressa, acelerou. As curvas doíam, seguiam-se-lhe contracurvas perigosas. O sol declinava cada vez mais rápido, deixando no horizonte uma saudade terna, uma poalha luminosa que aqui e ali ofuscavam. Aquele tinha sido um sábado igual a tantos outros, com a diferença de que trabalhara mais horas. Mas valera a pena. Daí a um par de horas voltaria a sentir-se jovem, renascida, parte do mundo vivo e ótimo de que se alimentam as lendas.

Ninguém sabe como se passou. Talvez algures, numa nesga do caminho, o automóvel haja guindado depressa demais, deslizado sobre gravilha, sido encandeado pelo rútilo momentâneo de um raio acabado de desembaraçar-se de uma nuvem.

You Strange as angels Dancing in the deepest oceans Twisting in the water You’re just like a dream You’re just like a dream
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Era como se vogasse sobre nimbos, como se a sua existência pudesse (caprichosa, surpreendente, reconciliada) ter descoberto um modo de permanecer para sempre, como num sonho, sim, como num sonho. Em Cork durante meses não se falou de outra coisa.

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