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Ter tempo ou não ter tempo distingue o modo de vida da maior parte das pessoas e, sobretudo, divide a nossa em duas províncias praticamente incompatíveis, cuja fronteira se situa algures entre o fim da infância e o começo da puberdade, quando nos começamos a separar da elementaridade de levantar, lavar o rosto, vestir e calçar o corpo, beber o leite com café e ir, porta fora, em direção ao futuro.
Costumes como os de apanhar grilos ou malmequeres, admirar o ninho das escrevedeiras (com os seus ovos sarapintados) ou o choro das abecoinhas; costumes como os de saltar muros de pedra, trepar aos carvalhos cheios de luz ou invadir a penumbra cerrada das cisternas; costumes como os de procurar pedaços de telha e restos de madeira para o jogo do galo ou de escolher pacientemente cascas de eucalipto e agulhas de pinheiro para criar hélices e vir a correr da escola (levantando voo), com a mochila aos saltos nas costas (em lugar desses pesados sacos de sabedoria que os miúdos carregam agora); costumes como os de cumprimentar vagarosamente os velhos que encontrávamos e que nos faziam uma vénia; costumes como os de procrastinar a numeração romana e as composições que nos vinham no caderno, como deveres que a professora talvez nem corrigisse na aula seguinte; costumes, enfim, como os de olhar as nuvens e assistir à sua lenta metamorfose eram parte de um respirar magnífico, de cujo fim nem vale a pena falar.
Porque dificilmente se entenderá hoje outro modo de responder ao mundo que não seja o da velocidade, o da imediatez, o da pressa rancorosa com que galgamos etapas e queremos chegar rápida e brutalmente ao destino, a um desfecho, à meta. Vivemos sem tempo e com medo de perder tempo, impacientes para o que se atrasa (um chá demasiado quente, um golo evitado pelo guarda-redes adversário, uma placa de «Volto Já!» na repartição ou na loja aonde nos dirigíramos). A verdade é que construímos com o nosso fio existencial uma rede de elipses, de sínteses devoradoras de informação. Substituímos a memória por projetos, trocamos os rituais diários por rotinas, a alma por ambição. Acordamos com o despertador, engolimos o pequeno-almoço, conduzimos esporeados pelo cronómetro mental, possuímos regras próprias para nos defendermos das regras coletivas (damos o beijo de despedida sem tocarmos verdadeiramente a outra pele, deixamos recados escritos em modo de estenógrafo, gravamos mensagens de voz, preferimos sinais a palavras e palavras a gestos), e quando chegamos sentimo-nos compelidos a ir de novo, a partir noutra direção e depois noutras, numa voragem em que perdemos a noção do nosso próprio caminho e da nossa presença em nós mesmos.
Ter tempo ou não ter tempo é uma questão filosófica. Porque dele depende tudo o que é (ou era) realmente importante na relação humana (da arte ao sagrado, da valorização das grandes causas à família). Ter tempo ou não ter tempo é o mesmo que retirar um sentido ou não retirar nenhum sentido das coisas. A esse respeito, Gilles Lipovetsky observa no seu incontornável A Era do Vazio que «A indiferença pura designa a apoteose do temporário e do sincretismo individualista». Não há maior individualismo do que o de mergulhar na sua própria escuridão.
Contaram-me há dias que uma senhora octogenária foi internada no lar aqui na vila, porque o filho deixou de poder cuidar de si. Ele precisava, naturalmente, do seu emprego e a senhora exigia cuidados específicos, que apenas uma instituição como um lar de idosos podia prestar. Compreende-se tudo isto. A vida comunitária, como a conheci na infância, simplesmente desapareceu. Entretanto, a idosa aguardava todas as manhãs à janela a hora em que o filho deveria passar na sua motorizada a caminho do trabalho para lhe poder acenar. Compreende-se: o lar localiza-se à beira da estrada, com vista ampla. Uma, duas, três, infindáveis semanas se sumiram sem que uma única visita filho tivesse acontecido. Afetadas pela comiseração, as funcionárias do lar contactaram o dito, que lhes respondeu laconicamente com «Tenho uma casa e filhos para manter!»
Ter tempo ou não ter tempo é, portanto, um assunto sério. Na minha antologia pessoal dos melhores poemas lidos, consta um de Herman de Coninck, poeta belga que assina estes versos:
MÃE
O que fazes com o tempo
é o que um velho relógio de pêndulo
faz com ele: bate as doze horas
e leva todo o tempo necessário.
Tu és o relógio: o tempo passa
Mas tu ficas. Esperas.
Esperar é o que acontece a um jardim
sob a neve, a um tronco de árvore
sob o musgo, esperança de melhores tempos
no século XIX,
palavras num poema.
Porque poesia tem a ver com duração
deixar que as coisas ganhem bolor,
deixar que as uvas se transformem em álcool,
cristalizar os factos, fazer conserva
de palavras, na cave de si próprio.
É um assunto sério, terrivelmente sério, sem paralelo no cartapácio de assuntos prementes com que lidamos. A morte do tempo antes do tempo é um precipício, um abismo. Faço apenas uma pequena ideia sobre o quanto há de doer cair doerá. Mas não consigo imaginar o que nos espera do lado de lá desse buraco. Lipovetsky chama-lhe «vazio impenetrável do futuro». Pela minha parte, chamar-lhe-ei «desumanização», «robotização», «bestialidade». Tudo sinónimos imperfeitos, mas igualmente maus.
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