SALOMÉ

Foto: Erhan Dayi

Era a bailarina de que todos falavam. 

Graciosa, leve e desprendida, parecia bailar como um dente de leão pelos jardins numa manhã de maio. Chamava-se Ebba Lindberg, mas podia chamar-se Salomé. Possuía uma grande beleza e por causa dela impunha um enorme respeito. A beleza e a graciosidade costumam esmagam o coração dos que amam e às vezes também a cabeça dos que pensam. Havia entre estes últimos um rei, melhor, um rei e o seu filho. 

Esse rei podia, mas Salomé (ou seja, Ebba) podia ainda mais, porque se apoderara não só do coração e da cabeça do rei, como do coração e da cabeça do príncipe. Dir-se-ia que não apenas do afeto e do juízo destes dois, mas do coração e da cabeça dos súbditos, talvez não de toda a nação, mas seguramente da que nessa noite enchia os camarotes e a plateia da Kungliga Operan, em Estocolmo. 

O velho monarca Gustav escutava no foyer o entusiasmo do filho, que, indiferente ao incómodo crescente da noiva Margareta, tecia extáticos elogios à protagonista de La Sylphide. O intervalo felizmente não demorava muito. Ebba (Gustav teimava em recordar Salomé) bailava intensamente, como uma corola de papoila que se tivesse soltado do caule e fosse subindo sem custo a leve colina de um país inteiro. O ciúme roía as cordas a que Gustav se segurava. Era como uma espada de vento, macia e letal. O filho amado parecia-lhe simplesmente odioso, quando assim desafiava as regras sociais.

Chamava-se Ebba Lindberg, mas podia chamar-se Salomé. Graciosa, leve e desprendida, parecia nem suspeitar de como por sua causa cabeças rolavam, entontecidas, fascinadas.

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A ÚLTIMA SAGA

catalin alexandru
Fotografia: catalin alexandru

 

No Golfo de Bótnia, a meio caminho entre a Suécia e a Finlândia, fica o arquipélago de Åland. Mika, um carpinteiro naval, trabalha em Iniö com o seu irmão Thure. Presentemente, ocupa-se com a construção de um drácar viking, mas o seu pensamento desce muitas vezes a um sonho que se repete noite após noite.

Vê-se a velejar pelo espelho tranquilo das águas na costa continental, com as pequenas casas vermelhas de madeira a espreitá-lo desde os prados. É já muito velho. A família reúne-se para o ver partir. Ele entra numa cápsula futurista, espécie de grão de ervilha todo em vidro, e o estranho objeto sobe então em direção ao espaço a grande velocidade. Viaja entre planetas e asteroides, vê o movimento de aproximação e afastamento dos grandes corpos celestes, das luas, dos anéis de gelo. Não precisa de alimentar-se, nem de satisfazer quaisquer outras necessidades fisiológicas. Não precisa sequer de respirar.

Penetrou no campo da eternidade. Assim como está, assim se manterá para sempre. Distancia-se cada vez mais da Terra e daqueles que vieram despedir-se. A morte é um caminho infinito para o além e o além é o afastar-se cada vez mais daqueles que ama ainda e de que sente já saudades insuportáveis.

Desperta todas as madrugadas com lágrimas nos olhos. Noora, felizmente, dorme. Não seria fácil explicar-lhe este enredo onírico e, sobretudo, a repetição do pesadelo.

«E se a morte for exatamente aquilo, a solidão total no tempo e no espaço!»

Quando regressa à oficina, já o dia despontou. Trabalhar a madeira com a enxó e com a plaina costuma ser revigorante – esta novíssima embarcação é uma encomenda especialmente cara e desafiadora. Mais ainda quando decide velejar entre as ilhas e ilhotas vizinhas até Mariehamm, sentindo o fustigar do vento frio e o movimento do sol na água que tudo reverbera e ilumina.

Mas a sombra do pesadelo reapodera-se de si à medida que a noite cai. Chega a ter medo de adormecer.

«E se a morte for exatamente aquilo?»

Nenhum de nós garantirá que não é.