Duplo! sem gelo, se faz favor!

Fotografia de Mathew Schwartz

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Improvavelmente tornámo-nos amigos. Não perguntámos o nome. Aceitámos partilhar o balcão e uma garrafa de uísque. Tem um certo gosto por frases elaboradas. Com o mate melhora. Às vezes cai para o teatral. Mas não me importo: tornámo-nos amigos, aceitamo-nos com as impurezas. Prefiro que caia para o teatral do que para o lamechas: um homem bêbado fica a isto (a isto, olhai bem para o minúsculo hiato entre os meus dedos) de se lançar ao choro. Deus nos guarde de um bêbado chorão. Gosta de inventar o meu amigo. Agora, por exemplo, puxa um guardanapo, destapa a caneta, embebe-a com um minúsculo ponto de tinta preta.

«Veja você: a minha vida é isto. Um mundo rodeado de vazio. Vê este branco todo ao redor do pontinho? É a minha vida. Eu sou um ponto final no meio do nada. Não termino nenhuma frase, não anuncio nenhum futuro. Sou apenas um borrãozinho no meio do nada. Inútil e desamparado como isto!»

Acho piada ao meu amigo. Tem um ar de tipo importante. Cheira-me que por detrás desta máscara, deste gentleman esfarrapado, há muito coração lá dentro. E dinheiro também. É ele que paga a conta. Quando tentei pagar da primeira vez quis bater-me. Paga sempre com notas grandes o meu amigo. Suspeito que paga o bocado de companhia. Homens há que preferem as putas. Outros carros de luxo. Outros fugir para o Tibete. Este quer-me a mim (passe a expressão) para se emborrachar coloquialmente.

«Sabe qual é o dia que mais detesto na semana, sabe, meu amigo?»

«Aposto que o domingo!»

«Errado!»

«Eu cá odeio o domingo!»

«Nã!…»

Tropeça um pouco, ameaça rodopiar sobre si mesmo, mas detém-se. Um copo de ótimo scotch é uma âncora na mão de um homem, não sei quem o disse já. O tipo aguenta-se. Faz com a boca o esgar de quem vai contar um segredo.

«A sexta.»

«A sexta?»

«Iá.»

«Então porquê?»

«Porque a seguir vem o fim de semana… Conhece você por acaso pior desculpa do que o fim de semana?».

Mostro-me surpreso.

«Sabe, você, qual é a diferença entre a minha mulher e um velório»?

«Pois… não faço a mínima ideia.»

«Veja lá, somos dois!»

E solta uma gargalhada que lhe faz mancar as cordas vocais.

O meu amigo tem gargalhadas cómicas, daquelas que provocam o riso dos parceiros de ofício. «Boa, boa!» aplaudem do lado. Não, esta apanhou-me. O meu amigo dava um comediante dos bons, está visto!

Mas depois, mudando de registo, resguardando-se na filosofia, empurrando-me para uma espécie de confissão, mano a mano, reflete, explica, aclara:

«Um tipo engana a mulher uma e outra e outra vez… Acaba, mais dia menos dia, por chegar ao seu perdão! Mas quando à sexta-feira à noite esse mesmo tipo vai para casa, como se fosse para o seu próprio funeral, será que algum dia se irá perdoar?»

Se calhar este malandro é daqueles que têm sempre um trocadilho na ponta da língua. O Jack Daniels torna-nos maus juízes do quilate dos trocadilhos. Sente-se o ar espesso do bar, a vontade de sair. Mas o tipo já regressou à comédia. Todos aqui adoramos o fulano que nos paga mais uma rodada, enquanto nevoeirento, arrefecido, o Tejo lá ao fundo se esvai, se esgueira para o Atlântico, feliz por deixar esta terra de pacóvios. Julgo mesmo tê-lo escutado desabafar, uma ou outra vez, quando me aliviava contra a parede dalgum contentor no cais: «Safa! Aqui nunca mais me apanham!»

Exagero.

Exagero sempre que me ponho a narrar as minhas coisas de boémio. No fundo, sou tão estúpido que ainda não consigo olhar de frente o desastre. Prefiro olhá-lo nos olhos do meu amigo misterioso. O tipo é do caraças. Até usa gabardina no inverno. Tem as suas semelhanças com o Bogart. Quando o conheci reparei no modo como fumava. Um ator, sim senhor. Chegou ao balcão e pediu sem se engasgar:

«Tire lá uma garrafa de Macallan. 12 anos, faz favor!»

Não havia.

«Então, Talisker. 10 anos».

Também não.

Contentou-se com Jack Daniels. E rapidamente nos convocou a todos para o seu círculo. Bom tipo. Tipo tristíssimo. Amigo do seu amigo. Mal o conheço. Podia jurar que somos amigos.

No fundo, sou tão estúpido que ainda não consigo olhar-me de frente. Um velório, diz ele. Como se não houvesse outros modos de ter conhecido a morte. Como se o amor não fosse a maior sacanice, a maior vigarice que inventou a espécie.

«Sim, aceito outro. Duplo! Sem gelo, se faz favor!…»

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Sempre fui um gângster

Christophe Verdier
Fotografia de Christophe Verdier

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Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Batoteiro, apaixonado, zaragateiro, intempestivo, amante da tarefa acabada. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos — sejam poemas, sejam acertos de contas — porque um bom filho da mãe não deixa nada a meio; um bom filho da mãe gosta de morder o cigarro enquanto conduz à noite e faz grandes reflexões, com Coltrane, Chet Baker ou os Morphine (se for mais da minha onda) em fundo; um bom filho da mãe distingue as boas das más ações, mas assume-as a todas sem medo, sem hipocrisia e sem moralismos. Um bom filho da mãe tem um orgulho verdadeiramente gangsteriano naquilo que faz e, arrisco dizer também, em recusar aquilo que não faz!

E o que não faz um gângster? Por exemplo?

Por exemplo lamber botas! Por exemplo pôr-se com merdas quando tem que encarar um tipo desprezível (e há tipos desprezíveis, meros rebentos de infâmia e dejeção, a quem não pode ser concedido sequer, na pior aceção — a que lhe confere o topo da escala social — o título de gângster) e explicar-lhe sem rodeios que são uns merdas! Por exemplo declinar a oportunidade de dar uma bofetada a um palerma que fala em direitos e esquece as obrigações. Por exemplo perdoar um tiro a outro filho da mãe que anda há muito a pedi-las e sabe que anda. Por exemplo aceitar palmadinhas nas costas de tipos que usam fato às riscas, botões de punho, sapatos de verniz e perfume a 500 euros o frasco de 100 mililitros.

(Faço um parêntesis para emendar o raciocínio e impedir conclusões apriorísticas: nunca dei um tiro a ninguém! Por manifesta falta de formação específica na área, circunstância que aliás muito penaliza o meu perfil mafioso. Mas não o lamento! Sou um mafioso bom, devo insistir!)

Sempre tive, assim como assim, uma queda para o bandido. Porque a cabeça de um indivíduo pode esconder um laboratório de malfeitorias. Vilezas puras, como roubar a Shakespeare meia dúzia de versos e tomar de assalto um coração puritano. Patifarias como mandar às urtigas um curso superior e ir à procura da felicidade onde ela se encontra, nas montanhas do Tibete ou dos Andes, nos fiordes da Noruega ou entre as cow-girls do Texas. E quem diz o curso superior diz outras coisas superiores como a herança, o casamento ou os amigos no clube social. Um biltre que faz uma maldade destas, que se mete à estrada com a viola às costas e sem mais vontade que a de pensar em si (cantando «And a new day will dawn for those who stand long,/ And the forests will echo with laughter») merece, senhores e senhoras, um enorme aplauso… É um infame, que deixa para trás os estudos, uma família furiosa, uma ex-mulher vingada na justiça, um grupo de snobes. Mas que merece, senhores e senhoras, um aplauso do tamanho do mundo! Um aplauso do tamanho do futuro! Os gângsters fazem coisas destas…

Eu fiz! Rejeitei noites de prémios onde me queriam bem vestido, barbeado, perfumado. Matrimónios que me impunham a máscara de manso, do amestrado, do maridão. Compromissos políticos onde me desejavam seguidista, cacique, acéfalo. Universidades que me pediam teses bem escritas, ortodoxas, balofas. Editoras onde me exigiam paciência, más contas, conformismo. Amigos que me brindaram sempre com esquecimento, silêncio, por-favores! Um pulha faz coisas destas, faz coisas muito piores, fá-las sem pestanejar!

(Faço outro parêntesis para explicar que estas ditas outras coisas muito piores me não são estranhas. Uma vez rejeitei um cargo assaz cobiçado numa dada prestigiante instituição, porque gostando do cargo e da instituição depressa compreendi que me usavam em modo de arma de arremesso, ou como castigo político para quem até aí o exercia. E eu disse que muito obrigado, mas não!)

Eu faço coisas destas. Sempre fui um pouco gângster. Até usei barba, boina, charuto. Até li os pensamentos anarquistas de Rousseau e os de Godwin. Li todos os romances de Mario Puzo e em tempos devorei uma biografia do Al Capone. Até usei toda a poesia de todos os tempos para ser poeta a tempo inteiro (mesmo quando assalariado). Usei-a para chantagear intelectual, moral, civicamente. Máfia pura! Até me servi de uma t-shirt do Che Guevara (uma que dizia «Yo no sé porque me pongo una camiseta del Che») para conquistar os favores de uma guevarista de olhos verdes no sul de Espanha.

Sempre fui um pouco gângster. Um aldrabãozeco! Um facinorazinha com dever de consciência, desta mesma consciência de que me sirvo agora e muitas vezes para renunciar às tentações, enganações, seduções, opressões e obsessões de Satanás. Multipliquei adversários e inimigos. Tanto na literatura, como na rua. Gosto de me recordar deles, enquanto afio as facas e limpo o fuzil dos meus pensamentos (admito ser também um adorável fazedor de metáforas parvas). Gosto de me recordar também de torpezas quando ando depressivo e não encontro o isqueiro ou um café aberto à noite. Uma boa luta, uma pirraça das melhores, um cagaço dos grandes mantêm-nos vivos, já o repetia o Zé do Telhado.

Pela minha parte limito-me a ser discreto, entrando de mansinho na cena, com os Morphine em fundo, janela aberta, o fumo do cigarro misturando-se à neblina, o carro levando-me ao hotel combinado, o dedo em riste, a alma limpa, a noite prometendo — amor, companhia, uma boa história…

Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Não me pesa demasiado afirmá-lo. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos. Eficientes. Na hora. Senhores e senhoras, por aqui me esgueiro. Boa noite!

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