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Diante do féretro aberto do seu melhor amigo, no que parece ser um velório pouco concorrido, o ex-faroleiro Argyll Williams mostra-se acometido por uma solidão mais penetrante do que aquela tantas vezes experimentada na ilha de Tory, quando o oceano tumultuoso, verdadeiramente insano, se erguia contra as paredes cilíndricas da pequena torre iluminada e se dava conta de ser ele a pessoa mais só e mais estoica do planeta.
Olhar um corpo quieto e sem fôlego, a quem o acinzentar das carnes e a rigidez das expressões tornam uma presença intrusa no meio de tantos pensamentos e memórias, é o que faz também a astrofísica Kathleen O’ Connor. No deserto do Atacama, a visibilidade do céu noturno convida olhos gulosos a indagar as profundezas do universo, como sejam a luz das estrelas primitivas e das primeiras galáxias.
O’ Connor observa agora a morte. O seu tio, Michael Mahon, não se parece nada com o autor das mais engraçadas anedotas do condado de Donegal, apenas um corpúsculo sem luz na embocadura de um buraco negro. Dos amigos que teve poucos vieram, um deles o velhote de pele vermelhusca e camisola de lã, com um barrete grosseiro de pescador na mão direita.
Na igreja entrou agora Mary Gallagher. É uma mulher notada, com o seu peculiar vestuário de couros e acessórios de luto. De ambas as metade da face escorre um curto leito de lágrimas e produtos cosméticos, um sulco comprovativo de que a mágoa nos suja o rosto e o deforma sempre.
Se toda a comunidade de Cloughaneely aqui tivesse acorrido, compreenderia que a uma antiga prostituta não descabe a sua quota-parte de desgosto e que um véu fúnebre nunca sabe bem, nestes casos, o que esconde.
Admitamos que o vazio se conte entre os despojos que ao fim e ao cabo atormentam as almas sensíveis de um antigo vigilante nas noites pelágicas, de uma cientista acostumada ao silêncio do cosmos, ou de uma mulher que abandonou as camas pungentes de uma casa de passe. Ninguém saberá dizer, sob pena de leviana suposição, em qual das três o será mais, ou de maior escondimento.
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