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– Há precisamente cinco anos dei uma gargalhada – disse assim de repente, sem mais nem quê, o meu sócio.
– Eu há sete que o não faço – atalhou o meu outro sócio. – Sete anos, cinco meses e vinte quatro dias. Quase sete anos e meio!
Frases como estas aborrecem-me. Nunca sei o que fiz no dia anterior, sucede-me frequentemente o jamais-vu e esqueço-me de datas importantes. O meu gato, por exemplo, completou o terceiro aniversário há mais de 365 dias e só disso me dei conta na passada semana.
Sou péssimo de memória. Frases daquele jaez põem-me os nervos a bulir. Como é possível a alguém recordar-se do dia exato em que tremelicou de riso? Desconfio que os meus sócios se unam às vezes para me prejudicar, também que se prejudiquem muitas vezes, sem se unirem um ao outro ou a mim, que dificilmente me uno a quem quer que seja.
Gustavo, o meu parceiro número um, objetou.
– É muito fácil e facílimo. Dei essa gargalhada por volta das dez e um quarto no dia dezasseis de julho de mil novecentos e oitenta e oito, quando da rua dos Hoteleiros me dirigia para a do Arsenal, no cruzamento com a rua da Boavista. Vi a minha ex-mulher a cambalear de bêbeda. Penso que o amante se tinha aborrecido dela. É ou não engraçadíssimo apanhar a ex meio despenteada, seminua, aos esses, hem?
Venâncio, o número dois, confiscou-me a palavra.
– Ora. Eu não vejo qualquer problema em trazer na cabeça uma lembrança dessas. É uma como as outras. Um tipo fixa as coisas numa ordem de importância. Se o teu inimigo te quer matar com uma bomba e o embrulho lhe explode nas mãos antes do envio, tu ris-te com gosto, ou não? E há uma lápide num cemitério à espera que lhe deponhas ao pé uma rosasita. Assim nunca te foge o sentido das coisas…
Estas conversas a três lá no escritório dão-me arrepios.
Não posso afirmar que saiba a data recente em que casquinei, esgargalhei, ri a bandeiras despregadas. Ou o secreto e escarninho motivo por que o fiz. Sou daquelas pequenas almas que escancaram a boca a humor fácil de uma anedota inocente ou com as facécias do gato caseiro que nos surripia esforçadamente um bocado de carne do prato.
Não consigo escarnecer, confesso, da voz roufenha do Venâncio, nem das carranhas que o número um conserva, infantilmente e amiúde, nas fossas nasais. Suponho que os meus sócios saibam mais do que pode o riso do que eu.
Não atino com as circunstâncias exatas da minha última gargalhada. Como é possível?
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