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Antes de o calor se tornar arquejante, pode-se aproveitar no máximo duas ou três horas de frescura. Pela porta e pelas janelas abertas corre uma aragem agradabilíssima, um ventinho que amacia os pensamentos, que às vezes carrega o cheiro das praias e do mar, outras vezes traz subtilmente o aroma verde das hortelãs e dos tomateiros, e que é, em todo o caso, o melhor do dia.
O calor cada vez mais excessivo nos meses do estio é a causa deste ódio do alfaiate Iñigo Larraona à terra ancestral. Nos sonhos – se sonhar pode dizer-se do desconcerto de imagens e de pessoas na sua cabeça durante a noite – caminha amiúde por inóspitos carreiros de pedra calcária, sempre descalço, com a planta dos pés e a garganta num ardor igual, violento, de maceração e agonia. As cabras deambulam debaixo do sol em busca de uma sombra ou de arbustos que lhes matem a sede.
Iñigo conhece um sítio onde a água pode ser encontrada, água leve e límpida como toda a água boa. Fica para lá do pinheiro manso solitário, numa das encostas da colina que tem de subir a muito custo. Há um opérculo de madeira, meio escondido pelo giestal, que tem de remover. Depois há uma corda que puxa e que traz do fundo um pequeno pote de barro. Pode então saciar-se.
A sensação é ambivalente: bebe com sofreguidão, lava o rosto, molha a sola dos pés, volta a engolir o manancial prodigioso empoçado nas rochas. A água escorre, ardeja, silencia o clamor da pele. Mas é então que regressa o pânico. Onde estão todos? Onde se enfiaram os amigos? Que solidão é essa que o cerca aí de todos os lados e se torna um pesadelo tão poderoso capaz de o expulsar de si e da sua infância?
Antes de o calor cair com toda a força no país, Iñigo Larraona regozija-se com a paz das manhãzinhas. Na mesa larga do seu ofício, confirma os números com a fita métrica, empurra com gentileza o giz sobre o tecido, recorta as peças, alinhava-as. A brisa faz empolar suavemente o volume de papéis. De quando em quando interceta o fumo de algum cigarro transeunte, ou o aroma dos pêssegos capturado na frutaria da esquina. O alfaiate sente uma pena imensa que estas coisas durem tão pouco e que não as saiba guardar. Não é fácil limpar-se dos pesadelos, ou calcular com precisão o poder que eles detêm, ou compreender a razão por que tantos anos depois continua a sentir-se vazio, descalço, perdido no meio da vida.
Depois, quando o grande lume deflagra nas vidraças e necessita de encerrar as persianas, o sufoco é maior. Não lhe apetece nada, tudo é uma agressão contra si e contra o mundo. Não escuta a voz de nenhum dos vizinhos, nem o ganir dos cães. A solidão encurrala-o sem misericórdia. Não lhe apetece nada, exceto fechar os olhos. Receia, no entanto, que se o fizer, possa sentir os pés em chamas e a garganta torturada por uma sede insatisfazível.
É um homem comum, em suma. Temos razão para acreditar, ainda assim, que todas as criaturas comuns possuem um hemisfério sombrio, ctónico, sem dúvida merecedor de atenta psicanálise e da melhor literatura.
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