Uma pilha de livros

Fotografia de Delphine Devos, old books
Fotografia de Delphine Devos

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para a Salomé

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Numa das ruinhas da vila, à esquina com a marginal, mal se dá conta de uma casa pequena de paredes caiadas e rebordos de granito. Deve ter sido noutro tempo o lar segundo de alguma família de bem, como o testemunham o jardim com jacarandás e uma estrutura em forma de estufa, de que sobram hoje troncos e partes metálicas retorcidas: percebe-se facilmente ter sido esse espaço amplo outrora e hoje muito mutilado por força dos edifícios espalhafatosos que cresceram no lugar dos canteiros e das latadas.

Os veraneantes atravessam uma avenida e depois arruamentos mais estreitos e por fim esta esquina silenciosa, abrindo para o mar. Nenhuma alma há de ter posto a sua força contra a cancela enferrujada nos últimos dez anos, de tal modo o óxido tingiu a primeira laje do passeio e se disseminou por todo o corpo desta vivendazinha.

Um escritor, que nesta localidade faz a sua vilegiatura, observou já o curioso limoeiro bravio que na parte mais esconsa do quintal oferece ainda, fordo, o seu fruto avantajado e solar.

Numa das janelas sobranceiras ao lancil, que o destino ou os antigos donos não puderam ocultar, surpreendeu o ocioso forasteiro, sombreada por uma velha cortina de ponto aberto, uma pilha colorida de livros com encadernações de pele e letras de ouro: D. Quixote em dois tomos, O Vermelho e o Negro, Assim Falava Zaratustra, Werther, Otelo, Quo Vadis, Viagens na Minha Terra, O Tartatufo seguido de O Doente Imaginário, O Príncipe e o Pobre, Eugénia Grandet. Outros estariam sobrepostos, mas já a piedosa curiosidade alheia os não atingia por culpa do plástico sórdido da persiana.

O escritor, que manteremos no anonimato, sentiu como um golpe de punhal este abandono particular.

Que uma geração esqueça todo o investimento das gerações precedentes é algo a que obriga a lei absoluta da modernidade. Ainda assim, com que falta de amor. E de escrúpulos!

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Apúlia, 11.08.2025

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Salomé

Fotografia de Erhan Dayi
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Era a bailarina de que todos falavam.

Graciosa, leve e desprendida, parecia bailar como um dente de leão pelos jardins numa manhã de maio. Chamava-se Ebba Lindberg, mas podia chamar-se Salomé. Possuía uma grande beleza e por causa dela impunha um enorme respeito. A beleza e a graciosidade costumam esmagam o coração dos que amam e às vezes também a cabeça dos que pensam. Havia entre estes últimos um rei, melhor, um rei e o seu filho.

Esse rei podia, mas Salomé (ou seja, Ebba) podia ainda mais, porque se apoderara não só do coração e da cabeça do rei, como do coração e da cabeça do príncipe. Dir-se-ia que não apenas do afeto e do juízo destes dois, mas do coração e da cabeça dos súbditos, talvez não de toda a nação, mas seguramente da que nessa noite enchia os camarotes e a plateia da Kungliga Operan, em Estocolmo.

O velho monarca Gustav escutava no foyer o entusiasmo do filho, que, indiferente ao incómodo crescente da noiva Margareta, tecia extáticos elogios à protagonista de La Sylphide. O intervalo felizmente não demorava muito. Ebba (Gustav teimava em recordar Salomé) bailava intensamente, como uma corola de papoila que se tivesse soltado do caule e fosse subindo sem custo a leve colina de um país inteiro. O ciúme roía as cordas a que Gustav se segurava. Era como uma espada de vento, macia e letal. O filho amado parecia-lhe simplesmente odioso, quando assim desafiava as regras sociais.

Chamava-se Ebba Lindberg, mas podia chamar-se Salomé. Graciosa, leve e desprendida, parecia nem suspeitar de como por sua causa cabeças rolavam, entontecidas, fascinadas.

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O mais puro amor entre todas as formas possíveis de amar

Salomé
Fotografia de Rodrigo Sena

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E de um momento para o outro damos connosco a embalar uma bebé nos braços, recuperando velhas canções esquecidas e antigos berços de madeira, reaprendendo tarefas tão simples como uma muda de fraldas ou lidando com outras bem mais complexas, como a gestão do tempo ou a míngua de horas de sono. Porque quando nos nasce uma criança e nos impõe a prioridade absoluta de a amarmos e protegermos, a vida nunca mais é igual, nem o significado da palavra pão, nem o modo como se escreve um poema, nem sequer muito significado do tempo que ficou para trás, com todas as arcas e álbuns de memórias escarninhas. Porque quando nos nasce uma criança o único tempo verbal que importa é o futuro!

Ando às voltas contigo no colo, experimentando uma e outra forma de adormecer-te, às vezes adormecendo primeiro do que tu. O «Frère Jacques» faz-me passar pelas brasas, enquanto tu ficas, como pensativa, sondando com olhos mal inaugurados o mundo em volta. És tão bela, bebé! Desespero-me por gravar estes dias, estes dias que um dia não hás de recordar de tão distantes, porventura os melhores, estes dias que a inocência e um branco esquecimento anterior à capacidade de lembrar não permite que resguardes. Ando contigo às voltas no colo, escutando-te o ternurento som da chupeta, o leve ressonar de erva tomada pela brisa, a respiração delicada de alma sem mácula ou remorso. Às vezes dá-me uma volúpia de te apertar nos braços, de te esmagar, de te morder, de te beijar com sofreguidão… És tão bela, bebé!

Cumprir a hora da papa e do banho diário, distinguir os cremes, destrinçar e compreender os motivos do choro, aspirar o teu cheiro inefável, albergar todo o teu maravilhoso sorriso desdentado, maravilhar-me com todos os teus guinchos de satisfação, aprender os ciclos, adestrar-me na arte de te despir e vestir nas circunstâncias mais imprevisíveis, nos lugares menos prováveis, sim, tudo isso passou a fazer parte de mim, como o orgulho que se sente nas semelhanças físicas e nas de carácter, como o prazer de pronunciar uma e outra e outra vez o teu nome próprio, invocando a vida que és e te tornaste na minha vida!

Nunca fui capaz de compreender até este ponto o significado da existência. Nenhum filósofo, nenhum poeta, nenhuma crença, nenhuma canção me ensinou tanto como tu, tu que me abriste os olhos para a verdade oculta de e em todas as coisas. E, por isso, te levanto ao alto nos meus braços, como o faz a luz desde o fundo dos olhos. E, por isso, abençoo e agradeço a dádiva. E, por isso, como nas tribos de África, sou um homem diferente a quem o tempo passou a venerar, como se venera a árvore ou o rio, como se venera o amanhecer e a sombra e todas as coisas que se multiplicam em silêncio.

E de um momento para o outro dei comigo a embalar-te nos braços, vendo crescer de semana para semana o duplo queixo e as bochechas coradas, sentindo os teus dedos nédios prender a minha mão, escutando-te a incompreensível e tosca cantilena dos sons que serão em breve as primeiras palavras e as primeiras pedras de uma ponte entre e ti e mim e nós…

Ando às voltas contigo no colo, na penumbra da casa, regredindo aos primórdios do meu próprio tempo, ao aconchego de braços que me acalentam e embalam e me ensinam o significado do amor, deste que é o mais puro amor de todas as formas possíveis de amar. Um dia, quando deres por ti, terás percebido tudo o que escrevo agora e se há de perder, como se perde toda a luminosa essência de um beijo, ou se nos escapa uma lágrima furtiva.

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