O haríolo

Fotografia de Charlaine Gerber
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No coração de África, numa aldeia da Zâmbia, animada pelas águas glaucas de um dos afluentes do Lago Tanganica, vive um homem prodigioso. É cego de nascença, mas vê clara e profundamente todas as coisas em seu redor. Chamam-lhe “pai”, “avozinho”, mas também “morcego” e “bruxo”. Procuram-no para pedirem conselhos, apadrinhar negócios, orientar casamentos, curar febres do mato.

O homem é idoso. Habita a mesma casa de adobe e palha há mais de setenta anos. Se uma serpente rasteja em silêncio na sua direção, esmaga-lhe a cabeça num movimento certeiro com o cajado nodoso que lhe serve ao mesmo tempo de bengala e de cetro. Todos o veneram. Se ele diz “Procurem o vosso vundu além, no sítio onde se erguem as grandes raízes dos embondeiros”, os pescadores lá o acharão. Se ele diz “A vossa galinha encontrá-la-eis no lugar onde se juntam as grandes estradas de formigas e onde pulam os cudos”, nesse ponto o agricultor a achará, por vezes bicando as larvas dos girinos nas vertentes aluvianas do lago, outras vezes transformada numa carcaça nua, quase reduzida a pó.

Um missionário inglês chegou há pouco à aldeia, vindo do Ruanda. Chama-se Paul Montague. Conquistou rapidamente a simpatia fácil dos aldeãos. Traz ensinamentos tão alheios a este mundo como os ensinamentos que outros antes dele procuraram aqui semear. Quando visitou a cubata do idoso de quem todos falam na aldeia, espantou-se das imprecações que o velho cego lhe dirigiu na língua local, uma das filhas do falar bantu. Os aldeãos encolhem os ombros. Quem fala um inglês rudimentar explica que o homem profetiza desgraças. Dentro de três dias descerá dos céus uma chuva mortal, que há de trazer a fome.

O missionário tranquiliza todos os que ali estão, mostra com satisfação um objeto mágico, emissor de vozes e de imagens, garantindo que a meteorologia hoje se sabe por meios seguros. Não choverá nos próximos tempos. O ancião engana-se. Mas o velho haríolo cospe com nojo, expulsa-os, diz que desgraças sem fim se abaterão sobre todos.

Três dias volvidos uma nuvem espessa, ruidosa, zumbidora, devoradora cobre todas as casas, todas as árvores, todos os bichos vivos que ali se amontoam. É uma horda de gafanhotos. Lança-se sobre as sementeiras, sobre as acácias, sobre a savana, sobre os telhados em forma de cone e parece disposta a ingerir os próprios humanos que mal acordaram ainda do pesadelo.

Dentro do seu tugúrio o velho mantém-se em absoluto mutismo. Não lhe deram ouvidos e por isso chora. Em mais de sete décadas de vida nunca se sentiu despeitado. Dos seus olhos apagados irrompem imagens terríveis. Aquela nuvem de gafanhotos nada é comparado com o que aí vem. É apenas o começo.

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Tu

Fotografia de Mario Raia

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Duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem: a capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer. Uma terceira coisa o distingue depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Tenho, a esse respeito, tido grandes mestres. Mas tu foste o maior!

Porque nesta época em que tudo se confunde, ruído e realidade, poder e importância, espetáculo e reconhecimento, ouro e pechisbeque, nesta época em que se não distingue autenticidade e clichés, nobreza e velhacaria, nesta época vil e mecânica, nesta época automática e plástica, insossa e cega, nesta época de famigerados da fama, ó Régio!, de louvadores do fácil, nesta época de nadadores em mares de contentamento, ó grande Camões!, nesta época provavelmente não menos nem mais facínora e execrável do que todas as outras, tu passeias-te no meu pensamento muitas vezes, nítido ainda, inteiro como dantes, muitas vezes, subindo com as neblinas a várzea silenciosa, lento, firme, feliz, com ou sem a espingarda ao ombro, com ou sem coelhos à ilharga, feliz, firme, lento, para me ensinar.

Um homem não vale pelo que tem, nem sequer pelo que é. Mas pelo que fará ter aos outros, pelo que for capaz de deixar de seu, não a uma, mas a dez gerações!

E como eu te escutava, meu velho amado! Os nossos colóquios eram na cozinha, junto à lareira grande de pedra, onde o fumeiro e os grandes potes de ferro enegreciam. Onde a ciência intemporal dos teus provérbios ardia. Onde me contavas as tuas histórias de licantropos, homens voadores, sereias e mouras encantadas. E como eu te escutava, meu velho amado! Como ardem ainda as manhãs nevoentas, em que desjejuávamos os dois, rapando com um pedaço de pão o prato dos ovos estrelados! Como recordo esses ovos de gema sumarenta, esse pão de sêmola, junto dessa lareira grande nessa cozinha escura e fumada! Como estremeço ainda à tua voz, às tuas palavras despidas de vaidade.

Quando chegares à minha idade, meu filho, vais perceber que o céu é para quem o ganha e este mundo para quem mais apanha… Bem prega Frei Tomás, faz como ele diz e não como ele faz! É tão certo isto, como dois e dois serem quatro, meu filho!…

E tu limpavas os beiços a um pedaço de pão. Limpavas o catarro com um gole de vinho. Como eu amava aquela história do homem que queria voar, das imprudentes asas de cera, do sol impiedoso, da queda no oceano. Tudo narrado ao pormenor, sem pressa, com a paixão de quem semeia um tempo por vir… Deves ter-me contado essa história umas vinte mil vezes. Na cama, onde te admirava as ceroulas de flanela e a cicatriz no abdómen, no quintal, enquanto semeavas favas e ervilhas; no lagar, onde depois das vindimas depositavas caruma e palha seca, onde nasciam às dezenas, pintos magnificamente enxutos e amarelos. Porque me contavas as histórias sem querer ensinar.

Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. É preciso amar a vida para se compreender a vida, meu filho!

Julgo que uma ou outra vez, empolgado pelas lições, quis fumar também. O teu maço de doze Kentucky era uma tentação. Mas tu somavas em voz alta os cigarros que ficavam a guardar-te a casa enquanto ias dormir a sesta. Limitava-me a colocá-los na boca, a imitar-te de longe, a fingir-me caçador, lento, firme, feliz.

Porque o exemplo e a memória que nos fica de um homem é a terceira e mais importante coisa que distingue um homem de outro homem, logo depois da sua capacidade de suportar a dor e da qualidade dos seus prazeres.

Julgo que arrostaste com estoicismo o cancro. Eras um velho já tão velho que o meu amor por ti não cessava de crescer. E, no entanto, não compreendi jamais a tua derradeira cama, os cigarros abandonados, a espingarda com teias de aranha, os ervilhais deixados ao deus-dará, os ovos por recolher e pintos nascituros nos remansos da cave, a lareira sem lume, as histórias por contar, as manhãs sem ti…

Penso em ti muitas vezes, avô. Porque nesta época em que tudo se parece estranho e estéril, feio e enfermo, esquálido e esquecido, doloroso e dorido, demasiado e diminuído, sinto a falta do maravilhamento calado dos teus olhos, do catarro sombrio que enchia a alvenaria da casa, do desembaraço e desembaciamento e sonoridade limpa de cada um dos teus gestos, da luz das tuas palavras, da certeza que tinhas então sobre mim.

Um homem vale pelo que tem cá dentro, meu filho! Lembra-te disso! Um homem vale pelo tamanho do seu coração! Homens graúdos têm o coração do tamanho de uma melancia, ouviste?

E eu a querer um coração grande, com medo de que pesasse tanto que me afundasse. E eu a imitar-te em tudo, meu velho. E eu a não perceber aquela gente que me dizia que tinhas uma doença, que tinhas morrido, que tinhas partido, que não virias contar-me mais histórias de lobisomens e ícaros, sereias e mouras, anões, sapateiros e hortelões, raposas matreiras e criados do diabo…

Não te perdoei a primeira, nem todas as outras manhãs em que não regressaste das neblinas sobre a várzea silenciosa. Julgo que uma ou outra vez, esquecido das lições, quis fumar também. O maço em cima da escrivaninha. O isqueiro em cima do maço. Os dedos em cima do isqueiro. Penso em ti muitas vezes, avô. Em ti, corpo encarquilhado, cansado de lutar, escavado pelo mal. Porque uma terceira coisa distingue um homem depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Em ti, que um dia não regressaste. Porque duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem, não é assim? Em ti. Julgo que uma ou outra vez quis fumar também. A capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer, não é verdade? Como te escutava, meu velho amado!

Não deixei que o vício me levasse a palma, avô. Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. Não é assim?

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