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Anotados a lápis vermelho-vivo, com a instrução sumária de que fossem abertos no dia 25 de abril de dois mil e vinte e quatro, o poeta-pintor e tradutor-publicitário, homossexual e surrealista, cidadão sem papas na língua e de cabeça limpa, de sua graça Mário Cesariny de Vasconcelos, deixou uma pilha de papéis lacrados numa arcazinha imitativa da de Fernando Pessoa.
Deste, que agora mesmo seguramos nas nossas mãos e cujo rasgamento se fez com faca de aço inoxidável, acabou de extrair-se e de desdobrar-se o poema «ERA DANINHA».
Não há erro ortográfico, nem data de criação, só um manguito à Bordalo, desenhado com o mesmo carvão no final do texto.
Transcrevemo-lo para o público e devido reconhecimento.
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ERA DANINHA
O António era fascista.
Deixá-lo ser.
O António lambia botas
Deixá-lo lamber.
O António entregava os amigos.
Que se vá foder.
O António perseguia os inimigos.
Havemos de o prender.
O António morreu.
Deixá-lo morrer.
O António quer voltar ao mundo.
Deixá-lo crer.
O António crê poder voltar ao mundo.
Deixá-lo querer.
O António chora com aquilo dos cravos.
O ranho seca-lhe, vais ver.
O António no outro mundo redige protestos.
Deixá-lo escrever.
Cem mil diabos carregam o António no inferno.
Deixá-lo sofrer!
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Dos remanescentes textos, cujo conteúdo muito nos deleitou e em parte surpreendeu, daremos oportuna (oxalá brevemente) a cabal notícia.
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