O António

Rui Pires
Fotografia de Rui Pires

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Estou a vê-lo, ao pé de mim, a desembrulhar consoladamente caramelos de fruta, sentado na soleira da porta, com as calças arregaçadas, socos nos pés, a tesoura da poda presa à ilharga, numa presilha de couro, como um polícia com o cassetete. Nunca compreendi essa necessidade de ter sempre à mão a tesoura da poda. Nem as calças arregaçadas. Nem os bolsos cheios de rebuçados. Era o seu modo de enfrentar a vida, suponho. Mastigava como um macaco, depressa e de um modo desajeitado, enfiando de quando em vez os dedos na boca para soltar a massa pegajosa que dentro dela rolava e se colava ao palato. A mulher era má. Estou a vê-la também. E a ouvi-la. Esbracejando, insultando o silêncio das oliveiras, ofendendo o conforto demorado do sol. ‒ Os insultos são pedradas às vezes insuportáveis.

‒ O velhote fechava os olhos, igual a um gato mandrião, deixava-se entregue aos pensamentos e ao resto açucarado do último caramelo. Parecia cambalear para dentro de uma redoma. Podiam chegar de fora os piores palavrões, queria lá saber…

Eu gostava muito dele. Além de partilhar as guloseimas, ofereceu-me certa vez uma tesourinha da poda. E uma presilhinha de couro. E uns tamanquinhos com as tachas brilhantes dos tamancos novos. Éramos amigos. Vizinhos, sim, mas amigos! Esbanjava dinheiro como esterco, acusou-o até ao fim a megera. Para ele um amigo está acima dos centavos. Aliás, aprendi a palavra centavo numa das novas conversas. Porque nós tínhamos conversas no intervalo da sorna. Conversas como as que se têm no meio de um ofício. Quando se zangava, e zangava-se de um modo silencioso com a mulher, sempre com a mulher, o velhote ia para o campo e levava-me consigo. Por causa desta coisa de ser amigo de alguém zangado com a sua mulher, sofri também da sua revolta silenciosa e das sonoras imprecações da D. Etelvina, para quem eu era o ajudante.

Ajudante! Uma honra sem limite! Cada um, de cada lado da mesma árvore, cada qual a zelar pela produção, pelo bem-estar do horto, pelo salário da casa. As peças de xisto queimavam os olhos, refulgindo a luz de julho, e eu muito solidário, o xis dos suspensórios imitando o xis dos suspensórios do mestre, a ouvi-lo falar da sua própria meninice, dos tempos incompreensíveis em que se fugia da guerra e se comia uma malga de sopa ao jantar sem mais. Era como um avô narrando uma fábula. E eu como um neto prestes a adormecer no embalo da narrativa. O velhote tinha um jeito danado para seduzir, com uma voz feérica, uns olhos serenos, um riso de malandro! Tanto me ensinava a estacar feijão e pimentos, como a fazer doce de amoras em folhas de videira! A mulher detestava-nos esta cumplicidade.

 ‒ Ó Tónio, rais te partira! 

Escabroso pretérito mais-que-perfeito. Foi com ela que o aprendi. Megera! Estou a vê-la, com olhar impiedoso, a medir as suas rasas e meias rasas de milho, a queixar-se do marido displicente às freguesas do azeite, lambão, preguiçoso; e ele, sem dar cavaco, a regar as cebolas; e eu, atento já ao mundo, a sonhar com o futuro, a querer ser engenheiro, a magicar em tratores e searas de centeio, a semear estradas ondulantes de pão, como as que o velho António me descrevia nas suas historietas do Alentejo natal! As minhas férias ressoavam pelo lajedo à cata de raposa (e nunca o bom do homem quis armar uma esparrela, não fosse o animal cair às mãos erradas), subiam às parreiras para apanhar os aviões de papel transviados (voar era um sonho comum, só muito mais tarde me dei conta), desciam às salgadeiras para provar presunto, entravam nas capoeiras para surripiar ovos de codorniz e das fêmeas de garnisé, abriam os pipos para os lavar do sarro, fechavam os à puridade (debaixo de ordens precisas) armários e gavetas onde se ocultavam tabletes de chocolate amargo, chocolate proibido, francês, vigiado pela patroa até ficar esbranquiçado e incomestível, chocolate que o meu amigo fazia questão de salvar e de dividir comigo! Éramos, em suma, uma dupla! Ele, o mentor, Eu, o ajudante!

 ‒ Ó Tónio, rais te partira!

E o António esquivava-se, levando-me pelo braço até às leiras fofas do quintal, onde acabara de mergulhar os bolbos dos jacintos e das orquídeas. Porque as flores, como os convidados para uma festa, se preparavam então com tempo e com amor. E todo o ano os narcisos, as açucenas, os lírios, as violetas eram um espalhafato de perfume e de cor, atraindo os abelhões e os poetas porvindouros. Tanta memória se me alumia no correr das palavras!

Uma manhã fui parado à saída da porta pelo meu pai. Nesse dia não pude correr para casa do casal de lavradores. Nem nesse nem no outro, nem nos outros a seguir. Palavras de um léxico frio, incógnito, nasciam de todos os lados como ervas daninhas: vascular, cerebral, coma, máquina, defunto, velório, funeral, campa, cemitério. Esperei que o meu pai me deixasse correr de novo para casa do velhote, com a foice no coldre, os tamancos nos pés, livre e feliz como esses pardais comuns que nos escoltavam as caminhadas pelo meio dos campos e dos montes. Passou tempo, demasiado tempo, até que tornei a ver o António; e quando mo deixaram ver, ele tornara-se uma fotografia oval, sépia, encastoada numa lápide onde (havia descoberto já o milagre das letras) o nome ANTÓNIO BRÁS MARRAFA se fazia acompanhar de números e de belas frases odiosas, que não pude senão compreender e odiar!

A quinta tornou-se um baldio gigante. Mais tarde um loteamento. Depois um feio arrabalde de prédios brancos, que se tornaram sujos e degradados. A velha foi levada para o Porto, por uma filha igualmente áspera e azeda. Não soube rigorosamente mais nada acerca da sua existência. De resto, só as palavras a trazem, por defeito, por arrasto, como neste instante, em que fecho os olhos e me deixo embalar pelo suco pegajoso dos caramelos Penha, comprados num dos últimos mercados de café da minha terra. A quinta, que era um paraíso, desfez-se em múltiplos cacos, que não resisto a apanhar. Nenhuma tarefa, nenhuma missão me foi alguma vez dada com tanta dignidade: ser o ajudante, prolongar a memória, coser uns aos outros os trapos dessa vida passada, sorrir, mastigar ao mesmo tempo tantos rebuçados que seja preciso enfiar os dedos na boca para os libertar.

Vale muito a pena! O sol é morno, a luz forte (como no interior de um poema), a redoma bela e silenciosa, indiferente a tudo o mais, como num sonho, como numa história começada pelo «Era uma vez».

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Um passeio a pé

Fotografia de Michael Krahn

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Princípios de setembro ao cair da tarde: o outono enviou já os seus emissários. Para lá das portas das casas de pedra, desde o fundo dos lagares, emerge e vibra como uma corda de guitarra o aroma intenso do mosto. Embrulhamo-nos nele como num antigo provérbio: por onde os nossos passos vão, ele acompanha-nos num crescer de sombra. A inquietação voa ao redor da nossa boca. Depois, ultrapassadas as últimas casas, embrenhamo-nos num pequeno bosque. Como numa catedral, as copas das árvores erguem arcos quebrados e perfeitos. Conheço o nome de cada uma delas, o seu silêncio, o seu perfume, a voz que nelas respira profundamente desde as raízes. É-nos dado caminhar por uma vereda estreita, ao longo de um carreiro húmido repleto de folhas, onde vigorosas lesmas e insetos esquivos nos vigiam de passagem: sulcos e vergônteas subterrâneas exigem a nossa atenção; os próprios duendes nelas tropeçariam, se acaso aqui vivessem ainda. No alto dalguma faia, dalgum ulmeiro, protegidas pelo abraço das asas e pela folhagem espessa, acordam criaturas notívagas cujos pios em breve cairão sobre o firmamento iguais a bátegas de chuva. As névoas e a penumbra tornam os espaços mais breves e simultaneamente mais longos, dividem-nos em parcelas isoladas umas das outras e todas numa bolha de paz. O homem que se arrisque à solidão chega aqui tão perto de si próprio como dois seres que por fim se reencontram numa encruzilhada. Sempre imaginei que assim vagueasse, descalça e andrajosa, através do limbo, através da memória, através da terra, a minha bisavó tresloucada. No coração do labirinto é a própria alma a girar sem parar, frenética e viva como um buraco negro no meio de espiral de estrelas. «Quem sou?» pergunta a consciência rodopiante. Estamos agora noutra dimensão, noutro lugar, noutra era da nossa vida. Movemo-nos em silêncio pela casa às escuras. Os nossos passos são cautelosos e atentos, como se caminhássemos ao longo de uma floresta, seguindo o flanco musgoso de um antigo muro de pedras soltas. A algum lado nos levará esta viagem sem termo nem princípio ‒ cada pensamento segue um outro e todos se encaminham para uma clareira onde a luz os reconhece. A cada instante precisamos de vencer a resistência da nossa condição terrena: os pés enterram-se em pantanosas raízes familiares, tropeçam na memória, atormentam-se com o peso que neles se calça dos antepassados queridos e admoestadores: «A velhice bater-vos-á um dia à porta!». A voz que nos fala, não sabemos se vinda de fora, se uma erva nascendo-nos nas entranhas, abre passagem pela fissura das paredes, perfura, assemelha-se a um vapor tépido, mistura poderosa de remorso e de saudade. O tempo! Tão próximos deste abismo, somos criaturas excecionais, volumosas, puras como uma lágrima. Em breve estaremos na infância. A floresta encaminhou-nos para algo tão longínquo. Já os olhos se desacostumaram de olhar e veem apenas. A velhice bater-nos-á um dia à porta. Estamos nas calendas de setembro. A noite assenta mais cedo. O outono enviou os seus emissários.

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