As mãos

Foto de arquivo pessoal (2025)

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Um dos mais celebrados poemas de Herberto Helder principia assim: «Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado» («Aos Amigos», Poemacto, 1961). Nada se oferece tanto a nós ou nos oferece tão profundamente aos outros quanto as mãos. O seu toque adestra os sentimentos, acalenta os miseráveis, ampara os desfavorecidos, abre a forasteiros e errantes lugares de refúgio e de esperança, chama a si o diferente e o simétrico, firma pactos, constrói pontes, escreve imprescindíveis palavras a que o futuro dará tempo de germinação.

Na sua pele, na diversa composição dos dedos (como se a bendita diferença de tamanho e de função os tornasse entre si inextrincáveis criadores de vida), na beleza das unhas, nos pequenos cursos azuis de sangue até às vénulas e arteríolas mais ínfimas, nas linhas em que se dobram as suas falanges e se fecha a concha total dos seus ossos, existe uma ciência de fogo. A ciência de fogo de que falo é o dom que todos possuímos (e muitas vezes repudiamos) de amar, ainda que na sombra, mesmo que em silêncio, conquanto na pequena escala de quem faz nascer, não uma injúria, mas um poema, uma amizade no sítio do ódio, uma mão aberta e disponível em vez de um punho hostil.

Herberto termina o seu poema com versos proféticos: «– Temos um talento doloroso e obscuro. / Construímos um lugar de silêncio. / De paixão.» O mundo dos homens só poderá salvar-se compreendendo eles para que servem as suas mãos, amando os tristes que as têm abertas, com cinco dedos de cada lado.

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Crisântemos

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Fotografia de Sheila Brown

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CRISÂNTEMOS

Hoje, primeiro dia de novembro, regressei a esta parte da casa onde os últimos vasos coloridos alardeiam as suas flores. Gosto de beber o meu café aqui, no recanto que muitas vezes se enche de gerberas e orquídeas, de cravinas e de gladíolos, lírios e jarros amarelos, mas também de funcho, hortelã, salsa, limonetes, lúcia-lima, hipericão, coentros…

Há muito que não vinha. A terra silenciou-se quase por completo. Apenas uns quantos côvados insistem em existir nessa dimensão do belo, habitat de um sem-número de crisântemos brancos, vermelhos, alaranjados, lilases, azuis. Olho-os com a chávena nas mãos, quase comovido. Surpreende-me que neste mês tão baço uma tal flor viceje com júbilo no canteiro do silêncio. O escritor-cardeal José Tolentino Mendonça escreveu num poema intitulado «crisântemos tardios» que «A vida exige de ti ainda mais escuro / um revés, este passo em falso» / uma quantidade de perguntas (…) / alicerces arruinados / diante das soberbas formas».

Até hoje nunca me seduziu particularmente esta planta, cujo nome Gaspard Bauhin e depois dele Lineu quiseram que significasse à letra flor de ouro. Parece-me óbvia a injustiça. É uma flor bela, pese a discreta geometria da sua leve aparição. O vermelho dos crisântemos não fere como o vermelho das rosas, nem entontece como o vermelho dos gerânios. É somente um vislumbre de luz sem perfume, como se aos mortos fizesse uma vénia invisível. E aos vivos também.

01.11.2024

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