Torben Bjørnsen

Fotografia de Clem Onojeghuo

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Houve uma época na vida de Torben Bjørnsen em que as ações fluíam e os aplausos chegavam de toda a parte. O sucesso parecia ilimitado e ele impunha-o nos gestos e nas palavras, porque era um escritor excelente e mais exímio orador ainda. As iniciais TB reluziam em letreiros livrescos e nas publicações universitárias, mas sobretudo nos panfletos e placares que punham à entrada dos esgotadíssimos anfiteatros onde ele amiudamente comparecia.

Mas isso foi noutro tempo.

Sem explicação que possamos dar a quem nos lê, Torben Bjørnsen lançou-se num voo cruel de autoapagamento: recusou entrevistas, repeliu convites, esqueceu mecenas e admiradores, calafetou-se num mutismo e numa solidão perturbadores, como se de súbito tivesse precisado de transformar a pele empática da sua pessoa num couraçado de escamas e de puas. Desde há quase duas décadas que lhe não conhecemos novos escritos, nem sequer os breves poemas em prosa de que gostávamos tanto.

À celebridade seguiram-se o ressentimento e a vendeta.

Uma espécie de ódio ao homem tem-se instalado na Dinamarca, país que como todos os outros acumula nobres e podres criadores de opinião pública. Há quem assegure que Torben fugiu apressadamente à justiça, por culpa de um qualquer crime do espetro das aberrações sociais. Há quem justifique o seu silêncio com uma conversão religiosa profunda, daquelas que não se esperam em dias tão desossados de espiritualidade, como são os nossos. Há, igualmente, quem legitime esta mudança com uma simples palavra: cansaço.

Ida Kjær, uma amiga comum, contou-nos recentemente que o reencontra uma vez por ano.

Torben não vive na Gronelândia, nas Ilhas Faroé, nem sequer numa dessas ilhotas a caminho da Suécia. Vive onde sempre viveu, com o seu gato, com a sua coleção de presépios, com os seus cadernos intermináveis onde rabisca emendas e símbolos rúnicos. «Apenas mais velho, muito mais velho, cheio desse brilho infantil que nos leva, neste Dia de Santa Lúcia, em multidão para os canais iluminados. Torben estará lá, anónimo e feliz, partilhando e recebendo lussebullar. Verás!»

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O presépio

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Pintura de Antonio Allegri (Correggio)

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Esperava-se nesse Natal de 1521 um milagre. Todo o Danúbio fora infestado de turcos, depois que Solimão tomou a cidade de Belgrado e se dispunha agora a despedaçar o reino da Hungria. Os otomanos espezinhavam e matavam, mas pior do que isso exigiam o horroroso devsirme, o tributo sobre o sangue. As crianças eram carregadas sem pingo de piedade pelos oficiais estrangeiros e levadas em cestos, à garupa dos cavalos ou das mulas; convertiam-nas depois à religião inimiga, transformando-as em máquinas de guerra leais ao sultão, esquecidas de tudo quanto tinham sido e de tudo que poderiam ter sido. Assim Solimão, o Magnífico, punia os cristãos, roubando-lhe a terra dos antepassados e deixando que os antigos filhos se transformassem nos castigadores vindouros.

Na ilha de Čakljanac, na pequena igreja bem a meio das duas margens do rio, alguém se lembrara de repetir a tradição do santo italiano de Greccio. Construíram, portanto, junto ao altar uma cabana com toros e colmo e dispuseram as figuras de barro. Eram figuras tão reais que a comoção se apoderou dos crentes e do padre. Rezava-se com lágrimas suplicantes para que os soldados do sultão não cumprissem o odioso imposto, e por isso as mães apertavam os filhos e ecoavam mais alto as palavras do pregador.                                                    

Da cidade de Nándorfehérvár tinha partido uma guarnição. E foi em muito má hora que ali chegou, nessa noite pura em que toda a aldeia se reunia para celebrar o nascimento do salvador da humanidade. Os brutais janízaros irromperam pelo templo e fizeram cumprir a determinação do califa e imperador, retirando-os pela força (erguendo os sabres, arreganhando os dentes, cuspindo impropérios) os rapazes que deveriam tornar-se, eles próprios, a futura guarda do sultão.

Conta-se que nessa noite, desse teatro de barro, madeira e palha, desapareceu misteriosamente para nunca ser encontrada a figura do Menino Jesus. Que todos as figuras adquiriram a feição pungente de um velório e que os próprios anjos tapavam o rosto com as mãos castíssimas que deveriam erguer-se em solene devoção.

Este presépio é, ainda, o mais bizarro do mundo.

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