Crónica de um domingo de outono

Yvette Depaepe
Fotografia de Yvette Depaepe

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Foi bom ter vindo.

É sempre bom chegar a esta praia, desagrilhoar-me do carro, seguir longamente pela marginal, pedir nesta e em nenhuma outra casa um café tirado, bebê-lo às escondidas do mar, deixar-me em paz, como um desses áceres ou plátanos da anterior avenida, com a sensação de que sou um derrotado mas um herói, cansado mas digno, silencioso mas cheiinho de palavras (às quais dou ordem para se absterem, enquanto o café aquece), descontente mas satisfeito, sem pressa mas ansioso por regressar ao cheiro forte da salsugem. Regressar é sempre bom, ótimo, revigorante.

«Deseja mais alguma coisa?»

Desejo, sim. Em primeiro lugar, libertar-me da gente estúpida (é impressão minha, ou a gente estúpida vem sempre morar para o pé da nossa porta?). Em segundo lugar, prender-me definitivamente aos gestos de excelência, às pessoas maravilhosas que os sabem interpretar, como essa garota que me não sai da cabeça, cuja história me repetiram há dias.

«Olhe, professor, então não é que um desses meninos com trissomia se apaixonou por ela! Todos a fazerem troça no recreio e ele a chorar. Então, a garota foi ter com o menino, limpou-lhe as lágrimas, abraçou-o, deu-lhe a mão e levou-o…»

Gosto de vir também por esta razão. Para estar comigo, para pôr estas narrativas na ordem (a nossa cabeça é um caderno caótico), para descortinar lógicas submersas nas máscaras que as coisas vestem todos os dias.

«Aqui tem o seu troco, senhor…»

Gosto da sensação do frio, da brisa veemente que me faz inchar o casaco de náilon e me enche o rosto com salpicos de espuma. Gosto destes prédios à retaguarda, calados, inofensivos, como molduras de vinhetas de banda-desenhada. Gosto destas palmeiras baloiçando, baloiçando agora e sempre que aqui estou, fazendo-me sentir em território amigo, mesmo se o outono obscureceu já demasiadamente a paisagem.

«De modo que a rapariguinha, esta mesma de que estamos a falar, teve um acidente na sexta-feira à noite. Um horror…»

Os ténis têm, é incrível, o seu modo automático de me guiar, de me levar sem que os sinta. Nem dou pelos semáforos deixados para trás, do paredão e dos pescadores solitários, do farol, das rugas de água verde acinzentadas (além quase negras), que crescem e se desfazem no molhe, pelas gaivotas que me vistoriam com o seu movimento circular, pelas folhas de jornal com restos de castanhas assadas que civilizadamente algum transeunte deixou de presente ao mundo.

«A coitadinha tirou carta há tão pouco tempo. O carro ficou debaixo de um camião, todo desfeito, professor! Morreu logo ali! Uma rapariguinha tão boa, tão educada… Um horror!»

Nem damos conta.

As palavras atam-se-nos com perícia. Por mais que as expulsemos, elas têm um modo muito seu de voltar. E nunca vêm sós. Trazem imagens, memórias, cenas inverosímeis. Como este magote que se acotovela do lado de fora da janela da mercearia, onde o senhor da funerária cola o fúnebre papel debruado de preto, com a sua cruz, com a foto, com o nome da rapariguinha bonita, com as informações imprescindíveis, com a dor da família enlutada.

«Sempre lhe digo, professor: vão os melhores e os filhos da mãe ficam, nunca lhes acontece nada… Passam sempre entre os pingos da chuva… Não percebo!»

Não demora a chuva.

Gosto deste lugar, do modo como a cabeça se me enche aqui de vazio. Nem damos conta de como a cabeça precisa tanto do vazio, tanto do silêncio, tanto da sombra, tanto de se apagar como se apaga às vezes o azul do mar debaixo de nuvens tão carregadas de dor como estas nuvens aqui!

«Tenho muita pena deste rapazinho deficiente, nem imagina! Ainda não percebeu bem o que sucedeu à amiga…»

É sempre bom caminhar sem destino, o casaco mais apertado, a tarde levando-me para muito longe (nunca sei para vou nestas tardes em que me vejo sem âncora), o frio lavando-me, a cabeça cada vez mais leve, os ténis voando (em breve estarei noutra dimensão), o mar sempre ao lado, o mar correndo quem sabe, às tantas, dentro de mim.

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Lembro-me de tudo

Fotografia de Örvar Atli Þorgeirsson

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A praia esvaziava-se até à melancólica reunião das gaivotas. Era então uma profusão de sulcos em forma de cunha e gritos selvagens. O ronco do mar, com o ir vir das ondas, desfazia-se num som borbulhante de espuma e cansaço, como se também o mar arquejasse e pedisse a noite. O vento erguia nuvens de poeira e tornava-se cada vez mais forte e frio, fazendo oscilar as bandeiras das marcas de gelados e as tolhas coloridas, ao longe, nas varandas dos prédios. Era essa a hora amada. Um pouco antes do sol-pôr, na travessia final do dia para a noite, quando podia caminhar praticamente só pelo areal e sentir os pulmões inchar com a mescla de elementos contrários, húmidos e enxutos, vindos das entranhas do oceano e das dunas áridas, onde rizomas resistiam e abrigavam um sem-número de ervas aromáticas.

Da planta dos pés às circunvoluções do cérebro, todo o meu ser habitava ali e ali se deixava habitar pelo tempo e o espaço. Às vezes a brisa fazia enfunar o casaco de malha e o capuz parecia tenso, como a vela de um navio. Não raro, a respiração do sargaço fazia-me recuar até à infância mais remota, até antes das minhas primeiras memórias, aquietando-me num pensamento infindável de paz e bem-estar. Era como se tivesse sempre pertencido a esse instante e tudo antes não tivesse passado de um desvio involuntário. Eu era aquela ali!

Caminhava primeiro para norte e depois em sentido oposto. O calção arrepiava-se com os salpicos de alguma onda mais veemente, álgida, cansada. E depois com os salpicos quentes de alguma represa pueril, deixada para trás, no seu tortuoso desenho de canais e torres de areia molhada e onde permaneciam agora algum caranguejo ou alguma estrela tresmalhados e sem vida.

Foi assim que nos conhecemos. Julgo que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. O primeiro vislumbre aconteceu numa dessas evasões de agosto, quando me deixava guiar pelos cheiros e pelo recorte azul acinzentado das montanhas galegas.  Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. Não sei qual das duas reparou primeiro na outra. Nem como chegámos à palavrosa descoberta das coisas comuns. Tudo singelo e doce, como numa canção. Sem sobressaltos. Sem a urgência de um reencontro, de um nome, de um perfume. Tudo crepuscular e delicado, como blandícia de uma voz ou de uma brisa.

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim que nos conhecemos. Saía do meu casamento. Devorada pela incompreensão, adendo devagar, esboroada pela dor e pelas traições, pelo nojo… Caminhava sempre com os olhos enregelados, como se um vidro maldito os tivesse aprisionado e subjugado. Caminhava a essa hora, em que o dia e a noite dão as mãos e se despedem e nos pedem uma derradeira prova de coragem. Dizias amiúde:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

Foi assim que nos conhecemos. Até que eu própria descobri o meu amor por ti. Quando tive a certeza de que talvez pudesse não voltar a ver-te e me queimou uma sensação precoce de perda.

‒ Não quero que partas!

E tu sorriste. E o teu sorriso era um lugar dentro da paisagem, onde, como num pingo de âmbar, se deixava antever o futuro, selado e transparente, irremediavelmente perto e intocável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que cada instante vivido contigo era agora um acumular de memória. E eu sabia que aquele primeiro vislumbre se parecia eternizar, mais vivo do que tudo o que vivera.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu revia o teu vestido salmão, a tua pele morena, os teus pés descalços, o teu olhar penetrante, meigo, inquiridor, faiscando como um pequenino carvão indecifrável.

‒ Lembras-te de quando nos conhecemos?

E eu sabia que partirias primeiro, que te velaria numa mágoa sem fim, que regressaria a este areal, que caminharia só, nesta hora de abandono, em que uma espécie de espuma gélida se segrega do ventre rumoroso do mar.

Lembro-me de tudo. Das noites que se seguiram. Dos rostos sombrios sobre nós. Dos paredões de ódio contra o nosso amor proibido. Das incertezas e dos choros. Das noites que se seguiram. Da solidão que é maior quando ousámos enfrentá-la. Da praia vazia. Das nuvens ofegantes e dolorosas, carregadas de grãos de areia. Dos anos que vivemos recompreendendo tudo. Da felicidade inesperada que nos abriu, qual gazua omnipotente, o sentido de todas as coisas. Lembro-me de tudo.

‒ Amor e morte andam sempre por perto. Como a terra e o mar. Como o dia e a noite…

Lembro-me de tudo. Das palavras que dizias, vindas de não sei que país inabitável. De que premonição terrível. De que sabedoria tua, temível, temida…

Foi assim que nos conhecemos.

E quando soube que amar-te era possível, deixaste-me. Aos poucos. Primeiro, no cimento intransponível de uma casa onde me não deixaram entrar. Depois, nas paredes brancas de um hospital, onde me aceitavam, fugaz e criminosa, como um gato. Porque era proibido o nosso amor, e eu soube que era possível amar-te.

Lembro-me de tudo. De saber então, quando aqui partilhávamos o lusco-fusco, que um dia, passassem os anos mais depressa ou mais devagar, este lugar me serviria de refúgio. De saber então, quando a felicidade crescia e me curava as lentas feridas de um outro tempo, que um dia regressaria aqui, como regressam todos os que amam aos lugares onde descobriram o amor. Lembro-me de tudo!

‒ Olá!

‒ Olá!

Sorrias. O teu sorriso era, ele próprio, um lugar dentro da paisagem. Foi assim. É sempre assim. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Tudo muito simples, espontâneo, quase sem história. E tu dizias, dizias muitas vezes, e eu queria que o dissesses:

‒ A primeira coisa que amei em ti foi os teus olhos… Tão tristes…

E eu sabia (sempre o soube, desde a primeira vez que nos vimos) que o destino nos faria aproximar de uma ou de outra maneira. Porque o amor nos escolhe e não o contrário. Mesmo contra rostos sombrios. Mesmo obrigando-nos a quebrar paredões de ódio e de betão. Mesmo depois da morte.

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