«Em Nome da Luz» ou uma Poética do Silêncio

Em Nome da Luz (poesia de João Ricardo Lopes
Crédito fotográfico: União de Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova (Gondomar)

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Nenhuma palavra é mais obsidiantemente procurada na obra de João Ricardo Lopes do que aquela que escreve silêncio. Em todos os seus livros, não excluindo os de ficção, ela (re)ocorre investida do peso, do poder, do prestígio de um vocábulo-fétiche (como o próprio autor reconhece [1]), em torno do qual se estrutura uma poética de recusa, cisão e reconstrução do mundo, a partir da visão minimalista que a si mesmo e aos outros impõe.

No seu último volume de poemas, Em Nome da Luz (2022), a palavra-conceito silêncio é convocada em onze das quarenta composições do livro. Significativamente, como o penitente que pratica um ato de ablução, como o neófito que encontra a sua paz, como o caminhante que descortina um sentido para a sua existência, como o criador que define uma fórmula, o poeta anota:

EM LOUVOR DO SILÊNCIO
quando precisas de silêncio,
lavas as mãos muitas vezes,
aqueces sem pressa uma chávena de café,
lês os haicais de Bashô
o silêncio, como os caminhos procurados
entre as cidades, não é absolutamente fiável –
é uma adoração apenas, uma labareda,
onde arde o teu amor
e às vezes, sem querer,
um poema [2]

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Há aqui a verbalização – e recordo apenas o grande mestre Ruy Belo – de um ensinamento que vem confirmar que “Nenhum grande poeta terá deixado de sentir a sedução do silêncio”, porquanto “É-se poeta em exercício, não tanto pelo que se diz como pelo que subtilmente se indica ficar por dizer” [3]. Clarifica-se nestes versos, com efeito, não apenas um intuito purificador, do poeta que deseja desprender-se da sujidade (“lavas as mãos muitas vezes”), mas também – consumada a purificação – o desejo de (re)unir-se a rotinas simples despoletadoras do ato criativo, como sejam o preparar uma chávena de café, o ler os haikus de Bashô, o nutrir-se do fascínio – leia-se “labareda” – que o contacto com as coisas íntimas e despidas torna possível.

Esta grande introspeção que o silêncio traduz para João Ricardo Lopes, sinónima de catarse, de ascese, vem já embrionariamente plasmada em obras anteriores, particularmente no magnífico Eutrapelia (2021). Nele, no poema “Duomo, Milão”, ecoam com leveza espantosa os gestos que o peregrino, o asceta, o homo silens escrevem num esforço de supressão de si mesmos, num empenhamento para o vazio interior e para a busca de redenção:

DUOMO, MILÃO
as primeiras impressões são a pedra talhada,
a luz periclitante nos vitrais
depois os joelhos tocam a madeira
e as mãos tocam o rosto
a oração segregada devagar
num fio de voz
invade a rocha até ao último dos nossos pecados
o silêncio é total.
através das naves e das colunas, ele atinge
o extremo do templo
e é puro
pertencemos a outra era,
as impressões derradeiras são já distantes,
como alguém chamando de dentro de um sonho
ou chamando de outro mundo [4]

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De que se se pode salvar, ou sobreviver, pela catarse sabemo-lo desde os gregos. A força dramática das palavras tem, a par da beleza (rudeza) lírica das suas imagens, constituído uma das conquistas mais sublimes da literatura. No caso particular da poesia de João Ricardo Lopes, poeta que conheço desde a sua inclusão na terceira e última edição da antologia Anos 90 e Agora (2005), tende esta catarse a confundir-se com fuga à realidade, ou antes com uma feroz resistência à realidade, através do alheamento e da busca de solidão, através da escolha de (dir-se-ia preferência por) pormenores dessa realidade que propendem em última instância a anulá-la: falo da realidade que o poeta decompõe e recompõe em elementos simples, insignificâncias, bagatelas, detalhes que apenas o silêncio e a atenção autorizam a conhecer, aquilo a que Jean-Luc Nancy designa por “misérias literárias” [5] e que conferem à sua escrita um ímpeto (por vezes enumerativo) absolutamente encantador.

ESTA MANHÃ O SILÊNCIO
esta manhã o silêncio subiu pelas paredes e pelas asnas,
trepou as travincas, as teias altas, as cérceas geladas
e atravessou a pedra, o cimento, as fissuras, o próprio ar
sou agora toda a minha vida, o meu destino
e a casa estremeceu
e as palavras – ferro congelado –
doeram nas mãos [6]

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O inusitado fundo imagético que decorre das mãos deste outrora novíssimo leva-me a recordar o agrado com que, na malograda Bulhosa, acolhi o seu Contra o Esquecimento das Mãos (2002), quando compelido a estudar a nova geração de poetas, li versos deste jaez:

de refracção em refracção afunda-se
o pensamento nos linhos da casa
é branca a tarde
na alma garimpam-se as impuridades [7]

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Ou:

durante o intermezzo
cumprimos o possível
das enxúndias, do bodum
dos lodos nos limpámos
até sermos desta transparência de água [8]

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Recordo, a propósito, uma conversa com Jorge Reis-Sá, que deste poeta me propôs também a leitura do seu primeiro livro, premiado pela Associação de Escritores Portugueses, em 2001. Nele, um curto poemário intitulado A Pedra Que Chora Como Palavras, surgem já – em alicerce – as temáticas que o tempo viria a permitir enovelar e desenvolver. Por exemplo, o apelo (magnetizante) da metapoesia. Por exemplo, o exercício cinematográfico dos cenários onde se faz retratar (autobiográfica ou fictivamente) a voz que se ergue das / se esconde nas paredes translúcidas do poema. Por exemplo, a musicalidade e o ritmo sincopado dos versos, quase sempre curtos e lapidares. Por exemplo, a minudência visual, o olho veemente que absorve as nuances de um anoitecer. Por exemplo, o apuramento da metáfora, muitas vezes insólita, acutilante, desarvorada. Por exemplo, em conclusão, o poder reparador do silêncio – do silêncio de que vimos falando – e que representa bem a tensão permanente entre equilíbrio e desequilíbrio de que fala Rosa Maria Martelo [9].

no outono, quando se oxidam
as folhas,
parece-se mais nítido e
perturbador o brilho dos poetas
com os cigarros no casaco
e um bilhete de comboio para parte incerta
anotamos brevemente na pele da mão
que um dia, se voltarmos,
será apenas por este pouco silêncio (…) [10]

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Estarei, porventura, a desviar-me do ponto nevrálgico em que gostaria de fixar a atenção. E esse ponto consiste na admissão de que habitam a poesia do autor de Em Nome da Luz – insuficientemente conhecida, escassamente divulgada – apelos sucessivos a uma prática diária de limpeza, de decantação, de precisão, de higienização, insinuada mais ou menos explicitamente em poemas inúmeros onde o eu voluntariamente renuncia aos luxos literários para se comprazer com a dignidade do mínimo, mínimo esse que, paradoxalmente, transporta o máximo do ethos poético. Assim o exprime, por exemplo, no belíssimo penúltimo poema do seu último livro.

HIGIENE DIÁRIA
coisas de que um homem precisa:
dos doze girassóis de van Gogh,
dos quatro Evangelhos,
de sabão rosa [11]

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Sublinho este apontamento. Sublinho-o, visto que me parece notório que a poesia deste autor tem evoluído no sentido de um pendor sincrético, que confunde progressivamente mais obra e autor, deixando perceber que a poesia não é para si uma mera arte de versos (como a metapoesia sugere), mas uma apologia da vida eremita, um manifesto pessoalíssimo de cosmificação [12], um caminho salvífico do sujeito pelo meio das veredas do abismo: nada lhe importa tanto como a curta vida do poema, como o poder habitá-lo seja de que forma for, ainda que possa, como tão bem o escreveu Gastão Cruz, “Tratar-se de um trabalho destinado ao malogro” [13], ainda que esse pouco possa albergar tudo quanto foi capaz de aquilatar na vida.

Será, porventura, esse o fito desta poética do silêncio de João Ricardo Lopes: incumbir ao escrito a missão de se anular a si mesmo, de se nadificar [14] no sentido em que Jean-Paul Sartre o aduz, de criar (num processo antecipado de autoapagamento) o milagre da vida e, nele, muito em particular, o parto do poema, mais ou menos como quem efemeramente desenha ou constrói sobre um areal e existe apenas porque existiu. Esse processo, assumido cada vez mais como única via, abre a porta a toda uma ordem do caos: o poeta é aquele que descobre por acaso, aquele que desvenda por acidente, aquele que encontra algo buscando outra coisa.

SERENDIPISMO
pensava em Fernando Pessoa,
em ti,
na quantidade de amor que nos exigem as palavras,
no nevoeiro sobre o Zambeze,
nas trovoadas de maio,
na nervura rigorosa de cada folha
encontra-se a perfeição procurando outra coisa,
o vazio, por exemplo
hoje relembrei os abetos de Cremona.
senti de novo a dureza do frio e o pavor do vento
percutindo na floresta
o vazio é também uma forma de serendipismo:
buscas o poema e achá-lo-ás [15]

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Considero interessantíssimo este poema de Em Nome da Luz, título recebedor há poucos meses do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres. Todo o volume pede olhos avisados. Quem acompanha o percurso poético deste autor saberá reconhecer que ele se vem impondo um pouco em contramão (ou em contramaré), não apenas pelo destaque que confere à metáfora [16], nem pelo reaproveitamento lexical de termos já em franco desuso (ou até mesmo esquecidos), nem pelo quase monacal voto de isolamento a que o escritor se entregou (razão justificadora por si só do seu quase anonimato), como sobretudo pelo quieto movimento de compor o nada, de amar o insignificante, de acreditar piamente no inútil de todo o ruído do mundo.

DA SABEDORIA
alimenta-te da chuva,
de tubérculos ocasionais, da fruta
silvestre,
alimenta-te das paisagens,
do silêncio mais
rigoroso
a poesia, na sua essência,
é eremita.
tudo o mais é excessivo
e inútil.
tudo o mais é vento,
veneno que passa [17]

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Valerá a pena lembrar que tudo o que é “excessivo” e “inútil”, “vento” ou “veneno que passa” não cabe na poesia (“inutilia truncat” prescreveria Horácio”), tão-pouco na alma de um homem limpo, profundamente cônscio da exiguidade da vida (não sou eu quem o diz, mas o Eclesiastes).

Em suma, não existe melhor entendimento do que possa valer um livro, um poema, um verso, do que o sentimento de retidão nele defendido até ao “silêncio mais rigoroso”. Signifique esse silêncio – meça-o o leitor – o muito que significar.

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Bahia, 08.06.2023 / Paulo José Miranda

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[1] Cf. entrevista de João Ricardo Lopes à revista Novos Livros – “João Ricardo Lopes: “Dormir uma noite inteira e acordar com vontade de recomeçar a vida”, disponível em linha em https://shorturl.at/beky8 (consultado em 2023-06-03).
[2] Em Nome da Luz, Elefante Editores, s.l., 2022, p. 43.
[3] Ruy Belo, «Poesia e Crítica de Poesia», Na Senda da Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 61.
[4] Eutrapelia, Editora Labirinto, Fafe, 2021, p. 14.
[5] Jean-Luc Nancy, «Compter avec la poésie», Resistance de la Poésie, William Blake & CO, s.l., 2004, p. 24 : « Si la poésie insiste et résiste – elle résiste à tout, en quelque sorte, et c’est peut-être aussi pourquoi les poètes font souvent «figure de peintres du dimanche», comme vous dites avec raison : l’insistance de la poésie va jusq’aux formes les plus humbles, les plus pauvres, les plus démunies, jusq’à des véritables misères littéraires, jusq’au goût le plus sucré ou le plus sot pour des bouillies à demi cadencées d’ésotérisme et de sentimentalité (il y là comme une clochardisation), mais elle va jusque-là, si bas, parce-qu’elle insiste, elle demande quelque chose, et quelque chose que, je le crois vraiment, on ne peut pas réduire aux retombées petites-bourgeoises du pire romantisme (…) ».
[6] Op. Cit. (2022), p. 30.
[7] Contra o Esquecimento das Mãos, Editora Labirinto, Fafe, 2002, p. 46.
[8] Ibidem, p. 48.
[9] Rosa Maria Martelo, «Poesia e des-equilíbrios», A Forma Informe, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p. 9: “Se a poesia pressupõe ou procura o equilíbrio, é porque se joga no limiar de o perder e num permanente confronto com o desequilíbrio. (…) Faz parte do movimento construtivo da poesia um certo desencontro do poema com ele mesmo, isto é, o desajuste das suas próprias estruturas e a possibilidade de fazer «oscilar» (o termo é de Luiza Neto Jorge) os pressupostos que lhe serviram de ponto de partida.”
[10] A Pedra Que Chora Como Palavras, Editora Labirinto, Fafe, 2001, p. 35.
[11] Op. Cit. (2022), p. 46.
[12] O termo é de Luís Miguel Nava, que o diz assim: “Todo o acto poético é uma cosmificação. Cosmificação que se opera a partir do caos a que dá lugar a destruição da língua. Não por acaso o acto poético se chama de criação e a etimologia aproxima a poesia do fazer.” Cf. «Artaud: Tric Trac du Ciel – Uma visão de conjunto», Ensaios Reunidos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 40.
[13] Gastão Cruz, As Leis do Caos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, p. 35.
[14] No primeiro capítulo de O Ser e o Nada, Sartre anota: “(…) é preciso, primeiramente, reconhecer que não podemos conceder ao nada a propriedade de «se nadificar». Já que, ainda que o verbo «nadificar» tenha sido concebido para tirar ao nada até a mínima aparência do ser, é preciso confessar que somente o ser se pode nadificar, já que, seja de que modo for, para se nadificar é preciso ser. Ora, o nada não é. Se podemos falar dele é porque possui tão somente uma aparência de ser, um ser emprestado (…). Por outro lado, o ser pelo qual o nada vem ao mundo não pode produzir o nada mantendo-se indiferente a essa produção, como a causa estoica produzindo o seu efeito sem se alterar. (…)” Cf. «A Origem da Negação», O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Edições 70, Lisboa, 2021, pp. 77-78.
[15] Op. Cit. (2022), p. 17.
[16] Bastará levar em linha de conta o que Rosa Maria Martelo assinalou, quando diz que “Creio que uma das consequências do empobrecimento da condição ontológica da poesia passa pela secundarização do papel da metáfora e pela construção de um modo de expressão essencialmente alegórico.” Cf. «veladas transparências (o olhar do alegorista), Vidro do Mesmo Vidro – Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, Campo das Letras, Porto, 2007, pp. 86-87.
[17] Op. Cit. (2022), p. 44.

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Gosto do silêncio

Antje Woolum
Fotografia de Antje Woolum

 

«Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio. Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto, que se desfaz na espuma do texto.»
Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 (Lisboa, Assírio & Alvim)

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Gosto do silêncio. Gosto tanto do silêncio que aprendi a recusar quase todas as formas de convívio social, incluindo algumas do amor. A arte de me escapulir. A arte de me esgueirar. De contornar a obrigação do alarido. De ter de condescender com o telemóvel indiscreto. De ter de aceitar como um destino a arruaça com a sua música ordinária, a imitação do mau folclore brasileiro, o karaoke deprimente e o interminável festival de verão, os apitos na estrada, a mota que acelera todos os dias na nossa rua às duas e meia da manhã, a televisão aos gritos no apartamento ao lado, o fanfarrão da construção civil, a piada pornográfica, a fulana de voz nasalada, insuportável, o casal que discute a toda a hora, o puto lagrimento… De ter de tolerar todos quantos, a coberto de uma suposta celebração, sem pejo, multiplicam, amplificam, semeiam o ruído. De ter de mostrar boa cara para o altifalante e o megafone. De ter de curtir o palco e a coluna gigante. De me agradar com o fogo de artifício e a summer party, o chinfrim do tambor e, mais tarde, da bateria às mãos do filho do vizinho. De me deliciar com as noites de aniversário e a televisão nos dias de dérbi. De ter de ignorar os infindáveis duches e os tacões de salto alto sobre o teto, as descargas de água e a grita sexual durante a madrugada…

Gosto do silêncio. Do silêncio que me afasta dos lugares e das pessoas da confusão. Do silêncio que me faz caminhar por entre campos, ao longo de várzeas e veredas estreitas, onde o trissar da passarada e o assobio dos insetos, o rumorejo da água nascente e o ciciar do vento tornam cada instante mais íntimo e integrador de mim em mim próprio, purificador, apaziguador, poderoso! Gosto do silêncio. Do silêncio que é uma forma de linguagem, leve e subtil como as coisas que não víamos e vemos de um momento para o outro. O magnífico rendilhado da teia de aranha, na manhã de inverno, na esquina do celeiro, pejado de gotas de orvalho. O ondular enxuto da cizânia, quando as tardes de primavera derrotam definitivamente as chuvas de abril e abrem o coração mais empedernido para o cheiro absolutamente maravilhoso da terra. A ramagem consoladora das figueiras, nos dias inclementes de agosto, junto ao tanque de pedra, quando o calor parece paralisar toda a paisagem e envolvê-la (com os seus pardais de bico aberto) numa sonolência sem fim.

Gosto do silêncio. Do silêncio que lava os areais sofridos, minutos antes do pôr do sol, e nos penetra os poros e os ossos e nos torna da mesma matéria vaporosa do oceano e do horizonte frio. Do silêncio que sopra para lá das dunas e para cá dos lábios calados. Do silêncio que se encontra e nos faz encontrar a sós com os pensamentos mais inacessíveis, como se por ele brotasse a consciência e os pontos cruéis da agulha que nos cicatriza as feridas mais dolorosas.

Com o passar dos anos, venho-me tornando num viciado em utopias. O silêncio é, talvez, uma das últimas (malogradas) utopias do nosso tempo. Desaprende-se, desaprendeu-se rapidamente, a virtude de escutar, de perscrutar, de fechar os olhos e querer a paz. De exigir respeito pelo sossego e pela quietude. De protestar contra todas as formas que atentam contra o silêncio. Como tão bem escreveu Manuel Hermínio Monteiro (numa crónica publicada na revista K, em janeiro de 1992, e que viria a ser incluída em Urzes), «Andam a destruir o silêncio»! Andam a destruí-lo criminosamente, fazendo morta, cadavérica, putrefacta, a letra da lei que deveria proteger-nos de nós mesmos. Andam a destruí-lo, como o fazem com as nossas florestas, com os nossos mares, com a nossa sensibilidade, com os nossos sonhos e ilusões, com a nossa intimidade. Andam a destruí-lo, individual e industrialmente, desde os brinquedos irritantes que fabricam para as crianças aos dispositivos eletrónicos que apitam, avisam, repercutem, tremem, zumbem, estertoram, buzinam, chafurdam de som ao nosso redor a toda a hora…

Manuel Hermínio Monteiro, no texto atrás citado, pergunta: «Num lugarejo ouvem-se os seus respectivos altifalantes e os dos lugarejos vizinhos. Com tal arraial, quem ousa hoje em dia meditar?! elevar a alma a Deus…? e ter a triste sina de levar com uma pancada sonora nos tímpanos das emoções?» Será essa a questão? Reproduzir o ruído para esconder o homem de deus? Para calar angústias inconfessáveis? Para esquecer as origens telúricas, simples, quiçá primitivas?

Andam a destruir o silêncio. Última, desesperada ponte, creio, para o melhor de nós próprios. Como maravilhosamente ensinam Bashô e a meditação budista. Como maravilhosamente ensinam a música e a poesia. Como maravilhosamente ensinam o vento e as noites de solidão deliberada. Andam a destruí-lo. E ninguém parece importar-se muito com isso!

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