Duas visões

Fotografia de Luciano Caturegli

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Não resta muito a um homem senão falar das cisas. No desespero, as palavras são tiras de pano embebidas em água fresca sobre uma testa a arder em febre.

Noam Halliday desabafou com um amigo sobre a sua intenção de morrer cedo. Possuía o grande horror de envelhecer sozinho, de ficar como um pássaro desvalido, preso ao seu próprio corpo e através de longos anos de definhamento físico, sem que mãos e olhos bondosos fossem capazes de o ajudar e – mais ainda – de tornar a sua existência suportável até ao fim.

– Não serei um monte de estrume a enojar todos os que forem obrigados a limpar-me o cu e a porem-me morfina nas veias. Não serei um estorvo, Tom.

Justamente Tom Fleetwood era de opinião de que se vivesse a toda a brida, com o pé no acelerador, sem olhar jamais para trás ou para os lados, apenas em frente, entusiasticamente.

A sua experiência de ex-piloto da força aérea tornara-o blindado aos efeitos mesquinhos da visão colateral, porque – mobilis in mobile – o nosso alvo se obtém nas vertigens, em voo picado, em piruetas doidivanas com a adrenalina no máximo.

– Vive um dia de cada vez enão penses tanto, Noam! Se perdes um segundo a pesar, estás feito. És um monte de sucata ardida antes de te tornares, como dizes, um monte de estrume. Não te deixes dominar, homem. Liberta-te!

Mas Noam pensava. A vida não se lhe parecia nada com uma experiência de voo. Nem sequer com uma corrida de cavalos. A vida é uma coisa de caracóis, um fio de baba segregado devagar, como se não déssemos por si e, de súbito, zás, um pé em cima, esborrachando-nos até ficarmos uma nódoa no chão.

Julgamos interessante este diálogo. Não decidimos, porém, o nosso apoio a qualquer uma das duas partes na porfia, ou – se preferirem – em colóquio amigo, em divagar alegórico, em contaminar singelo de horizontes e opiniões.

Utopia

Fotografia de Al Elmes

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Rafael Hitlodeu apanhava o metro das seis horas. Era o primeiro estágio da sua jornada diária. Quando caía num dos bancos laterais e se agarrava à estrutura metálica, sentia os olhos a arder. A luz artificial arruinava nele o velho prazer de viajar cedo e de se encontrar com o mar e com as árvores da floresta no exato instante em que o sol eclodia finalmente do seu sono.

O antigo marinheiro saía invariavelmente na mesma estação, no extremo sul da cidade. A mochila pesava-lhe cada vez mais, tal como lhe pesavam cada vez mais as pernas e a ginástica do pensamento. Mas a imagem do oceano tomado além pelo tom de fogo do céu, o fosforejar da espuma no sopé da falésia, o avistamento dos navios ao largo, carregados de silêncio, faziam valer o sacrifício.

À medida que os seus passos o aproximavam da floresta e do arfar pelágico, sob a forte impregnação dos pinheiros e da salsugem, a sua memória inchava e parecia deleitar-se com a constatação de que – como um ser vivo – se reintegrava no movimento das minúsculas esferas, das formas, dos astros, abandonando a pele ferida e morta e recobrindo-se de factos novos, de um frio renovado, de uma face de novo pura e pulsante.

Além era a ilha. Hitlodeu amava o luminoso contorno da enseada, o verde dos seus prados, do alto granito branco das suas torres sineiras. Ali era Utopia. E ele, à distância de uma légua marítima, avistava o palácio do monarca, o endireitamento das ruas, a beleza das pequenas casas construídas pelos habitantes mais dóceis, mais civilizados, mais justos que conhecera nos quinhentos e cinquenta anos da sua existência na terra.

Quanto mais perto parecia tocar-lhes, mais longínquos se afiguravam os azimutes e os costumes e as gentes insulares. Podia embarcar num ferry e ir. Mas o medo era muito. O pavor de uma deceção já não seria suportável. Na sua memória, sempre rejuvenescida, aquela ilha era o deslumbramento que o mantinha vivo.

O mundo envelhecera demais, demasiado depressa, despudoradamente. Novas ostentações de poder tinham tomado o lugar deixado pelas antigas ostentações. Guerras atrozes haviam incinerado a paz das bibliotecas e quebrado o busto dos pensadores. O otimismo e a dignidade humanos defendidos por Cristo, Confúcio, Rumi, Buda, Pico della Mirandola, Erasmo ou Thomas Moro foram-se tornando o otimismo voraz e a indignidade vil, horripilante, execrável da vozearia das repúblicas, dos senhores do dinheiro, da retórica fácil dos paladinos da filosofia hodierna.

«Quantas vezes nos deixamos enganar pelo fascínio dos sonhos incompreensíveis». Hitlodeu era um velho marinheiro português apaixonado pelo mundo. Utopia, mesmo à sua frente, seria porventura um tempo distinto num espaço diferente. Mas o velho viver dos homens jamais perdoará o que jamais aceitou e jamais aceitaria o que nunca compreendeu.
E quem nos garante que ele, Rafael Hitlodeu, reconhecesse ainda (se outra vez lhe abrissem de lá os grossos portões de ferro) o sonho formidável de uma ilha em forma de paraíso? Ou pelo menos de semente?

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Pausa

Héleboro, Helleborus, Natal, Christmas
Fotografia de Annie Spratt

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Por fim a pausa.

Reconhecemos uma pausa quando trocamos o café pela poesia grega, quando trocamos a poesia grega pelo jardim.

Herman de Coninck, poeta e jornalista belga de que cujo sentido de humor gosto bastante, escreveu que num texto maravilhoso, dedicado à mãe, que «poesia tem a ver com a duração» e que é preciso «deixar que as coisas ganhem bolor / deixar que as uvas se transformem em álcool». Dito de outro modo, é bom chegar ao final de um lancil, olhar para trás, compreender o tamanho da nossa jornada e ficar quieto.

Trocar o ruído da cafetaria pelo longo tropel dos cavalos e pelo estrugir das armas em Homero constitui um excelente exercício de quietude, mas exíguo se comparado com a luminosa perfeição das heléboros ou do azevinho nestes dias de Natal.

De repente, tudo em volta se parece excedentário e absurdo. Pausar é regressar à justa medida da nossa alma, deter o passo seguinte (o passo em falso) e compreender como Coninck, no já aludido poema, «Tu és o relógio: o tempo passa / mas tu ficas».

21.12.2024

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Cinzas

Nastya Kkvokka
Fotografia de Nastya Kkvokka

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Gosto de tocar as cinzas, de sentir o leve esboroar da sua forma frágil erguendo às narinas um olor distante de madeira consumida pelo fogo e dias de chuva e janelas altas sobre um horto de infância. Gosto de as varrer do ferro fundido da salamandra, ou do fogão, de usar um guardanapo humedecido com farrapos dessa matéria insubstancial para polir os vidros e até os metais. Gosto da limpeza que me fica quando dela liberto o espaço e à sucede saturação o ar limpo da sua ausência.

Gosto de olhar as minhas mãos e as minhas unhas manchadas, bordejadas, sujas pelo pó daquilo que existiu e se entrega ao nada sem protesto.

Desconheço texto mais belo sobre elas do que o que escreveu Robert Walser, integrado num livrinho magnífico, intitulado Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos. Apetece quase ler esse texto como uma oração, como o delírio de um eremita, como uma provocação silenciosa àqueles que (como nós) vivemos inteiriçados de orgulho e confiança nas coisas materiais. Eis um excerto: «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais instável, mais fraco e mais pobre do que as cinzas? Dificilmente. Existe algo que poderia ser mais indulgente e tolerante do que elas? Muito pouco provável. A cinza não tem caráter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo.»

Quantas vezes nos sentimos como essa cinza de Walser. E quão especial podemos ser!

13.11.2024

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Livros

Ler_Jilbert_Ebrahimi
Fotografia de Jilbert Ebrahimi

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Todos nós guardamos um lugar indefetível na biblioteca pessoal, um espaço onde habitam livros que descobrimos fora das sugestões académicas, por mero acaso, por sorte, por instinto, livros aos quais regressamos muitas vezes e em diferentíssimas ocasiões, livros que nos defendem da mediocridade e do miserabilismo do tempo, que ostentam o nome de um autor e uma literatura tornados nossos, livros que como uma paisagem vulcânica de Lanzarote, ou como os acordes de Joaquín Rodrigo no Concerto de Aranjuez, ou como os cromáticos feéricos de Jan Vermeer passaram a pertencer-nos pelo efeito de um amor incondicional e inconcessível.

Esses livros podem ser de poesia ou um romance, podem conter áridos núcleos científicos ou filosóficos, podem recuar a uma ilha grega do século VIII a. C. ou fazer-nos avançar na direção de um futuro irreconhecivelmente robotizado, como os de Aldous Huxley. Voltamos a eles na condição de refugiados e em fuga. Procuramos escapar a uma catástrofe. Assim, a porta da salvação fechamo-la por dentro, acendemos a luz bendita de um candeeiro e, ainda que a altas horas, pomo-nos em marcha, buscando num caminho não mapeado o reencontro com a inteligência, com a sensibilidade, com a subtileza.

Nestes dias atrozes (hoje quase ignoramos que atroz decorre do latino atrōx, ōcis, adjetivo que integra significados como cruel, ameaçador, violento, teimoso ou indomável), ler, ler esse filão em particular de livros bons, que amamos, pode aguentar-nos. Quero dizer, pode manter-nos os olhos abertos e a cabeça limpa, uns e outra sem argueiros, mascarras ou teias bolorentas.

09.11.2024

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A Grande Onda

Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, c. 1830
Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, c. 1830

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A GRANDE ONDA

Muitas vezes ocorre sermos surpreendidos por uma espécie de fadiga que pulveriza tudo aquilo de que gostamos e que parece ceifar pela raiz o tronco das nossas emoções. Sentimo-nos cambalear por dentro, ébrios de uma paralisia implacável, sonâmbulos de uma morta temporária, derribados por aquilo a que os anciãos chamam de fastio, ou os poetas de acídia, aquilo a os psiquiatras chamam de astenia ou vulgar, indiferenciadamente, desgosto, depressão, tédio.

Quando somos tragados por essa onda – e é impossível não evocar aqui aquela que Hokusai pintou, engolindo as pobres barcaças dos pescadores de Kanagawa – resta-nos muito pouco, praticamente nada, como se perdurássemos numa existência de cinzas e de silêncio.

Acontece, no entanto, sobrarem na grande viagem dos dias e dos anos alguns farrapos de milagres. Depois da fadiga, do marasmo, da paralisia, sobrevém sempre uma época de brilhantes aberturas da alma. Reacende-se nela, tal como uma chama que se aviva nos carvões mal apagados de uma lareira, o sentido da existência, o fio das palavras, o lampejo da alegria. É o tempo mais fascinante da nossa vida, aquele em que se opera a redescoberta do Eu e da Fé.

04.11.2024

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Comunicação

Ronald Plett
Fotografia de Ronald Plett

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Por vezes, ainda de olhos endurecidos pelo sono, venho ao pátio e quedo-me alguns minutos a contemplar. Vejo as linhas triplas de alta tensão, a fuselagem em movimento de um avião pelo meio delas, o rendilhado às vezes esfiapado, translúcido, das teias de aranha nas cornijas do telhado, as estradas subindo e descendo, curvando, nos sítios que foram e são toda a minha vida.

Pergunto-me se estas linhas não serão elas também uma forma de linguagem, de escrita, tal como o sol, as ervas, ou o próprio vento. Não serão uma forma de escrita cuja decifração depende em grande medida da argúcia dos olhos e do sentido da ocasião em que mergulham na realidade e a veem de outro modo?

A poeta polaca Wisława Szymborska diz-nos que «Duas vezes nada acontece / nem acontecerá. É assim sendo, / nascemos sem prática / e sem rotina vamos morrendo». É uma variante do adágio popular «ninguém nasce ensinado». As formas de comunicação do mundo são um pouco como o falso silêncio do cosmo: depende sobretudo do tipo de telescópio com que o perscrutamos. A nossa inocência cessa no instante em que descobrimos um modo de ler o que se encontra para lá de nós.

03.11.2024

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