Era na penumbra que António se esconsava. As sombras – digamo-lo – dão-se bem com a miséria e com a vergonha dos doentes. Foi, portanto, numa das entranhas do casebre que o ancião escutou o chamar da enfermeira.
– Boa tarde, Sr. Paupério!
A voz, rouca de solidão, tardou-lhe, vinha embargada, num fio de água a nascer em fundo de poço.
– Boas tardes!
António tinha a barba por fazer. Rala e com restos secos da sopa, compunha-lhe um ar mais pobre e uma expressão mais triste.
– Então? Como estamos hoje?
António Paupério, velho mineiro, pai de cinco rapazes e de outras tantas moças, não sabia como estava. Hoje era uma palavra tão odiosa quanto as outras, tão pungente como as que lhe dinamitavam o peito.
– Estamos bem, graça a Deus!
E as lágrimas começavam. Era árduo senti-las, dificílimo represá-las, impossível pôr-lhes uma escora no sítio onde batiam mais em pedra.
Um homem acostumado à força da picareta e aos puxões brutais das rodas do sarilho, afeiçoado ao fundo da terra e ao cheiro da pólvora, domado pela treva e pelos acessos da silicose, não entendia como as putas das lágrimas o deitavam assim abaixo.
A enfermeira sorria e falava-lhe com voz mansa, com a pele ternurenta das mãos.
Ele, António Paupério – palavra de honra –, não compreendia porque sufocava.
Duas vezes por semana vinha Nicolau Balestra a cambalear ao longo da linha do comboio, muito bêbedo, muito zangado com o governo, muito capaz de tirar o cinto das calças e de começar a espalhar amor pela casa, vergastando indiferentemente um dos dois rapazes ou uma das quatro mocinhas bonitas de tranças loiras, que a mulher parira e que em pouco ou em nada se pareciam com o pai.
O braço firme de Rosalina Pires é que o travava sempre. Um mulherão esta Pires, uma mulher de pelo na venta, uma desenrascada.
Na aldeia todos conheciam o modo de vida desta gente. No dia de Nicolau receber a jorna, havia azeite, bacalhau seco, arroz na despensa. A seguir recompunha-se a miséria, que só não era maior porque Rosalina a seu modo encontrava meios de ir buscar o dinheiro que Balestra esbanjava na bodega com os quartilhos, com amásias, com o jogo da sueca.
Nicolau era pedreiro-alvenel. Afora isso não era coisa nenhuma. Rosalina por sua conta tinha a lavoira doméstica, o gado, a prole, a casa. E não sendo pequeno o afã, quantas ocasiões tivera ela de abandonar tudo e de meter-se noite cerrada pela beira do caminho de ferro e ir buscar o homem à taberna.
Todos conheciam o proceder da matrona. Entrava e quedava-se em silêncio à porta, segurando um grosso cacete nas mãos pendidas. Nicolau assim que a via, ou alertado pelos parceiros da jogatina, agitava-se profundamente:
– Bem, meus senhores, esta é a última… É para acabar…
E saía não muito depois da tasca, de cabeça baixa, com ar de quem adivinhava o pior, não sem antes ela lhe atirar sem piedade ou pejo à cara:
– Tens-nas certinhas!
Nicolau e Rosalina Pires habitavam uma casa antiga de pedra, bastante rústica e sem conforto que se achasse, de dois andares. No primeiro ficava a loja: ocupavam-na inteiramente as cortes, as coelheiras, os toros de eucalipto empilhados, o giestal seco, o lugar húmido das pipas e das alfaias agrícolas. Era aí que estava pendurado o jugo e levantada a carroça que a junta de bois devia puxar. Em cima era os cómodos, a cozinha, a saleta, os três quartinhos. Havia também uma retrete. Tudo aninhado e esquálido, pequeno demais, sujo demais, frágil demais.
Comiam o caldo à vez, que a mesa perto da lareira era para quatro e não para oito. E rezavam o terço ao lume, um terço mastigado e triste, a maior das noites recitado pelo pai de família. A menos que Rosalina tivesse pressa. Nesse caso, era ela quem tomava as contas do rosário e impunha a disciplina às ave-marias e às santa-marias. O marido já em ceroulas e a meter-se entre os cobertores da cama, ouvia-a em sobressalto:
– Rais parta. Tenho de ir lá abaixo apanho penso para a bicharada!
– Agora?
– Tu o que queres, homem? É um instante e fica feito!
Nicolau Balestra gostava pouco daqueles esquecimentos de Rosalina. Ela ia e às vezes demorava-se. Ia e regressava com o rosto afogueado, como se tivesse estado a malhar na eira. Não raro, Balestra adormecia mesmo e acordava num repente, como se acometido pelo susto de uma alma penada ou pelo gemido penetrante de um gato com cio.
– Ó mulher, demoras? – berrava Balestra de cima para baixo.
– Já vou, homem! Estou a apanhar para hoje e para amanhã! – resmungava a Pires de baixo para cima.
Em Póvoa de Santa Cristina todos conheciam aquela canseira. Dificilmente se ignora numa aldeia a balança torta dos machos fanfarrões ou a conduta torcida das fêmeas fanchonas.
Havia alturas em que a altercação em casa destes dois se ateava como uma fogueira alta. As moças fugiam de casa aos gritos e os rapazitos ficavam no cancelo à espreita, tão apavorados quanto as irmãs.
– Ai… ai… ai – chegava a planger-se nas paredes de dentro. Era uma voz lastimosa, de pessoa surrada, em apuros.
Foi num serão desses que os militares da guarda republicana apareceram. Apareceram mansamente, a pé, com os pesados capotes e a baioneta embainhada, com a curiosidade a estalar.
– Ó Balestra! Ó da casa!
Os ais interromperam-se logo, colhidos pela surpresa.
– Ó Balestra, podemos subir?
Nicolau assomou à porta da cozinha enfumarada, a esfregar as mãos, cheio de solicitude. O que desejavam os senhores guardas? Claro que lhes assinava o visto da ronda? Oferecia-lhes até um copo de vinho e, se os senhores guardas esperassem, ainda comiam bolo com sardinhas e um bocado de pão, que se estava a cozer e não tardava a ir para a mesa.
O segundo sargento Martins declinava. Que assinasse e eles iam à sua vida, ainda a patrulha tinha muito quilómetro pela frente. Nicolau voltou-se para a mulher e declarou brutal:
– Assina aqui tu, anda lá… Senão continuas a comer, sua filha da …!
Ela, que já havia lavado as mãos, secava-as entretanto no avental. Assinou. Depois, num tom nada amigável, deu a ordem:
– Enche aqui dois copinhos de aguardente a estes homens.
Balestra foi buscá-los ao armarinho. Nas costas do seu colete de flanela, desenhada várias vezes a torto e a direito, ainda cheia de farinha peganhenta, via-se a pá do forno.
O Balestra insistia com cara de mau:
– Só assim, minha filha da …! Só assim tu aprendes…!
E serviu a aguardente aos dois da ronda noturna, muito senhor da situação e com as costas quentes.