Todos nós guardamos um lugar indefetível na biblioteca pessoal, um espaço onde habitam livros que descobrimos fora das sugestões académicas, por mero acaso, por sorte, por instinto, livros aos quais regressamos muitas vezes e em diferentíssimas ocasiões, livros que nos defendem da mediocridade e do miserabilismo do tempo, que ostentam o nome de um autor e uma literatura tornados nossos, livros que como uma paisagem vulcânica de Lanzarote, ou como os acordes de Joaquín Rodrigo no Concerto de Aranjuez, ou como os cromáticos feéricos de Jan Vermeer passaram a pertencer-nos pelo efeito de um amor incondicional e inconcessível.
Esses livros podem ser de poesia ou um romance, podem conter áridos núcleos científicos ou filosóficos, podem recuar a uma ilha grega do século VIII a. C. ou fazer-nos avançar na direção de um futuro irreconhecivelmente robotizado, como os de Aldous Huxley. Voltamos a eles na condição de refugiados e em fuga. Procuramos escapar a uma catástrofe. Assim, a porta da salvação fechamo-la por dentro, acendemos a luz bendita de um candeeiro e, ainda que a altas horas, pomo-nos em marcha, buscando num caminho não mapeado o reencontro com a inteligência, com a sensibilidade, com a subtileza.
Nestes dias atrozes (hoje quase ignoramos que atroz decorre do latino atrōx, ōcis, adjetivo que integra significados como cruel, ameaçador, violento, teimoso ou indomável), ler, ler esse filão em particular de livros bons, que amamos, pode aguentar-nos. Quero dizer, pode manter-nos os olhos abertos e a cabeça limpa, uns e outra sem argueiros, mascarras ou teias bolorentas.
Ponho o mar à minha frente e decido um grande silêncio. Não há maior bem do que calar todas as ressonâncias de que o vento é capaz na nossa boca e por dentro dos nossos olhos e nos confins da cabeça. Elidir um a um todos os sepultuosos ruídos em que morremos quando proferimos alguma palavra, esmaecer até ao nada uma atrás de outra todas as imagens que nos governam desde a infância, apagar o poder das teias cerebrais como quem se enlouquece com uma tesoura entre os dedos. O mar vem aos poucos, apodera-se dos rochedos em agulha e do cheiro seco do areal, transpõe a pérgula e a linha dos metrosíderos, coabita o espaço e o tempo que é, sem que o entendamos completamente como, um adormecimento, uma fragilidade, a própria ideia de deus soprando de novo nas impérvias narinas de Adão.
Só assim renasço. Só assim, atingindo a chã existência de mim mesmo, vergando-me até rastejar e ser argila e cair – repito – no grande silêncio de uma morte. É preciso morrer. Ponho o mar à minha frente e morro. Muitas vezes morri nesta vida. Foram deus e o mar, a mistura de ambos, o sopro que num é o outro, sei lá, foram deus e o mar quem me trouxe de volta muitas vezes – repito – nesta vida.
A escola primária ficava perto de um pinhal. Nos dias de calor, no verão, escutava-se o rachar das pinhas entre o ziziar ruidoso dos insetos, sentia-se o olor da caruma a entrar nas portas e pelos respiradouros.
«Estamos quase nas férias» pensavam os garotos, pensavam-no um instante apenas, no intervalo dos ditados e do grande silêncio que a vara do professor conduzia, como uma batuta compridíssima.
Desde sempre amou esse som e esse perfume. É por causa deles que o apicultor Giorgos Nicodemou se senta aqui, com a sua paz, observando o mar Egeu ao fundo, cismando na meninice, descobrindo no horror do silêncio o estrépito acalentador das pinhas que cedem à canícula, respirando (como um acordeão aberto) este perfume alcalino, puro e limpo da floresta.
«Quando morrer, quero ser sepultado aqui, no meio destas árvores, sem uma lápide, sem um brevíssimo sinal de que existi. O corpo há de tragá-lo o chão, a alma há de o espaço levá-la para onde vão as almas: para o nada.»
O professor era severo, impiedoso, cruel até. No último dia de aulas, saía-se da sala a correr, galgava-se a escadaria, atingia-se o recreio com a máxima felicidade, aos gritos, quase em histeria.
É assim que o velho Giorgos quer morrer. Com a vertigem de uma libertação há muito desejada, e, de repente, inevitável, não menos do que feliz…
«Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?» perguntaste. Sabias que responderia com uma negativa. «Não me lembro», «Não faço a mínima ideia», «Meu caro, não sei dizer». Adquiriste, sem que isso me penalizasse por aí além, a expressão triunfante de um retor. «Mas, como podes tu escrever sobre coisas que não vives?», «Que eventualmente não conheces?», «Que desperdiças?».
E dando um jeito ao corpo, corrigindo os joelhos contra o balcão, escorropichando a aguardente, começaste a explicar.
«O nascer do sol. Não é o que pensas. Não é só a luz que vem. Não, meu amigo, o nascer do sol é muito mais do que um show-off da poesia e dos romances cor-de-rosa. Não é só a luz que acende o firmamento. Nem a hora em que os amantes se despedem. Nem a promessa do amor eterno. Nem o instante de quase silêncio em que as palavras se limpam com o ácido do remorso.»
Nada tinhas contra os poetas, fizeste saber. Eles falam da alba, do dilúculo, da aurora dos dedos rosados. «Isso é muito bonito, lá isso é».
«O nascer do sol é um milagre a que me habituei. Levantar cedo para cuidar de uma pequena quinta, como a minha, é mais do que suficiente para aprender os segredos desse armistício entre o dia e a noite. Tudo paira numa espécie de transe. Como quando nos é dada a inesperada chance de começarmos tudo de novo.»
Repliquei que isso era poesia. Talvez a excelente última frase de um romance cor-de-rosa. Juntaste os lábios. Como se me quisesses mandar às favas. O que quer que pensasses vinha cada vez de mais longe.
«O cheiro da terra, por exemplo, é maravilhoso… Um sem-número de ervas e de árvores espreguiçando-se até no lusco-fusco até ao cosmos. Nunca as plantas cheiram tão bem como à noitinha ou de manhãzinha… De um momento para o outro, é a passarada numa algazarra louca sobre os telhados e os jardins… Diz-me tu se conheces alegria mais genuína do que a dos pássaros… O nascer do sol é muito mais do que se pensa… Muito mais do que o lento despertar de cada coisa… De cada roda que volta a chiar na rua, de cada janela que se abre, de cada cabeça entorpecida que espreita por ela… É como se em cada em cada objeto, em cada animal, em cada pessoa, houvesse subitamente um riscar de fósforo… Como se todos e tudo tomássemos parte na convulsão do tempo e do espaço… Não sei explicar bem, pá!…»
Bebias o terceiro ou o quarto copo. Bebias demais. E, no entanto, ao contrário de mim, as palavras pareciam soltar-se-te e com elas os pensamentos. Devia estar tão sério que me deste uma cotovelada.
«O teu mal é andares distraído». Devo ter feito uma careta. Julgo tê-la desenhado. Fi-la de certeza. Prosseguiste.
«Estou convencido que, tal como os lugares se transfiguram e deixam de pertencer-nos, também os nossos gestos precisam de ser reaprendidos… No que me diz respeito, sou agora incapaz de escrever uma frase. Perco-me no meio das palavras. Isto apesar de admirar o efeito que têm sobre nós. A minha vénia, a quem o tem, o talento de as vergar…»
E sorriste.
«Volto ao princípio… Tu escreves… Mas, e desculpe lá a observação, viverás o suficiente para escrever?»
Não era má a aguardente de medronho. Dei um gole mais. Acabei o segundo copo. Reparei que a taberna estava a encher-se de clientes. Pescadores. Lavradores. Operários das fábricas ao redor. Senti fome. Cansaço. Irritação. Não respondi.
«A vida, essa coisa que nos passa por dentro das veias e ao mesmo tempo sobre a pele, num leve torpor de energia, dor, prazer, sei lá…, a vida exige-nos esse ritual…»
O bom cheiro do mar, como a vaga memória de um tempo a que não fui capaz de aceder, tornou-se veemente. Vinha pela porta um aroma de salsugem, limos, sargaço, de iodo, de rocha e areia húmida, de pó, de combustível varreram-me. Estava frio.
«Faz-me o favor de prometer que vais passar a assistir ao nascer do sol… Ao menos uma vez por mês… Ao menos uma vez em cada estação… Verás como todas as coisas passarão a fazer sentido…»
Saí. Estuguei o passo. O cais ficava ali perto. Nuvens de um cinzento azul, ou púrpura, talvez alaranjadas, de um leve rosado, cintavam o horizonte. O sol, como o combinado, não tardaria.