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«Pimenta no cu dos outros é doce» respondeu com a costumada contundência Venceslau Rodrigues.
E tendo-o dito, encarou o chefe, um indivíduo que fora homem e sorria agora petizmente, falsamente, mansamente, um tipo que se pretendera grande e luzia agora numa vermelhez apequenadora e terrível, um nédio que enganara três partes do mundo e que agora segurava nas partes extremadas da calva – hemisfericamente ridículos e ralos – tufos de uma pilosidade suja, situada sobre um crânio balofo de onde lhe saíam, por hábito, frases ocas, melódicas, melosas, idiotas.
Venceslau detestava-o. Detestava-o como se detesta um traste. Como se detesta um vendido. Um pulha. Aquele chefe era uma puta política.
«Não conte comigo. Não entrarei nesse seu jogo, Mascarenhas. Não mesmo!»
O corado recompunha o sorriso, recebia a negação com regozijo íntimo, numa mistura antecipada de ressentimento vingável e de vingança exemplar.
Escutava o vogal como o escutavam os outros todos na mesa em forma de ovo, na mesa que era a sua cabeça cintilante e ovular e quase lisa.
«Meu caro, Venceslau: o Partido (pronunciava partido com uma entoação magnífica, com uma oclusão artificialíssima da letra pê, de modo a torná-la mais explosiva), como bem sabe, nunca prescindiu do direito de cada um opinar ou de manifestar as suas convicções, ou de proferir as suas opiniões, ou de discorrer sobre as suas opções. Sempre foi apanágio deste Partido ouvir, debater, conciliar. Aprovo muito esse seu impulsivo verbal.»
O nédio olhava em volta para reclamar a unanimidade.
«O Venceslau faz-se vincar pelo apelo do coração, o que muito louvo. Este Partido, mau grado as apreciações da comunicação social e de alguma oposição, é um Partido permeável à multiplicidade de tendências e juízos…»
Na mesa comprida, oval, cintilante, sem pó, repleta de excelentes canetas de aparo e de impecável papel, os outros rostos viam, ouviam e calavam com sossego e naturalidade. A questão extremava-se. Era uma divergência entre o vogal Venceslau Rodrigues e o presidente-chefe Pompílio Mascarenhas. Uma quezília quase pessoal.
Nestas ocasiões, deve imperar o máximo silêncio, o máximo mutismo, a máxima inexpressão. Quando muito, um rosto destes (que veem e ouvem e calam) aspirar o oxigénio com um pouco mais de veemência, pode arquear as sobrancelhas, principiar o que em princípio há de parecer uma tossidela. Mas sem certezas. E, por isso, o melhor nestas lutas é não tossicar, franzir o sobrolho, respirar.
«Conheço bem a pluralidade e a democracia deste partido.» redarguiu o outro. «O que o senhor pretende é criar uma caça às bruxas cá dentro. Quer expulsar os incómodos, ponto. Admita-o, Mascarenhas! Propõe uma revisãozinha estatutária, aperta a malha, às tantas acusa, depois persegue, por fim expulsa.»
Venceslau Rodrigues falava para o invisível. Na mesa comprida e oval e cintilante, sem pó, as suas palavras caíam num dos pratos da balança. No outro sopesava o sorriso maligno de Mascarenhas. O silêncio era o fiel, a travessão, o cutelo, o próprio ato de avaliar. A questão extremava-se. Era uma divergência.
Nestas coisas, a inexpressão é imperiosa. Leitor, nem um cocegar nas mãos, nem uma tremura nos olhos, nem um pio!
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