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«O homem eleva-se da terra com duas asas: a simplicidade e a pureza. A simplicidade deve estar na intenção, a pureza na afeição. A simplicidade procura Deus; a pureza toma dele posse e nele se compraz». Assim começa Thomas de Kempis o quarto capítulo do Segundo Livro da sua célebre Imitação de Cristo, obra mais conhecida na Cristandade, depois da Bíblia, e cuja leitura me parece hoje um revigorante desafio às mulheres e aos homens que ainda procuram compreender a luz e se não resignam à medíocre condição do ser medíocre.
Francisco, aliás Jorge Bergoglio, personifica o homem elevado da terra com as duas asas. Dificilmente se obterá outro testemunho que não o de pessoa humilde, servidora, surpreendente que foi, no modo como ao longo dos doze anos de missão pontifícia conduziu os destinos do Vaticano e renovou a Igreja Católica, reaproximando-a dos ideais de Cristo, que eram os de São Francisco, ou de Thomas de Kempis: amar o próximo, perdoar os pecadores, acolher os pobres, defender os fracos, incluir os ostracizados. Francisco, ou Jorge Bergoglio, lavou os pés a condenados, ministrou o sacramento da comunhão a divorciados, acarinhou mães solteiras, disse que a Igreja era de «Todos», olhou para dentro da comunidade, quis que se justiçasse as vítimas de pedofilia, renovou o cardinalato, exigiu limpeza nas palavras e nos atos, apontou o dedo aos poderosos hipócritas (que, a espaços, o visitaram), denunciou o massacre fratricida de Gaza ou na Ucrânia, posicionou-se em favor do planeta e das criaturas atacadas pela lupina ambição ou insensatez dos filhos do seu Deus: animais, florestas, embriões no ventre materno, (i)migrantes, etc., etc., etc.
A minha simpatia por este Papa, que supera largamente a que podia ter nutrido por qualquer outro, começou na escolha do nome Francisco. Cresceu em reação ao modo como, prescindindo do anel e da cruz de ouro, ou dos sapatos vermelhos da Prada do seu antecessor, como sem voz ornamental e intelectualizada, se entregou ao exercício de ser pastor dos povos, líder exemplar, homem corajoso e muitas vezes sozinho (e não me refiro à comovente imagem que dele nos na Basílica de São Pedro em 2020), pugnando por uma fé íntegra, verdadeira e disponível para aceitar o outro. Como certeiramente nota José Tolentino Mendonça em O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, «na sua espantosa leveza, e sem alardes, a amizade dialoga com coisas muito fundas dentro de nós: faz-nos reviver o primeiro amor com que fomos (ou não fomos) amados; toca as nossas feridas, mesmo as que não conseguimos verbalizar; transmite-nos confiança para sermos o que somos e como somos; estimula-nos a progredir vida fora». Julgo que este Papa era, na sua essência, um amigo de todos nós. E, por isso, a dor tão coletiva, tão universal, tão unívoca que hoje sentimos.
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