Elegia, ou quase

Escritor Português, João Ricardo Lopes
Fotografia de Ales Krivec

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(Mateus, 20:1-16)

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Na minha frente a paisagem mais significativa: vinhas desenhadas com precisão, um pequeno palacete entre elas, ao fundo – na orla do espaço – um bosque. Árvores outoniças, bordos amarelos e alaranjados, carvalhos, uma linha de choupos quase despidos a tocar – à distância – o branco, árvores verdes ainda, castanhas, outras atirando ao azul, como os pinheiros nórdicos que alguém aí plantou e me dão agora a sensação de um ar frio vindo de muito longe.

Saí mais cedo do almoço. Não suporto almoços. Os dias de almoço atrasam-me. Estar parado aqui, no meio da viagem, não. As pessoas fazem-me desperdiçar horas, obrigam-me a gostar delas, a preferir o seu bom gosto, a admirar escravamente o seu blush, o seu batom vermelho a combinar com as unhas, o seu decote, a sua joia ostensiva, a sua juventude, a sua perfeição física.

É uma vinha enorme. Homens vêm e vão deslocando-se em tratores ou a pé, com ar de quem sabe cuidar e de como proceder com cada videira. Admiro sem limite a sua sabedoria. Sinto-me intimidado pelo desenvencilhar dos seus gestos, pelo orgulho discreto das suas mãos quando se servem da tesoura da poda. É como se dissessem não existe maior dignidade no ser humano do que a dignidade de trabalhar bem, com limpidez, tocando as velhas coisas com amor.

Detesto as coisas novas. A ciência do digital, a produção de conteúdos balofos, a beleza oca das pessoas falsas e falsadoras. Por isso me penalizam tanto estes encontros, as reuniões sem pontos de ordem, os convívios com gente que deixou de ser gente e se tornou um produto narcísico, hipócrita, corrigido pelos retoques estéticos e elevado à curva sinistra do snobismo.

– Quando casas, Ricardo?

Abandono os almoços – invariavelmente – no instante em que começam as perguntas. Pior do que os detalhes alheios são as perguntas. Hesita-se, duvida-se, responde-se às vezes. Mas as pessoas não escutam. As pessoas agora interrompem os discursos confessionais, porque são extremamente incapazes de não partilharem mais detalhes, mais conteúdos, mais informação cativante das suas existências-fitness.

Gosto de viajar com as janelas do carro abertas, a absorver os cheiros, o ar, as vozes que chegam de fora. Às tantas apanho na frente algo de que gosto e paro. Antes fumava, agora não. Agora limito-me a permanecer em silêncio, a colher com as pupilas, como o rinencéfalo, com a saliva aquilo que o acaso me traz. Este perfume da terra, por exemplo, esta impressão húmida dos musgos sobre os muros de pedra, estes vinhateiros afanados. Cortam os ramos secos e parecem falar sozinhos. Ou talvez conversem com as cepas. Avançam devagar pelos corredores do terreno e expurgam-nos, limpam-no dos excessos, cutilam a lenha pelas vergônteas certas. Depois carregam tudo e avançam um pouco mais. A vinha rejuvenesce.

O escritor José Tolentino Mendonça surge-me pelo meio dos fotogramas deste filme. A sua poesia cabe aqui com delicadeza, com humor, com pertinência. Talvez por ali, onde a neblina inçou de repente, vagueie Deus. Talvez por ali vagueie calado, com as mãos atrás das costas, distraindo-se um pouco do extremo sacrifício da sua solidão. Acredito que vagueie, decerto saturado da beleza e perfetibilidade dos seres que orbitam a maior parte do seu tempo.

– Quando é o casório, Ricardo?

E eu entendo que o Pai Celestial se queira talvez sentar ao meu lado no lugar do pendura, a observar comigo esse postal, a descansar do fastio e da insuportável sensação de que o tempo é simplesmente estúpido quando passa por nós e não nos leva consigo.

Os homens conduzem agora os tratores para outro pedaço da quinta. Invadem-me os ciúmes e uma certa tristeza. Dou uma volta à chave na ignição, o carro responde, despeço-me disto, de Deus, de mim. Esperam-me já noutra parte. Tenho de ir.

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Logótipo Oficial 2024

Crónica de um domingo de outono

Yvette Depaepe
Fotografia de Yvette Depaepe

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Foi bom ter vindo.

É sempre bom chegar a esta praia, desagrilhoar-me do carro, seguir longamente pela marginal, pedir nesta e em nenhuma outra casa um café tirado, bebê-lo às escondidas do mar, deixar-me em paz, como um desses áceres ou plátanos da anterior avenida, com a sensação de que sou um derrotado mas um herói, cansado mas digno, silencioso mas cheiinho de palavras (às quais dou ordem para se absterem, enquanto o café aquece), descontente mas satisfeito, sem pressa mas ansioso por regressar ao cheiro forte da salsugem. Regressar é sempre bom, ótimo, revigorante.

«Deseja mais alguma coisa?»

Desejo, sim. Em primeiro lugar, libertar-me da gente estúpida (é impressão minha, ou a gente estúpida vem sempre morar para o pé da nossa porta?). Em segundo lugar, prender-me definitivamente aos gestos de excelência, às pessoas maravilhosas que os sabem interpretar, como essa garota que me não sai da cabeça, cuja história me repetiram há dias.

«Olhe, professor, então não é que um desses meninos com trissomia se apaixonou por ela! Todos a fazerem troça no recreio e ele a chorar. Então, a garota foi ter com o menino, limpou-lhe as lágrimas, abraçou-o, deu-lhe a mão e levou-o…»

Gosto de vir também por esta razão. Para estar comigo, para pôr estas narrativas na ordem (a nossa cabeça é um caderno caótico), para descortinar lógicas submersas nas máscaras que as coisas vestem todos os dias.

«Aqui tem o seu troco, senhor…»

Gosto da sensação do frio, da brisa veemente que me faz inchar o casaco de náilon e me enche o rosto com salpicos de espuma. Gosto destes prédios à retaguarda, calados, inofensivos, como molduras de vinhetas de banda-desenhada. Gosto destas palmeiras baloiçando, baloiçando agora e sempre que aqui estou, fazendo-me sentir em território amigo, mesmo se o outono obscureceu já demasiadamente a paisagem.

«De modo que a rapariguinha, esta mesma de que estamos a falar, teve um acidente na sexta-feira à noite. Um horror…»

Os ténis têm, é incrível, o seu modo automático de me guiar, de me levar sem que os sinta. Nem dou pelos semáforos deixados para trás, do paredão e dos pescadores solitários, do farol, das rugas de água verde acinzentadas (além quase negras), que crescem e se desfazem no molhe, pelas gaivotas que me vistoriam com o seu movimento circular, pelas folhas de jornal com restos de castanhas assadas que civilizadamente algum transeunte deixou de presente ao mundo.

«A coitadinha tirou carta há tão pouco tempo. O carro ficou debaixo de um camião, todo desfeito, professor! Morreu logo ali! Uma rapariguinha tão boa, tão educada… Um horror!»

Nem damos conta.

As palavras atam-se-nos com perícia. Por mais que as expulsemos, elas têm um modo muito seu de voltar. E nunca vêm sós. Trazem imagens, memórias, cenas inverosímeis. Como este magote que se acotovela do lado de fora da janela da mercearia, onde o senhor da funerária cola o fúnebre papel debruado de preto, com a sua cruz, com a foto, com o nome da rapariguinha bonita, com as informações imprescindíveis, com a dor da família enlutada.

«Sempre lhe digo, professor: vão os melhores e os filhos da mãe ficam, nunca lhes acontece nada… Passam sempre entre os pingos da chuva… Não percebo!»

Não demora a chuva.

Gosto deste lugar, do modo como a cabeça se me enche aqui de vazio. Nem damos conta de como a cabeça precisa tanto do vazio, tanto do silêncio, tanto da sombra, tanto de se apagar como se apaga às vezes o azul do mar debaixo de nuvens tão carregadas de dor como estas nuvens aqui!

«Tenho muita pena deste rapazinho deficiente, nem imagina! Ainda não percebeu bem o que sucedeu à amiga…»

É sempre bom caminhar sem destino, o casaco mais apertado, a tarde levando-me para muito longe (nunca sei para vou nestas tardes em que me vejo sem âncora), o frio lavando-me, a cabeça cada vez mais leve, os ténis voando (em breve estarei noutra dimensão), o mar sempre ao lado, o mar correndo quem sabe, às tantas, dentro de mim.

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Um passeio a pé

Fotografia de Michael Krahn

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Princípios de setembro ao cair da tarde: o outono enviou já os seus emissários. Para lá das portas das casas de pedra, desde o fundo dos lagares, emerge e vibra como uma corda de guitarra o aroma intenso do mosto. Embrulhamo-nos nele como num antigo provérbio: por onde os nossos passos vão, ele acompanha-nos num crescer de sombra. A inquietação voa ao redor da nossa boca. Depois, ultrapassadas as últimas casas, embrenhamo-nos num pequeno bosque. Como numa catedral, as copas das árvores erguem arcos quebrados e perfeitos. Conheço o nome de cada uma delas, o seu silêncio, o seu perfume, a voz que nelas respira profundamente desde as raízes. É-nos dado caminhar por uma vereda estreita, ao longo de um carreiro húmido repleto de folhas, onde vigorosas lesmas e insetos esquivos nos vigiam de passagem: sulcos e vergônteas subterrâneas exigem a nossa atenção; os próprios duendes nelas tropeçariam, se acaso aqui vivessem ainda. No alto dalguma faia, dalgum ulmeiro, protegidas pelo abraço das asas e pela folhagem espessa, acordam criaturas notívagas cujos pios em breve cairão sobre o firmamento iguais a bátegas de chuva. As névoas e a penumbra tornam os espaços mais breves e simultaneamente mais longos, dividem-nos em parcelas isoladas umas das outras e todas numa bolha de paz. O homem que se arrisque à solidão chega aqui tão perto de si próprio como dois seres que por fim se reencontram numa encruzilhada. Sempre imaginei que assim vagueasse, descalça e andrajosa, através do limbo, através da memória, através da terra, a minha bisavó tresloucada. No coração do labirinto é a própria alma a girar sem parar, frenética e viva como um buraco negro no meio de espiral de estrelas. «Quem sou?» pergunta a consciência rodopiante. Estamos agora noutra dimensão, noutro lugar, noutra era da nossa vida. Movemo-nos em silêncio pela casa às escuras. Os nossos passos são cautelosos e atentos, como se caminhássemos ao longo de uma floresta, seguindo o flanco musgoso de um antigo muro de pedras soltas. A algum lado nos levará esta viagem sem termo nem princípio ‒ cada pensamento segue um outro e todos se encaminham para uma clareira onde a luz os reconhece. A cada instante precisamos de vencer a resistência da nossa condição terrena: os pés enterram-se em pantanosas raízes familiares, tropeçam na memória, atormentam-se com o peso que neles se calça dos antepassados queridos e admoestadores: «A velhice bater-vos-á um dia à porta!». A voz que nos fala, não sabemos se vinda de fora, se uma erva nascendo-nos nas entranhas, abre passagem pela fissura das paredes, perfura, assemelha-se a um vapor tépido, mistura poderosa de remorso e de saudade. O tempo! Tão próximos deste abismo, somos criaturas excecionais, volumosas, puras como uma lágrima. Em breve estaremos na infância. A floresta encaminhou-nos para algo tão longínquo. Já os olhos se desacostumaram de olhar e veem apenas. A velhice bater-nos-á um dia à porta. Estamos nas calendas de setembro. A noite assenta mais cedo. O outono enviou os seus emissários.

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