O diospireiro

Fotografia de Ernesto Scarponi

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Nessa Consoada não houve neve, apenas chuva e vento. À volta da lareira não foram postos os potes de ferro, nem se escutaram vozes concordantes, extasiadas e nostálgicas. A velha cozinha recebeu somente um hóspede. Viera para cumprir o voto: enquanto fosse vivo, ainda que por uma noite no ano, aquelas paredes sairiam da ténebra e do silêncio e seriam adoçadas pelo brasume e pela sombra cada vez mais tremelicante das suas mãos. Tinha esse dever.

Sobre a longa mesa de pinho abriu a garrafa, desembrulhou o jantar, sentiu o abandono garroteá-lo, mastigou sem gosto. Os talheres enferrujados da casa, a lareira mascarrada e mal desentupida, a ausência de cânticos, a falta do aroma da canela pareceram-lhe a parte significativa e incompreensível do seu destino. Era o último, tinha essa obrigação!

Estendeu ao comprido do soalho, paralelo ao lume, um saco-cama, deitou-se nele e ao cabo de muito tempo adormeceu. Quando horas mais tarde abriu as janelas, foi surpreendido pela luz lavada, veemente, puríssima da nova manhã. Havia rútilos e revérberos macios e dolorosos, que os olhos aceitavam e rechaçavam ao mesmo tempo.

Saiu então para o pátio, caminhou pelo horto, andou no meio das ervas e das árvores, seguindo os regatos e os trilhos da murta. O cheiro do verde era tão intenso que em mais do que uma ocasião se sentiu compelido a descer as pálpebras e a aspirar em longos haustos o que da terra invisivelmente se erguia. A dada altura parou a contemplar um diospireiro. Estava ainda carregado de frutos: velhos e encarquilhados dióspiros, repletos de bolor, iluminavam os ramos quase secos, dando-lhe uma cor de cobre e de fogo e uma feição amicíssima.

O homem espantou-se. Não podia entender como, ao invés de todos os outros em volta, aquele diospireiro não tivesse sido despojado pela intempérie ou pelos pássaros famintos. Comovia aquela visão do tempo miraculosamente adormecido. Com algum esforço de imaginação, o homem conseguiu ver o desenho e o amor das árvores incontáveis que nessa altura do ano as crianças decoram com enfeites, luzes e flocos de algodão. Sentiu então que não estava só, que nalguma parte deste ou do outro mundo o aconchegavam.

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O rei e o monge

Daniel Fleischhacker
Fotografia de Daniel Fleischhacker

Teodorico, o Rei tinha-o mandado chamar e ele foi. Três dias de jornada até perto da capital, até à praia onde o esperava um ror de gente. O desgrenhado eremita entrou no areal, trajando farrapos, segurando um longo cajado, sem um esgar de ansiedade, medo ou hesitação. À medida que avançava para o baldaquino ou tenda real abria-se à sua frente uma clareira de espaço e de silêncio. Por fim, João deteve-se diante do monarca.

Teodorico levantou-se impressionado e deu um pequeno passo na sua direção, mas o monge barbudo recuou um passo maior ainda. Depois, em modo de compasso, o monge escreveu com o cajado um círculo na areia. Ninguém poderia nele entrar, sob pena de extrema maldição e vergonha para a posteridade. O bispo enojou-se do cheiro e do aspeto dos seus andrajos, os nobres arregalaram os olhos, o povo sussurrou.

Teodorico sentou-se e disse:

– Bom homem, agradeço que tenhas vindo. Há muito que te procuro. Os meus batedores trouxeram a boa notícia de que vinhas. Sei da tua santidade, conto com ela para que me ilumines o pensamento!

Os guardas trouxeram então, atados e sujos, sem sinal da anterior opulência e de magnificência, o deposto Almostancir e seis dos seus filhos, califa e senhores das ricas províncias do sul, terras ímpias e infiéis, em cujos palácios se cultivava agora o hábito de lançar seguidores da religião de Cristo a covis de leões e de víboras.

Teodorico não sabia que destino dar a tais prisioneiros. Confundia-o o amor devido ao próximo e o ódio merecido a estes distantíssimos inimigos da fé. Dar-lhes a morte atentava contra os preceitos, deixá-los vivos contra a vitória dos seus exércitos e a segurança do seu império.

– Este homem, rei nascido e agora execrado, matou impiedosamente, com ódio absoluto, incontáveis dos nossos irmãos. Quis a mão de Deus que se fizesse justiça. Tu, o mais desapegado dos filhos de Deus, que escolheste as montanhas para refúgio de todos os perigos do mundo, dirás o que fazer com ele e com os seus descendentes!

O monge ouviu estas e todas as palavras de Teodorico.

– Escutei as palavras do nosso bispo (o bispo afetou uma vénia ao ser apontado pelo rei), escutei as palavras dos meus generais (os chefes militares endireitaram mais o tronco), escutei os homens mais sensatos de entre os mesteirais e camponeses (os representantes do povo ergueram orgulhosamente o rosto), mas em boa verdade o digo: Deus por ti falará!

Viviam-se tempos agónicos, apocalípticos. Nunca como então, no virar do milénio, se desejara com tal veemência o ouro, em lado nenhum como ali se desprezava tanto o sagrado exercício de Paulo de Tebas, Antão ou Macário, santos anacoretas. Era preciso que as Escriturasvoltassem a ser lidas, era preciso que as palavras de Jesus voltassem a soar, nesse terrível século de lutas, limpas e desembestadas, como soaram outrora nas praias da Judeia.

O eremita olhou o rei nos olhos, profundamente, demoradamente, afetivamente. Depois sentou-se no meio do círculo, fechou os olhos, cruzou as pernas, colocou sobre elas o bordão e permaneceu imóvel, ausente, sem uma palavra, durante muito tempo. Teodorico, inquieto, escutava os cochichos crescentes dos conselheiros, o murmurar da multidão, o abespinhar das ondas, o grito selvagem das gaivotas.

Por fim, cansado, impaciente, cheio de tédio, perguntou.

– Então?

O asceta abriu os olhos de novo, levantou-se, fitou o céu e, brandindo o cajado, declarou:

– Porque me perguntas, Teodorico, o que tu próprio sabes já?

O corpo dos prisioneiros pendia, exausto, macerado, sem esperança. Teodorico, o Rei voltou a inquirir.

– Como podes tu saber o que eu sei?

– Foste ungido. A tua semente nasceu da semente d’Aquele que entre nós viveu um dia, as palavras d’Ele habitam as tuas palavras, o que Ele disse tu o dirás… Não perguntes mais!

Depois, perfurando pelo meio da multidão, pelo mesmo caminho por onde veio, o eremita partiu, infundindo nela o mesmo temor de antes. Afastavam-se os homens à passagem, juntavam as mulheres curiosas cabeças nas suas costas. Em breve desaparecia, sumindo-se na floresta que havia de o levar aos lugares trogloditas onde gastava os seus dias.

O monge dissera nada e tudo dissera. As suas palavras eram a afirmação de uma ideia, mas podiam sê-lo também da ideia contrária. Teodorico, perplexo, quis saber o que pensavam os outros da enigmática resposta do monge João.

Era um doido, declarou o anelado bispo: a resposta dele era um opróbrio, uma estultice, uma marca do demónio. O que o eremita quis dizer era óbvio, defenderam os generais, olho por olho, dente por dente: aqueles cães moiros mereciam ser atirados a um poço e deixados apodrecer à fome e ao frio! Isso não, corrigiram os homens do povo, devia era negociar-se a sua vida, exigir-se os resgates devidos a um rei e a príncipes: se o nosso dinheiro é útil, o do inimigo é-o duas vezes mais, para curar as feridas da guerra!

Teodorico levantou-se. Todos se ajoelharam.

Era mister que olhasse para o fundo, para dentro, para onde não podia mais enganar-se. Ele sabia, sim. O monge acertara. O paradoxo é inerente à condição de mandar.

Beijou a cruz que trazia no peito e ergueu-a para que os infiéis conhecessem o novo poder. Depois, brandindo a espada fê-la descer sobre as odiosas cordas que sujeitavam os cativos. Libertou-os, sem saber porque o fazia ou com que riscos. Ordenou que os montassem nos cavalos saqueados.

E eles foram, pelo mesmo caminho do eremita, a caminho da floresta. Ninguém sabia em direção a que deserto.

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Romão

Dr. Mimi
Fotografia de Dr. Mimi

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Foste a única pessoa que conheci até hoje que não matou um único animal. Exceto talvez os piolhos, se os tiveste alguma vez. Exceto talvez as lombrigas… Foste a primeira pessoa a recusar, numa célebre vindimada, a cabidela da minha avó e a provocar o caos nos grandes potes de ferro, onde a galinha acabava de cozer sob a vigilância de minhas tias e progenitora.

‒ Ó minha mãe, o que é que o homem vai comer?

‒ Eu sei lá o que é que ele vai comer! Olha, come um caldo de coibes!

Cheiravas a sabão clarim (nunca me lembro da feição das pessoas, mas dos cheiros sim – fica-me deles a fotografia penetrante e inesquecível): a camisa de linho arregaçada nas mangas, as calças com suspensórios, as socas de grandes tachas douradas nos pés, a navalha nas mãos e o perfume do sabão (será sempre o melhor de todos), como se nenhuma mácula pudesse tocar-te.

Vejo-te ainda, velho amigo, sentado na mesma tampa de cimento do poço, os cães aninhados entre as tuas pernas, os pássaros a comer-te das mãos (bicando por entre os dedos grossos e cheios de cicatrizes), os pintos amimalhados seguindo-te no quintal, a abelha amestrada que exibias com gosto mas sem vaidade. Vejo-te ainda na mesma posição, quieto e profundo, como um apóstolo fora do tempo.

‒ Isto aqui é uma paz… Assim que debe ser…

Porque aquilo ali, a casa do avô, tinha o seu quê de pacífico, entre eucaliptos e carvalhos, caminhitos de terra batida, tanques e regos de água, ervas e nastúrcios, um cento de plantas de todas as formas e aromas… Aquilo ali era uma paz. Vinham os andorinhões e as magníficas pegas-rabudas… Vinham os ouriços-cacheiros e às vezes a raposa… Vinham os soberbos torvelinhos de ar puro dos campos, das magnólias e árvores de fruto de ao redor da casa.

Mas era com a bicharada que te entendias melhor.

Era com ela que partilhavas a alegria do verbo durar. E os bichos pareciam compreender-te, procurar-te, querer-te. Os gatos preferiam o teu colo. Os pardais respondiam aos teus assobios. As borboletas vinham poisar-te na nuca. As pombas gingando o pescoço pareciam dançar para ti. Vejo-te, ainda, sorrindo e fechando os olhos, como um franciscano fora do tempo, enternecido e um pouco doido.

Uma vez vi-te a ajudar um louva-a-deus a pular a parede até à esquadria da janela e a convidá-lo a ir.

‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…

E o louva-a-deus, como iria um aranhiço, uma formiga ou uma mosca enjaulada, foi.

‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…

Lá, em casa do avô (onde, tocados pelas recentes modas francesas, subíamos escaleiras no lugar das escadas e nos deliciávamos com a chofagem, que ventilador era coisa que não se dizia), todos te julgávamos c’est fou, um c’est fou adorável, adorável e raro, por causa daquela coisa nas minas.

– Trabalhei acajo quinze anos nas minas de Llombera, em Espanha. Aquilo era duro… quinhentos metros abaixo do chão, ou mais …

Andava já na escola. Quinhentos metros eram dez vezes seguidas o nosso recreio. E sempre para baixo, como num abismo.

‒ Nem as mulas queriam ir… Bem lhe punham bendas nos olhos, mas as coitadas já sabiam pró que iam… Punham-se a dar pinotes…

‒ Ó Sinhor Romão, e as mulas iam lá pra baixo porquê?

‒ Atão? Para ajudar nos bagões…

Não há quem resista a uma boa história contada na primeira, nem a uma boa crónica revista na terceira pessoa. Nós éramos olhos e ouvidos e um nariz. Um bando de miúdos esquecidos das mãos, das fisgas e das caixas de fósforos, caçando imaginariamente o breu e os sons que subiam da terra, aonde tu te entranhavas doze horas por dia, de picareta em punho.

– Depois sucedeu o que tinha de suceder.

– O que sucedeu?

– A explosão.

– Qual explosão?

– Foi um arrebentamento… Um morreu logo. Outro morreu depois. Eu fiquei todo desfeitinho, as tripas bieram cá para fora, mas escapei… Para dizer a berdade, não sei como escapei!… Tiberam de as pôr num lençol. E cum elas assim postas à minha beira fui parar ao hospital… Depois disso nunca mais trabalhei…

Imagino agora, à distância limpa em que os factos se veem melhor, o relâmpago ensurdecedor, o sismo nas galerias do inferno (tábuas esfarrapadas, o elevador avariado, o urro das alimárias), o cadáver e os corpos esfacelados, o sangue espirrado nos filões do minério, o pânico nos olhos imersos em escuridão, em suor e em cansaço, tu levado numa ambulância anacrónica, desde as montanhas até Madrid, moribundo, com as vísceras ensacadas num lençol arranjado à pressa.

Foste a única pessoa que sabia já em miúdo ser uma pessoa única. E eu respirava o cheiro do sabão, sem poder compreender que aquela tua serena brancura ao sol (a navalha nas mãos, as socas de grandes tachas douradas nos pés, as calças com suspensórios, a camisa de linho arregaçada nas mangas, em cima da tampa do poço) pudesse alguma vez ter sido conspurcada pelo horror de uma noite tamanha.

Escrevo para ti, Romão, com saudade. Cada vez mais preso a esse maravilhoso arquipélago formado pelas memórias, intocado e intocável, onde sobressaem rostos e nomes e façanhas. Talvez por compreender cada vez menos este oceano desprezível de dias informes e sem fundo. Tu eras soberbo (um c’est fou) e eu devia-te, devo-te há muito, este texto. Se em algum lado estiveres, um abraço, o meu abraço, velho amigo!

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