Um mendigo

Fotografia de Mark Williams

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Certas frases soam ao brilho frio das igrejas, pensou Ricardo Navajo, enquanto acariciava, cheio de esquecimento de si mesmo, o pequeno cão a seu lado.

Neste canto da cidade, as esmolas são, de certo modo, menos avarentas, mas bastante mais barulhosas. Um homem colado ao chão ouve de tudo, inclusive palavras articuladas com mecânica sabedoria.

«Devemos sentir-nos gratos pelo que Ele nos reservou e reconhecer que é tão importante o bocado de pão, como a beleza da saxífraga.»

Quem o afirmou fê-lo com certeza tranquila, que era ao mesmo tempo a expressão exterior de uma frenética procura da alma. Depois, voltado para os seus ouvintes, numa espécie de prédica improvisada, também disse:

«Vede: há todo um fundo para onde nos pesa o corpo e todo um céu para onde devemos elevar a alma. Abaixo de nós a terra para nos cobrir, acima de nós as galáxias que nos hão de guiar para todo o sempre o espírito».

Ricardo Navajo coçou o queixo com os dedos enregelados e as unhas grandes. Depois, coçou o ventre maldisposto pela fome. A seguir, pôs-se a massajar a nuca do rafeirito de companhia, deslembrado da tigela de plástico onde dormiam alguns cêntimos em paz.

Nesta esquina da cidade, caminha-se quase sempre com pressa e quase nunca com piedade. As conversas que se atiram ao ar lembram muito os fogos de artifício: são lumes-fogachos que rutilam sem aquecer.

O orador acabou de entrar no Seminário com os discípulos; os automóveis buzinam com regular ferocidade; os semáforos abrem e fecham numa indiferença de deuses ancestrais.

Navajo possui o hábito de cismar no que os outros deixam, à sua passagem, em suspenso. O pensamento humano, se mais algum existe, organiza-se numa estrutura de andaimes. Cada homem vê o mundo da maneira que lhe convém, supondo-o único e universal do alto, ou do baixo da sua visão.

Que existem belas flores e estrelas à nossa volta, o mendigo não duvidava. Mas uma côdea de pão e dinheiro para a terra nos receber dignamente os ossos é outro campeonato.

Navajo recebeu agora mesmo o estampido firme que faz a moeda de um euro. A quadra do Natal é uma boa safra, responderia, se alguém lhe quisesse saber como anda a vida. Agradece-a com uma vénia estudada, enquanto a palma da mão lhe corre pelo lombo de Riquinho. Assim se chama o melhor amigo.

Era o que diria, se alguém lho perguntasse.

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Torben Bjørnsen

Fotografia de Clem Onojeghuo

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Houve uma época na vida de Torben Bjørnsen em que as ações fluíam e os aplausos chegavam de toda a parte. O sucesso parecia ilimitado e ele impunha-o nos gestos e nas palavras, porque era um escritor excelente e mais exímio orador ainda. As iniciais TB reluziam em letreiros livrescos e nas publicações universitárias, mas sobretudo nos panfletos e placares que punham à entrada dos esgotadíssimos anfiteatros onde ele amiudamente comparecia.

Mas isso foi noutro tempo.

Sem explicação que possamos dar a quem nos lê, Torben Bjørnsen lançou-se num voo cruel de autoapagamento: recusou entrevistas, repeliu convites, esqueceu mecenas e admiradores, calafetou-se num mutismo e numa solidão perturbadores, como se de súbito tivesse precisado de transformar a pele empática da sua pessoa num couraçado de escamas e de puas. Desde há quase duas décadas que lhe não conhecemos novos escritos, nem sequer os breves poemas em prosa de que gostávamos tanto.

À celebridade seguiram-se o ressentimento e a vendeta.

Uma espécie de ódio ao homem tem-se instalado na Dinamarca, país que como todos os outros acumula nobres e podres criadores de opinião pública. Há quem assegure que Torben fugiu apressadamente à justiça, por culpa de um qualquer crime do espetro das aberrações sociais. Há quem justifique o seu silêncio com uma conversão religiosa profunda, daquelas que não se esperam em dias tão desossados de espiritualidade, como são os nossos. Há, igualmente, quem legitime esta mudança com uma simples palavra: cansaço.

Ida Kjær, uma amiga comum, contou-nos recentemente que o reencontra uma vez por ano.

Torben não vive na Gronelândia, nas Ilhas Faroé, nem sequer numa dessas ilhotas a caminho da Suécia. Vive onde sempre viveu, com o seu gato, com a sua coleção de presépios, com os seus cadernos intermináveis onde rabisca emendas e símbolos rúnicos. «Apenas mais velho, muito mais velho, cheio desse brilho infantil que nos leva, neste Dia de Santa Lúcia, em multidão para os canais iluminados. Torben estará lá, anónimo e feliz, partilhando e recebendo lussebullar. Verás!»

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Pausa

Héleboro, Helleborus, Natal, Christmas
Fotografia de Annie Spratt

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Por fim a pausa.

Reconhecemos uma pausa quando trocamos o café pela poesia grega, quando trocamos a poesia grega pelo jardim.

Herman de Coninck, poeta e jornalista belga de que cujo sentido de humor gosto bastante, escreveu que num texto maravilhoso, dedicado à mãe, que «poesia tem a ver com a duração» e que é preciso «deixar que as coisas ganhem bolor / deixar que as uvas se transformem em álcool». Dito de outro modo, é bom chegar ao final de um lancil, olhar para trás, compreender o tamanho da nossa jornada e ficar quieto.

Trocar o ruído da cafetaria pelo longo tropel dos cavalos e pelo estrugir das armas em Homero constitui um excelente exercício de quietude, mas exíguo se comparado com a luminosa perfeição das heléboros ou do azevinho nestes dias de Natal.

De repente, tudo em volta se parece excedentário e absurdo. Pausar é regressar à justa medida da nossa alma, deter o passo seguinte (o passo em falso) e compreender como Coninck, no já aludido poema, «Tu és o relógio: o tempo passa / mas tu ficas».

21.12.2024

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Logótipo Oficial 2024

O fradinho

mink, ruin, Anja
Fotografia de Anja

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Embora estivesse acostumado à solidão, o velho frade agostinho gostava de descer ao povoado de quando em quando. Fazia-o uma vez por mês. Nessa altura saciava-se de conversa, bacalhau frito, imagens do mundo capazes, no regresso, de alancarem consigo e com o asnozito serra acima.

Era o último da congregação. O mosteiro, tomado de assalto repetidamente pelos larápios e pelas silvas, decaíra a um tal estado de degradação que havia quem jurasse que partes do campanário, da sala do capítulo e mesmo do refeitório se tinham despegado num monte de entulho.

O fradinho nunca se queixava. Ia como vinha, sorrindo, com o hábito cada vez mais puído e o corpo cada vez mais mirrado. Até que deixou de aparecer.

Os homens nesse dia prodigioso de começo de inverno puseram-se a caminho e muito a custo venceram as cordas de vegetação que se lhes ensarilhavam nos braços e lhes tolhiam a marcha. Quando lobrigaram os caboucos do mosteiro, compreenderam que nada dele se mantinha de pé. Num dos retângulos de pedras muito direitas, viram o que restava de uma antiga lareira, as paredes mascarradas entre os azulejos, um panelinho de barro com uma asa.

Onde estava o frade?

Uma revoada de pombos assustou-os. Vinha de outra parte, onde velhas camas ferrugentas se alinhavam no maior silêncio. Numa delas, deitado de lado, coberto por uma manta andrajosa, sem outro teto que o céu do Senhor, encontraram-no. Junto do leito, a alimária (feita pele e osso) ainda respirava.

Os homens tremeram de piedade e de franca comiseração. Assim que se preparavam para erguer o morto, a fim de lhes darem sepultura, ele abriu os olhos e quase sem força, num levíssimo flamular de voz, saudou-os:

– Feliz Natal, meus filhos!

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Logótipo Oficial 2024

Páraic O’Reilly

Patou Ricard
Fotografia de Patou Ricard

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Dezembro verte uma fina camada de vidro sobre as casas. Em toda a parte doem os nós dos dedos e os ossos. Páraic levanta as golas do sobretudo e sai da taberna. Na Irlanda, a lua cheia é neste mês uma presença transfiguradora: os telhados e chaminés húmidos das aldeias, os bosques e rios atafulhados de velhas divindades mágicas, os promontórios cheios de espuma lá em baixo, tudo para onde o nosso olhar se dirige espelha uma majestade que as palavras não sabem dizer, tal como acontece nos sonhos. Páraic vê nessa iluminação (e em nenhum outro lugar mais do que nela) a presença antiga e visceral de Deus. Não o entendem.

Desde que abandonou o mosteiro (porque foi monge este Páraic O’Reilly), escreve, bebe e às vezes ensina. É vagamente o que se imagina ser um poeta e sem dúvida o homem mais só em todo o condado de Clare nesta noite solsticial de vinte e três, ou vinte e quatro.

Emborcado o último gole da última cerveja em Killarney, toma a resolução. Vem caminhando perpendicularmente ao bojo negro da Catedral de Santa Maria, onde os coros locais ensaiam já, ou ainda, cânticos de louvor ao que nasceu e ao que há de nascer nesta data. Páraic mete-se no carro e arranca para norte. São duas horas e meia, a andar bem, mas vale a pena.

Aqui viveu a infância, aqui vive ainda a melhor parte de si. Páraic sente o formidável cheiro do mar misturado com o do campo. Ardem-lhe os olhos, a garganta também dá sinal de si. Não será por muito tempo. Encontra-se pertíssimo das falésias de Moher. A meia-noite não tarda. Calculou com minúcia cada etapa da viagem. Abandona o automóvel num estradão, espiado somente pelo olhar atónito das corujas, e avança em passo firme até ao extremo do penhasco onde ergueram a Torre O’Brien.

O revérbero lunar nas águas do Atlântico hipnotiza-o. A beleza das coisas não pode provar senão a magnificência do Senhor. Os homens deviam contemplá-la assim, amá-la sem limites ou subterfúgios. De nada serve rezar se não se compreende o encantamento da perfeição divina. Desde que abandonou a condição de monge, foi-lhe ministrada por completo a lição mais dolorosa da sua vida: os caminhos do Senhor são, não apenas insondáveis, como sobretudo paradoxais. É um eremita, um pária, e conhece melhor do que ninguém o significado da busca de redenção, agora que passou à vida secular e se sente odiado por toda a gente.

Lá ao fundo as ondas fosforejam, o vento glaciar empurra-o, todos os seus sentidos o impelem a seguir em frente. Liscannor oferece passagens excecionais para o outro mundo: um passo avante e será um salto, duzentos metros de voo e o fim de todo o seu suplício.

Mas é, então, sugado para o âmago de um círculo de fogo. À sua volta, à meia-noite em ponto, uma claridade terrena acende-se como por milagre. São fogueiras altas, deflagrando desde as escarpas de Doolin, a norte, até aos promontórios de Baile an tSéipil, a sul. Páraic ouve, de chofre, um cântico levantar-se, nascido na garganta de centenas de mulheres que ali de súbito, será um prodígio, surgem do meio das trevas, vindas do nada.

É uma festa pagã, um ritual de que ouvira falar uma vez há muito, mas em que não acreditara. Talvez em honra de Dagda (deusa da sabedoria), ou de Fand (deusa do mar), ou de Tan Hill (deusa do fogo), ou de Arianrhod (deusa do lar), ou quem sabe de Aine de Knockaine (fada do amor e da fertilidade). A vozearia multiplica-se com o rufar de tambores e guizos e ululantes saudações ao inverno que chega.

As mulheres dançam frenéticas, percorrem o manto esverdeado do litoral e atiram os braços à lua cheia. Depressa engolem na sua roda Páraic, apertam-no contra os seios e as coxas, beijam e acariciam-no. Trazem-no de volta à vida para que nelas produza a vida. Esta, insuflado por uma espécie de êxtase orgíaco, cumpre. Cumpre com todas as suas obrigações, não sabe como, nem com quem. Dizem que nessa noite gera setenta filhos.

Evidentemente que as lendas mentem. Do sémen de Páraic O’Reilly vêm ao mundo, quem sabe, sete, três, um filho, talvez nenhum. Setenta, juram por cá.

E que diferença faz?

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Festa de São Nicolau

Jan Steen, A Festa de São Nicolau, c. 1663-1665
Jan Steen, A Festa de São Nicolau, c. 1663-1665

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Saskia observa o quadro uma vez mais.

É um prazer que guarda desde a infância. Todos os anos no dia do santo patrono, cumpre o ritual de se passear pelos corredores do Rijksmuseum, de abrir para o passado esta janela imensa que Jan Steen pintou, de se intrometer na cena familiar da noite de São Nicolau, de se divertir com o ar choroso do garoto malcomportado (também ao seu irmão mais novo trouxe “Pedro Negro” certa vez carvões em lugar de presentes), o ritual de se enternecer com a alegria dos rostos de outrora, ávidos como ela de vida, embora felizes. Saskia contempla a obra-prima, procurando nela adivinhar o bom aroma do gengibre, as ondas de calor da casa, o som que as velhas senhoras fariam para animar as crianças.

Mais do que uma visão, mais do que um retrato de época, é todo um aconchego o que ali se guarda. Saskia sente, nos minutos preciosos que reserva todos os anos no dia 6 de dezembro, uma espécie de labareda a vibrar dentro de si. É um despertar, como quando as ruas gélidas da cidade vão dar a café animado. Como quando escuta jazz e as suas mãos retomam um desvelo saudoso por Aiden, o seu marido há quase três décadas.

Quando abandona o Rijks, gosta de sentir na pele o ar frio de Amesterdão. Sente-se de um modo muito particular rejuvenescida. O dia de São Nicolau é o prenúncio do Natal que aí vem. Apetece-lhe patinar, pôr-se ao lume numa velha cozinha, preparar doçarias. Aiden deixou de se importar com estas tolices momentâneas.

Acha-lhes piada. Somente isso.

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O presépio

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Pintura de Antonio Allegri (Correggio)

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Esperava-se nesse Natal de 1521 um milagre. Todo o Danúbio fora infestado de turcos, depois que Solimão tomou a cidade de Belgrado e se dispunha agora a despedaçar o reino da Hungria. Os otomanos espezinhavam e matavam, mas pior do que isso exigiam o horroroso devsirme, o tributo sobre o sangue. As crianças eram carregadas sem pingo de piedade pelos oficiais estrangeiros e levadas em cestos, à garupa dos cavalos ou das mulas; convertiam-nas depois à religião inimiga, transformando-as em máquinas de guerra leais ao sultão, esquecidas de tudo quanto tinham sido e de tudo que poderiam ter sido. Assim Solimão, o Magnífico, punia os cristãos, roubando-lhe a terra dos antepassados e deixando que os antigos filhos se transformassem nos castigadores vindouros.

Na ilha de Čakljanac, na pequena igreja bem a meio das duas margens do rio, alguém se lembrara de repetir a tradição do santo italiano de Greccio. Construíram, portanto, junto ao altar uma cabana com toros e colmo e dispuseram as figuras de barro. Eram figuras tão reais que a comoção se apoderou dos crentes e do padre. Rezava-se com lágrimas suplicantes para que os soldados do sultão não cumprissem o odioso imposto, e por isso as mães apertavam os filhos e ecoavam mais alto as palavras do pregador.                                                    

Da cidade de Nándorfehérvár tinha partido uma guarnição. E foi em muito má hora que ali chegou, nessa noite pura em que toda a aldeia se reunia para celebrar o nascimento do salvador da humanidade. Os brutais janízaros irromperam pelo templo e fizeram cumprir a determinação do califa e imperador, retirando-os pela força (erguendo os sabres, arreganhando os dentes, cuspindo impropérios) os rapazes que deveriam tornar-se, eles próprios, a futura guarda do sultão.

Conta-se que nessa noite, desse teatro de barro, madeira e palha, desapareceu misteriosamente para nunca ser encontrada a figura do Menino Jesus. Que todos as figuras adquiriram a feição pungente de um velório e que os próprios anjos tapavam o rosto com as mãos castíssimas que deveriam erguer-se em solene devoção.

Este presépio é, ainda, o mais bizarro do mundo.

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