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Gosto de tocar as cinzas, de sentir o leve esboroar da sua forma frágil erguendo às narinas um olor distante de madeira consumida pelo fogo e dias de chuva e janelas altas sobre um horto de infância. Gosto de as varrer do ferro fundido da salamandra, ou do fogão, de usar um guardanapo humedecido com farrapos dessa matéria insubstancial para polir os vidros e até os metais. Gosto da limpeza que me fica quando dela liberto o espaço e à sucede saturação o ar limpo da sua ausência.
Gosto de olhar as minhas mãos e as minhas unhas manchadas, bordejadas, sujas pelo pó daquilo que existiu e se entrega ao nada sem protesto.
Desconheço texto mais belo sobre elas do que o que escreveu Robert Walser, integrado num livrinho magnífico, intitulado Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos. Apetece quase ler esse texto como uma oração, como o delírio de um eremita, como uma provocação silenciosa àqueles que (como nós) vivemos inteiriçados de orgulho e confiança nas coisas materiais. Eis um excerto: «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada. Pode alguém ser mais instável, mais fraco e mais pobre do que as cinzas? Dificilmente. Existe algo que poderia ser mais indulgente e tolerante do que elas? Muito pouco provável. A cinza não tem caráter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo.»
Quantas vezes nos sentimos como essa cinza de Walser. E quão especial podemos ser!
13.11.2024
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