Acorda todos os dias muito cedo. Faz o menos barulho possível enquanto trata da higiene pessoal e de tomar o pequeno-almoço. Há pessoas a dormir e a necessitar do trabalho profundo dos sonhos.
Quando abre a janela do quarto, espreita sempre com muito interesse: a adivinhação da luz ou da falta dela (conforme a época do ano), o estado do tempo, o cenário com que a rua se apresenta, tudo o impressiona como se em cada manhã nascesse outra vez.
Porque se levanta cedo? Tem pressa de ir para o emprego?
Na verdade, não trabalha já. É um aposentado. Mas dá-se pressa de assistir ao nascer do dia.
Ao longo da sua já considerável vida, sempre o alvorecer (devota grande amor a essa palavra e a outras praticamente sinónimas, como alba, alvorada, aurora, arrebol, dilúculo), dizíamos, sempre o alvorecer lhe pareceu o truque de magia mais extraordinário do universo.
Sai para o terraço com uma chávena de café nas mãos, imaculadamente vestido, impecavelmente penteado e entrega-se à contemplação. A essa hora o cheiro das folhas molhadas pelo orvalho ou pela chuva, o sopro meigo e frio do vento nas árvores, o curto saltitar dos pássaros entre as telhas ou no quintal, o perfume misturado da murta, da terra e do café são como dádivas intraduzíveis.
Um pouco antes de o horizonte ser atingido de lés a lés pela labareda do sol, diverte-o a confusão de linhas esbranquiçadas que os aviões deixam à sua passagem. São traços gelatinosos, translúcidos, como aqueles que os pachorrentos caracóis desenham no cimento.
Vive com o filho, a nora e quatro netos. Ninguém em casa compreende este ritual. Ver a luz nascer, ainda que no inverno, sobretudo quando a cama tanto apetece, não é coisa de somenos importância.
Espera-se uma vida inteira pelo prazer de combinar estas coisas todas. Não há aqui qualquer toque de religião ou de poesia. Um homem em certo momento da sua vida prescinde de tudo. Menos de si.
«Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?» perguntaste. Sabias que responderia com uma negativa. «Não me lembro», «Não faço a mínima ideia», «Meu caro, não sei dizer». Adquiriste, sem que isso me penalizasse por aí além, a expressão triunfante de um retor. «Mas, como podes tu escrever sobre coisas que não vives?», «Que eventualmente não conheces?», «Que desperdiças?».
E dando um jeito ao corpo, corrigindo os joelhos contra o balcão, escorropichando a aguardente, começaste a explicar.
«O nascer do sol. Não é o que pensas. Não é só a luz que vem. Não, meu amigo, o nascer do sol é muito mais do que um show-off da poesia e dos romances cor-de-rosa. Não é só a luz que acende o firmamento. Nem a hora em que os amantes se despedem. Nem a promessa do amor eterno. Nem o instante de quase silêncio em que as palavras se limpam com o ácido do remorso.»
Nada tinhas contra os poetas, fizeste saber. Eles falam da alba, do dilúculo, da aurora dos dedos rosados. «Isso é muito bonito, lá isso é».
«O nascer do sol é um milagre a que me habituei. Levantar cedo para cuidar de uma pequena quinta, como a minha, é mais do que suficiente para aprender os segredos desse armistício entre o dia e a noite. Tudo paira numa espécie de transe. Como quando nos é dada a inesperada chance de começarmos tudo de novo.»
Repliquei que isso era poesia. Talvez a excelente última frase de um romance cor-de-rosa. Juntaste os lábios. Como se me quisesses mandar às favas. O que quer que pensasses vinha cada vez de mais longe.
«O cheiro da terra, por exemplo, é maravilhoso… Um sem-número de ervas e de árvores espreguiçando-se até no lusco-fusco até ao cosmos. Nunca as plantas cheiram tão bem como à noitinha ou de manhãzinha… De um momento para o outro, é a passarada numa algazarra louca sobre os telhados e os jardins… Diz-me tu se conheces alegria mais genuína do que a dos pássaros… O nascer do sol é muito mais do que se pensa… Muito mais do que o lento despertar de cada coisa… De cada roda que volta a chiar na rua, de cada janela que se abre, de cada cabeça entorpecida que espreita por ela… É como se em cada em cada objeto, em cada animal, em cada pessoa, houvesse subitamente um riscar de fósforo… Como se todos e tudo tomássemos parte na convulsão do tempo e do espaço… Não sei explicar bem, pá!…»
Bebias o terceiro ou o quarto copo. Bebias demais. E, no entanto, ao contrário de mim, as palavras pareciam soltar-se-te e com elas os pensamentos. Devia estar tão sério que me deste uma cotovelada.
«O teu mal é andares distraído». Devo ter feito uma careta. Julgo tê-la desenhado. Fi-la de certeza. Prosseguiste.
«Estou convencido que, tal como os lugares se transfiguram e deixam de pertencer-nos, também os nossos gestos precisam de ser reaprendidos… No que me diz respeito, sou agora incapaz de escrever uma frase. Perco-me no meio das palavras. Isto apesar de admirar o efeito que têm sobre nós. A minha vénia, a quem o tem, o talento de as vergar…»
E sorriste.
«Volto ao princípio… Tu escreves… Mas, e desculpe lá a observação, viverás o suficiente para escrever?»
Não era má a aguardente de medronho. Dei um gole mais. Acabei o segundo copo. Reparei que a taberna estava a encher-se de clientes. Pescadores. Lavradores. Operários das fábricas ao redor. Senti fome. Cansaço. Irritação. Não respondi.
«A vida, essa coisa que nos passa por dentro das veias e ao mesmo tempo sobre a pele, num leve torpor de energia, dor, prazer, sei lá…, a vida exige-nos esse ritual…»
O bom cheiro do mar, como a vaga memória de um tempo a que não fui capaz de aceder, tornou-se veemente. Vinha pela porta um aroma de salsugem, limos, sargaço, de iodo, de rocha e areia húmida, de pó, de combustível varreram-me. Estava frio.
«Faz-me o favor de prometer que vais passar a assistir ao nascer do sol… Ao menos uma vez por mês… Ao menos uma vez em cada estação… Verás como todas as coisas passarão a fazer sentido…»
Saí. Estuguei o passo. O cais ficava ali perto. Nuvens de um cinzento azul, ou púrpura, talvez alaranjadas, de um leve rosado, cintavam o horizonte. O sol, como o combinado, não tardaria.