“Vem!”

Kerry Moore
Fotografia de Kerry Moore

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Acordava e logo se vestia à pressa, saindo de casa com uma maçã nas mãos, tirada a correr do saco com as poucas compras que abandonara no dia anterior sobre a mesa.

Entrava esbaforido num dos elevadores da empresa, a esbarrar-se nas pessoas e nas portas, e se lhe perguntavam porque não acordava mais cedo e não procurava acalmar-se, dava respostas vagas e mal tingidas no som. Parecia alheado e talvez um pouco lunático.

Uma manhã chegou atrasado ao trabalho.

Abriu devagar a porta do pequeno gabinete onde passava grande parte do tempo e avaliou, a transbordar de fastio, o andaime de pastas de arquivo e a frota de dispositivos eletrónicos à sua espera. Na penumbra, todo o pequeno espaço esmagava como uma cela.

Na viagem de metro para cá reparara num jovem casal.

Cada um apertava a mão do outro e trocavam olhares de uma leveza e de uma doçura quase ingénua, como as primeiras tardes de primavera. O rapaz confidenciava-lhe coisas que a faziam sorrir e ela, disponível e cheia de beleza, aceitava-as como uma dádiva.

No interior da última gaveta, voltada do avesso, soterrada em papel, estava uma moldura. Pô-la à sua frente e, com espanto, deu-se conta de que lhe doía ainda algo antigo e profundo. Esbanjara a saúde, o amor e a maior parte dos sonhos.

Uma mulher de longos cabelos avermelhados e pequenas efélides, sob olhos muito azuis, dizia «Vem!». Sentado na cadeira do costume (com rancor, sem ânimo de espécie alguma, sentindo grilhetas nos pés), ele não ia a lado nenhum.

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O cenóbio

Fotografia de Naveen Venkatesan

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Depois de ter viajado pelo mundo, pelas boas terras meridionais onde amou o sol e foi amado por belas mulheres, pelas frias paragens do ártico onde granjeou fama e respeito dos marinheiros que com ele atravessaram ilhas de gelos, Knut Peterson retirou-se aos quarenta e três anos para uma das ilhas Faroé, onde viveu anos sozinho. Mais tarde tornou-se monge regressou ao seu eremitério com cinco companheiros, fundando aí um cenóbio.

Rezavam, cantavam, aprendiam o latim e os antigos idiomas nórdicos uns com os outros, liam a Bíblia e as runas, escreviam crónicas e livros de botânica. A paz caía tão branca ali como a neve que ali caía uma boa parte do ano.

Mas uma manhã um barco deu à costa, desgovernado. Nele viajava uma formidável rapariga de cabelos ruivos e efélides, jovem ainda, tão assustada quanto cheia de fome, expressando-se numa língua aparentada com a sua, ainda assim bastante confusa.

Perceberam que tinha fugido, que viajava havia semanas, que ali aportara por força do vento e das marés que empurraram o botezinho, ou por vontade de Deus que sobre o vento e as marés manda.

Era uma boa moça. Depressa se dispôs a ajudar a apanhar lenha, a preparar o pão, a cozinhar sopa, a lavar as madeiras dos musgos e vermes, a aprender as estranhas línguas que ali se palravam. 

Um dos monges viu-a a banhar-se numa das lagoas da ilha, espantosamente branca e perfeita, como um anjo do Senhor, e o seu coração encheu-se de saudades da antiga vida continental. E a um a um (Knut resistiu o mais que pôde) cederam ao franco impulso de a possuírem como sua mulher, de amarem com o corpo o que apenas o corpo pode amar.

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