Crónica de um amor sem tempo certo

Dmitry Borisov
Fotografia de Dmitry Borisov

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E foi assim que nos vimos de novo ao cabo de tantos anos. Uma ânsia capaz de guindar as tripas à boca. Sorriso miudinho. Nervoso. Incerto. Palavras curtas, entrecortadas, cheias de salamaleque. Tu, quase sem rugas, com o estupendo ar de quem regressa de uma viagem pelas ilhas gregas. Eu, mais frágil, curvado, capaz de jurar que o tempo passou em duas velocidades por nós. O que tens feito? O que fizemos? Passou tanto tempo. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém falar de beleza, que é, segundo a tua própria lição, efémera e enganadora. Eu continuo a dar aulas. Tu vens de Bruxelas, não é assim? Ainda no Parlamento Europeu? Mãos incertas, passeando-se pela mesa, sobre os joelhos, nos braços cruzados e descruzados. Apetece um cigarro. A beleza pode provocar calafrios. Foi já há tanto tempo. Como pode acontecer-nos? Acontecer-me isto? Corriges. Não, Miguel. Trabalho na Comissão. O Parlamento é em Estrasburgo! Claro. Desculpa. Confundo sempre. Uma ânsia destas parece um terramoto ao longo das vísceras. Bolas, estás estupenda. Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. De algum modo foste sempre uma criança na minha cabeça. Mesmo durante o breve amor que tivemos. Nessa altura éramos um puzzle impossível de preencher. Olha-te bem, agora. Rosto sereno. A pele tratada. Unhas longas e delicadas. O sorriso esmaltado e branco. O ritmo das frases. O tom seguro com que pedes. Conta-me coisas! Casaste?

‒ Não casei.

‒ E tu?

‒ Mais ou menos!

E as chávenas de café chegam dolorosamente para interromper a primeira revelação. Sempre odiei o amor. Sempre achei que todos se amavam neste universo de sete mil milhões. Todos menos eu. Todos odiamos o amor. Até que um dia alguém nos faz acreditar que uma pequena porção da sua loucura nos foi reservada. E aí amamos o amor. Pertencemos ao exclusivo clube dos que têm sorte. Dizemos que talvez tenha valido a pena o sacrifício, a espera, a deceção…

‒ Então. Conta lá!

‒ Vivi com uma pessoa durante algum tempo.

‒ Ah, sim?

Mas tu esquivas-te. Do assunto fugimos ambos. Porque há coisas que não se explicam. Melhor assim. Seguras a chávena com ambas as mãos, ao teu estilo. Sopras juntando amorosamente os lábios. Depois pedes uma pedra de gelo e um copo e canela em pó. Tinha-me esquecido desse teu ritual. Acho-o delicioso, deliciosamente presente, aqui e agora! Gosto de te ter. Pedes-me que te contes coisas, a vida, a minha disponibilidade para talvez amar. Sou incapaz de omitir-te seja o que for. Conto-te tudo…

‒ Não casei… Nunca vou casar… Sou avesso a tudo o que me querem…

‒ Miguel, Miguel… E as mulheres que não te largam… Como lhes explicas isso?

Uma súbita tristeza abate-se sobre o granito da esplanada. Sobre as paredes da igreja. Contra as casas e as janelas e as sardinheiras resvalando das varandas. Escureceu. As nuvens cortinam a luz forte de maio. Não sei como responder-te. Talvez não queiras uma resposta. Talvez não devêssemos ter perguntado sequer. Quantas vezes é melhor ignorar os factos, ir às cegas de encontro ao porvir, ser uma folha apagada, ou, quando muito, com os vagos sulcos de coisas escritas a lápis. É melhor assim. O silêncio prova-o. Atesta-o o embaraço, as sísmicas convolutas das vísceras sem lugar no lugar das vísceras. És a mulher mais bela que conheci, sabias? Mas não falemos de beleza. O amor é um mito para lá da beleza. És ainda a minha antiga aluna de secundário e já outra mulher. Ainda e já um outro tempo no meu tempo. E talvez deva dizer, enfim, qualquer coisa como isto.

‒ Nunca te esqueci, Eunice!

‒ Claro que esqueceste, Miguel!

‒ Nunca!

Apetece um cigarro. Apetece cair, sair, partir. Odiamos o amor quando o amor nos ignora. Ignoramos o extenso combate de palavras e de sentidos em cada palavra e sentido que se diz e se sente. Tremo. As mãos incertas desejam tocar-te e fogem, querem acariciar-te e fincam-se, procuram o perdão e mostram-se frias. O amor mente com as mãos. Apetece um cigarro. E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Lembras-te daquela canção dos Morphine? Até que um dia alguém nos faz acreditar que talvez nunca tenhamos odiado o amor. Olhos enxutos, rosto sorridente, coração limpo. O que tens feito? O que fizemos? Passou já tanto tempo, Miguel. Os teus olhos continuam belíssimos. Mas não convém dizer tudo. Talvez não se deva dizer coisa alguma. Continuo a dar aulas. E tu? Bolas, estás estupenda, Eunice… Uma mulher feita. Quando te conheci eras uma criança. És outra mulher, agora. O que é feito de ti? E tu bebes o café. Devagar. Tão devagar que o silêncio e a lentidão parecem arrastar a cena por séculos. Às vezes é preciso ser assim. Devagar, tão devagar que o tempo para. E aí vemos tudo com minúcia. Quer dizer, onde encaixar cada peça, como acabar o puzzle. O amor não é outra coisa. Não é, pois não?

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Sempre fui um gângster

Christophe Verdier
Fotografia de Christophe Verdier

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Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Batoteiro, apaixonado, zaragateiro, intempestivo, amante da tarefa acabada. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos — sejam poemas, sejam acertos de contas — porque um bom filho da mãe não deixa nada a meio; um bom filho da mãe gosta de morder o cigarro enquanto conduz à noite e faz grandes reflexões, com Coltrane, Chet Baker ou os Morphine (se for mais da minha onda) em fundo; um bom filho da mãe distingue as boas das más ações, mas assume-as a todas sem medo, sem hipocrisia e sem moralismos. Um bom filho da mãe tem um orgulho verdadeiramente gangsteriano naquilo que faz e, arrisco dizer também, em recusar aquilo que não faz!

E o que não faz um gângster? Por exemplo?

Por exemplo lamber botas! Por exemplo pôr-se com merdas quando tem que encarar um tipo desprezível (e há tipos desprezíveis, meros rebentos de infâmia e dejeção, a quem não pode ser concedido sequer, na pior aceção — a que lhe confere o topo da escala social — o título de gângster) e explicar-lhe sem rodeios que são uns merdas! Por exemplo declinar a oportunidade de dar uma bofetada a um palerma que fala em direitos e esquece as obrigações. Por exemplo perdoar um tiro a outro filho da mãe que anda há muito a pedi-las e sabe que anda. Por exemplo aceitar palmadinhas nas costas de tipos que usam fato às riscas, botões de punho, sapatos de verniz e perfume a 500 euros o frasco de 100 mililitros.

(Faço um parêntesis para emendar o raciocínio e impedir conclusões apriorísticas: nunca dei um tiro a ninguém! Por manifesta falta de formação específica na área, circunstância que aliás muito penaliza o meu perfil mafioso. Mas não o lamento! Sou um mafioso bom, devo insistir!)

Sempre tive, assim como assim, uma queda para o bandido. Porque a cabeça de um indivíduo pode esconder um laboratório de malfeitorias. Vilezas puras, como roubar a Shakespeare meia dúzia de versos e tomar de assalto um coração puritano. Patifarias como mandar às urtigas um curso superior e ir à procura da felicidade onde ela se encontra, nas montanhas do Tibete ou dos Andes, nos fiordes da Noruega ou entre as cow-girls do Texas. E quem diz o curso superior diz outras coisas superiores como a herança, o casamento ou os amigos no clube social. Um biltre que faz uma maldade destas, que se mete à estrada com a viola às costas e sem mais vontade que a de pensar em si (cantando «And a new day will dawn for those who stand long,/ And the forests will echo with laughter») merece, senhores e senhoras, um enorme aplauso… É um infame, que deixa para trás os estudos, uma família furiosa, uma ex-mulher vingada na justiça, um grupo de snobes. Mas que merece, senhores e senhoras, um aplauso do tamanho do mundo! Um aplauso do tamanho do futuro! Os gângsters fazem coisas destas…

Eu fiz! Rejeitei noites de prémios onde me queriam bem vestido, barbeado, perfumado. Matrimónios que me impunham a máscara de manso, do amestrado, do maridão. Compromissos políticos onde me desejavam seguidista, cacique, acéfalo. Universidades que me pediam teses bem escritas, ortodoxas, balofas. Editoras onde me exigiam paciência, más contas, conformismo. Amigos que me brindaram sempre com esquecimento, silêncio, por-favores! Um pulha faz coisas destas, faz coisas muito piores, fá-las sem pestanejar!

(Faço outro parêntesis para explicar que estas ditas outras coisas muito piores me não são estranhas. Uma vez rejeitei um cargo assaz cobiçado numa dada prestigiante instituição, porque gostando do cargo e da instituição depressa compreendi que me usavam em modo de arma de arremesso, ou como castigo político para quem até aí o exercia. E eu disse que muito obrigado, mas não!)

Eu faço coisas destas. Sempre fui um pouco gângster. Até usei barba, boina, charuto. Até li os pensamentos anarquistas de Rousseau e os de Godwin. Li todos os romances de Mario Puzo e em tempos devorei uma biografia do Al Capone. Até usei toda a poesia de todos os tempos para ser poeta a tempo inteiro (mesmo quando assalariado). Usei-a para chantagear intelectual, moral, civicamente. Máfia pura! Até me servi de uma t-shirt do Che Guevara (uma que dizia «Yo no sé porque me pongo una camiseta del Che») para conquistar os favores de uma guevarista de olhos verdes no sul de Espanha.

Sempre fui um pouco gângster. Um aldrabãozeco! Um facinorazinha com dever de consciência, desta mesma consciência de que me sirvo agora e muitas vezes para renunciar às tentações, enganações, seduções, opressões e obsessões de Satanás. Multipliquei adversários e inimigos. Tanto na literatura, como na rua. Gosto de me recordar deles, enquanto afio as facas e limpo o fuzil dos meus pensamentos (admito ser também um adorável fazedor de metáforas parvas). Gosto de me recordar também de torpezas quando ando depressivo e não encontro o isqueiro ou um café aberto à noite. Uma boa luta, uma pirraça das melhores, um cagaço dos grandes mantêm-nos vivos, já o repetia o Zé do Telhado.

Pela minha parte limito-me a ser discreto, entrando de mansinho na cena, com os Morphine em fundo, janela aberta, o fumo do cigarro misturando-se à neblina, o carro levando-me ao hotel combinado, o dedo em riste, a alma limpa, a noite prometendo — amor, companhia, uma boa história…

Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Não me pesa demasiado afirmá-lo. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos. Eficientes. Na hora. Senhores e senhoras, por aqui me esgueiro. Boa noite!

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