Mar

Fotografia de Janet Swanson

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Ponho o mar à minha frente e decido um grande silêncio. Não há maior bem do que calar todas as ressonâncias de que o vento é capaz na nossa boca e por dentro dos nossos olhos e nos confins da cabeça. Elidir um a um todos os sepultuosos ruídos em que morremos quando proferimos alguma palavra, esmaecer até ao nada uma atrás de outra todas as imagens que nos governam desde a infância, apagar o poder das teias cerebrais como quem se enlouquece com uma tesoura entre os dedos. O mar vem aos poucos, apodera-se dos rochedos em agulha e do cheiro seco do areal, transpõe a pérgula e a linha dos metrosíderos, coabita o espaço e o tempo que é, sem que o entendamos completamente como, um adormecimento, uma fragilidade, a própria ideia de deus soprando de novo nas impérvias narinas de Adão.

Só assim renasço. Só assim, atingindo a chã existência de mim mesmo, vergando-me até rastejar e ser argila e cair – repito – no grande silêncio de uma morte. É preciso morrer. Ponho o mar à minha frente e morro. Muitas vezes morri nesta vida. Foram deus e o mar, a mistura de ambos, o sopro que num é o outro, sei lá, foram deus e o mar quem me trouxe de volta muitas vezes – repito – nesta vida.

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Logótipo Oficial 2024

Nascer do dia

Gary McParland
Fotografia de Gary McParland

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Acorda todos os dias muito cedo. Faz o menos barulho possível enquanto trata da higiene pessoal e de tomar o pequeno-almoço. Há pessoas a dormir e a necessitar do trabalho profundo dos sonhos.

Quando abre a janela do quarto, espreita sempre com muito interesse: a adivinhação da luz ou da falta dela (conforme a época do ano), o estado do tempo, o cenário com que a rua se apresenta, tudo o impressiona como se em cada manhã nascesse outra vez.

Porque se levanta cedo? Tem pressa de ir para o emprego?

Na verdade, não trabalha já. É um aposentado. Mas dá-se pressa de assistir ao nascer do dia.

Ao longo da sua já considerável vida, sempre o alvorecer (devota grande amor a essa palavra e a outras praticamente sinónimas, como alba, alvorada, aurora, arrebol, dilúculo), dizíamos, sempre o alvorecer lhe pareceu o truque de magia mais extraordinário do universo.

Sai para o terraço com uma chávena de café nas mãos, imaculadamente vestido, impecavelmente penteado e entrega-se à contemplação. A essa hora o cheiro das folhas molhadas pelo orvalho ou pela chuva, o sopro meigo e frio do vento nas árvores, o curto saltitar dos pássaros entre as telhas ou no quintal, o perfume misturado da murta, da terra e do café são como dádivas intraduzíveis.

Um pouco antes de o horizonte ser atingido de lés a lés pela labareda do sol, diverte-o a confusão de linhas esbranquiçadas que os aviões deixam à sua passagem. São traços gelatinosos, translúcidos, como aqueles que os pachorrentos caracóis desenham no cimento.

Vive com o filho, a nora e quatro netos. Ninguém em casa compreende este ritual. Ver a luz nascer, ainda que no inverno, sobretudo quando a cama tanto apetece, não é coisa de somenos importância.

Espera-se uma vida inteira pelo prazer de combinar estas coisas todas. Não há aqui qualquer toque de religião ou de poesia. Um homem em certo momento da sua vida prescinde de tudo. Menos de si.

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