JUST LIKE HEAVEN

Foto: João Almeida

Era como se em vez de pés e mãos o seu corpo deslocasse trajetórias invisíveis de ar. Mary viajava a partir do mesmo parque de estacionamento, ao longo das mesmas estradas, para as mesmas ruelas com aquela expressão que o tempo costuma ter no início de março, leve, frágil, veemente, adocicada pelo sol imenso, prometedor, talvez não duradouro, sem saber mais do que o agora, sem pedir mais do que viver assim.

Daí a um par de horas voltaria a vê-lo. E ele voltaria a segurá-la nos braços, voltaria a beijá-la, voltaria a olhá-la nos olhos com ternura desmesurada, voltariam a abraçar-se como se abraçam duas folhas de erva, voltariam a trocar doces palavras também elas sem peso, costurando essa cumplicidade que nos prende a uma razão maior de ser.

Na rádio escutava uma daquelas canções pop que preenchiam toda uma época. Achava-lhe piada, tinha ritmo, a letra não era má, a batida oferecia-lhe um pouco mais de amor. 

Why are you so far away, she said
Why won’t you ever know that I’m in love with you
That I’m in love with you

Em seu redor os prados reverdeciam, prolongavam-se até à linha de mar. Aquela ilha, tantas vezes carcereira, parecia-lhe agora um lugar portentoso: deslumbrava-a a sucessão monótona de campos e cercas, entontecia-a a mistura de perfumes campestres (que intermináveis meses de chuva tinham fabricado) com a brisa oceânica, os penhascos sinistros junto do farol de Skeling Michael produziam nela uma alegria imensa. Era como se o automóvel vogasse sobre nimbos, como se a sua existência simplória de empregada de caixa num qualquer supermercado de província tivesse merecido as honras de uma divindade.

You
Soft and only
You
Lost and lonely

Mary sentia-se cansada, feliz mas cansada, cansada mas feliz. A música na estação de rádio era vibrante, ela tinha pressa, acelerou. As curvas doíam, seguiam-se-lhe contracurvas perigosas. O sol declinava cada vez mais rápido, deixando no horizonte uma saudade terna, uma poalha luminosa que aqui e ali ofuscavam. Aquele tinha sido um sábado igual a tantos outros, com a diferença de que trabalhara mais horas. Mas valera a pena. Daí a um par de horas voltaria a sentir-se jovem, renascida, parte do mundo vivo e ótimo de que se alimentam as lendas.

Ninguém sabe como se passou. Talvez algures, numa nesga do caminho, o automóvel haja guindado depressa demais, deslizado sobre gravilha, sido encandeado pelo rútilo momentâneo de um raio acabado de desembaraçar-se de uma nuvem. 

You
Strange as angels
Dancing in the deepest oceans
Twisting in the water
You’re just like a dream
You’re just like a dream

Era como se vogasse sobre nimbos, como se a sua existência pudesse (caprichosa, surpreendente, reconciliada) ter descoberto um modo de permanecer para sempre, como num sonho, sim, como num sonho. Em Cork durante meses não se falou de outra coisa.