Num dos poemas de No Tempo Dividido, Sophia de Mello Breyner Andresen escreve à laia de inscrição: «Que no largo mar azul se perca o vento / E nossa seja a nossa própria imagem».
O mundo pelágico era para a poetisa, como comummente se sabe, um espaço demiúrgico, quase religioso, de onde imergia a sua força criativa, o seu fascínio pelo tempo antigo (que era igualmente o seu fascínio pelo futuro indesenhável), mas também o seu gosto pessoalíssimo pelos povos que, tendo sulcado esses mares do passado longínquo (os gregos, em particular) nos deixaram a sua arte, a sua beleza, o seu nu e, neles (como na ontologia de Heidegger) o nosso destino.
Os poemas de Sophia constituem, sem exceção, exercícios de incomparável lapidagem. Lemo-los hoje com o relativo esquecimento a que toda a obra é votada depois da morte do seu autor. Mas, também por isso, os redescobrimos mais veementes, mais maravilhosamente esculpidos, mais verdadeiros. Lemo-los como uma extensão de nós mesmos, como se sentados num banco de jardim entre os troncos retorcidos de árvores gigantes (como estes metrosíderos da Foz do Douro) nos parecesse mais real o largo mar azul que tempos à nossa frente e vagueasse o nosso próprio espírito por entre essas ondas e aroma da maresia, e entre o corpo sentado e o espírito viajante existisse algo inominável. Algo como a nossa própria imagem olhada duplamente ao espelho.
Em setembro tudo é melhor cogitou o pintor. Preciso de limpar os telhados, de varrer os pátios, de cuidar do jardim. O pó do mar, o lixo dos turistas e o sol de julho e agosto trouxeram o caos a este meu esconderijo. O homem considerou com devoção o seu ateliê repleto de telas, caixas de bisnagas e pincéis, suportes de madeira e mesas em esquadria. Era um pequeno reino de linhas enfileiradas e cruzadas em fanática harmonia, em aprumo absoluto.
O homem colocou o seu caderno de esquissos sobre a mais estreita das três mesas e por cima do caderno depôs a lapiseira que recebera uma vez das mãos de Giorgio Morandi. Preciso de dar um destino a todos estes estudos. Talvez aproveite algum deles, ou talvez precise de os apagar a todos da memória. Nada de imprestável deve permanecer tempo demais na nossa existência pensou.
Com o homem vivia um gato. Era um animal asseado e silencioso, a quem o dono confidenciava histórias verdadeiras e ocasionalmente poemas por si compostos enquanto pintava ou aparava as sebes, ou aspergia detergente no pano de abrilhantar os vidros.
Com o felino e com o pintor viviam discos de jazz e música erudita, uma biblioteca de razoável dimensão e uma coleção de cachimbos. O homem não fumava, o que não queria dizer que não gostasse de morder a boquilha e de encher-lhe a cabeça com tabaco importado. Imaginava o prazer do lume a incinerar as folhas de Black Cavendish e de poder refastelar-se com o aroma e o paladar enxuto que delas haveria de ascender à saliva prolixa. Era um estranho ser de gostos extravagantes.
Em setembro tudo é mais humano. Preciso de descer ao reduto das coisas, de ir ao banco, de comprar vinho e enlatados, de aparafusar e olear dobradiças, de responder a Picasso e a Pasolini.
Com o homem, o gato e os discos de John Coltrane, viviam três acácias gigantes voltadas para o Mediterrâneo. O homem gostava bastante desta trindade arbórea no alto da ravina onde vivia. Só elas apreciavam o azul como ele sabia apreciar, destituídas de pressa, hipocrisia ou subterfúgios. Olhavam o azul infinitamente e em profundidade, numa, em duas, em três pinceladas imortais. Preciso de fazer as pazes com o azul disse o homem de si para si mesmo.
Setembro vinha no caminho dos dias. Era o seu tempo predileto. Era o tempo ideal para renascer ou assim.
Ponho o mar à minha frente e decido um grande silêncio. Não há maior bem do que calar todas as ressonâncias de que o vento é capaz na nossa boca e por dentro dos nossos olhos e nos confins da cabeça. Elidir um a um todos os sepultuosos ruídos em que morremos quando proferimos alguma palavra, esmaecer até ao nada uma atrás de outra todas as imagens que nos governam desde a infância, apagar o poder das teias cerebrais como quem se enlouquece com uma tesoura entre os dedos. O mar vem aos poucos, apodera-se dos rochedos em agulha e do cheiro seco do areal, transpõe a pérgula e a linha dos metrosíderos, coabita o espaço e o tempo que é, sem que o entendamos completamente como, um adormecimento, uma fragilidade, a própria ideia de deus soprando de novo nas impérvias narinas de Adão.
Só assim renasço. Só assim, atingindo a chã existência de mim mesmo, vergando-me até rastejar e ser argila e cair – repito – no grande silêncio de uma morte. É preciso morrer. Ponho o mar à minha frente e morro. Muitas vezes morri nesta vida. Foram deus e o mar, a mistura de ambos, o sopro que num é o outro, sei lá, foram deus e o mar quem me trouxe de volta muitas vezes – repito – nesta vida.
Ali, junto ao mar, sentindo nas costas a presença majestosa do farol, olhando à sua frente o istmo de areia muito branca e nele o enrolar da água azul, respirando longamente o misto húmido-enxuto das algas e das dunas, Céu sentiu esvaziar-se-lhe a cabeça, ou mais propriamente talvez, sentiu-se preenchida por uma sensação inefável de bem-estar. Era a mesma terna alegria que em criança experimentava no labirinto de roupas brancas que a avó deixava a flutuar nos estendais batidos pelo sol. Nesses dias (recordava-se tão bem) fechava os olhos e aspirava em haustos profundos o aroma do sabão. Nesses dias (como recordar pode ser tão maravilhoso) era como se a sua vida coubesse inteira no pátio invadido pela luz e pelo perfume.
Agora, ali, junto ao mar, a brisa do final da tarde fazia-lhe cócegas no rosto, soprando sobre ele as farripas loiras do cabelo e o pó subtil do areal. Apetecia-lhe dançar, erguer os braços, gritar, girar sobre si mesma mais e mais depressa, cada vez mais vertiginosamente, para que as imagens e os cheiros, para que as ténues variações de frio e de calor se fundissem e com eles se fundissem também o tempo e todas as memórias. Céu sentia-se feliz. Muito feliz.
O homem que ela amava fotografava-a, sorrindo. Exigia-lhe, porém, poses, postura, correção. Um atrás de outro o homem que a amava fazia disparar relâmpagos com o pequeno orifício vítreo do telemóvel. Reclamava a sua beleza, os seus olhos verdíssimos, a sua atenção, o seu corpo. Raios o partissem. Seria tão bom tê-lo apenas quieto e protetor junto a si, como o farol centenário, dentro do seu sonho desperto, a brincar consigo e com o amor e a terra, naquela dança eutrapélica e cheia de graça. Puxou-o por isso contra si. Libertou-o do objeto tirano. Beijou-o. Era preciso resgatar os dias perdidos. Peneirando-se no tecido de pequenas nuvens tardias, o sol abria linhas oblíquas. Como se dito pela primeira vez, como se fosse possível redizê-lo como da primeira vez, soprou as duas palavras com intensidade, com intenção.
É sempre bom chegar a esta praia, desagrilhoar-me do carro, seguir longamente pela marginal, pedir nesta e em nenhuma outra casa um café tirado, bebê-lo às escondidas do mar, deixar-me em paz, como um desses áceres ou plátanos da anterior avenida, com a sensação de que sou um derrotado mas um herói, cansado mas digno, silencioso mas cheiinho de palavras (às quais dou ordem para se absterem, enquanto o café aquece), descontente mas satisfeito, sem pressa mas ansioso por regressar ao cheiro forte da salsugem. Regressar é sempre bom, ótimo, revigorante.
«Deseja mais alguma coisa?»
Desejo, sim. Em primeiro lugar, libertar-me da gente estúpida (é impressão minha, ou a gente estúpida vem sempre morar para o pé da nossa porta?). Em segundo lugar, prender-me definitivamente aos gestos de excelência, às pessoas maravilhosas que os sabem interpretar, como essa garota que me não sai da cabeça, cuja história me repetiram há dias.
«Olhe, professor, então não é que um desses meninos com trissomia se apaixonou por ela! Todos a fazerem troça no recreio e ele a chorar. Então, a garota foi ter com o menino, limpou-lhe as lágrimas, abraçou-o, deu-lhe a mão e levou-o…»
Gosto de vir também por esta razão. Para estar comigo, para pôr estas narrativas na ordem (a nossa cabeça é um caderno caótico), para descortinar lógicas submersas nas máscaras que as coisas vestem todos os dias.
«Aqui tem o seu troco, senhor…»
Gosto da sensação do frio, da brisa veemente que me faz inchar o casaco de náilon e me enche o rosto com salpicos de espuma. Gosto destes prédios à retaguarda, calados, inofensivos, como molduras de vinhetas de banda-desenhada. Gosto destas palmeiras baloiçando, baloiçando agora e sempre que aqui estou, fazendo-me sentir em território amigo, mesmo se o outono obscureceu já demasiadamente a paisagem.
«De modo que a rapariguinha, esta mesma de que estamos a falar, teve um acidente na sexta-feira à noite. Um horror…»
Os ténis têm, é incrível, o seu modo automático de me guiar, de me levar sem que os sinta. Nem dou pelos semáforos deixados para trás, do paredão e dos pescadores solitários, do farol, das rugas de água verde acinzentadas (além quase negras), que crescem e se desfazem no molhe, pelas gaivotas que me vistoriam com o seu movimento circular, pelas folhas de jornal com restos de castanhas assadas que civilizadamente algum transeunte deixou de presente ao mundo.
«A coitadinha tirou carta há tão pouco tempo. O carro ficou debaixo de um camião, todo desfeito, professor! Morreu logo ali! Uma rapariguinha tão boa, tão educada… Um horror!»
Nem damos conta.
As palavras atam-se-nos com perícia. Por mais que as expulsemos, elas têm um modo muito seu de voltar. E nunca vêm sós. Trazem imagens, memórias, cenas inverosímeis. Como este magote que se acotovela do lado de fora da janela da mercearia, onde o senhor da funerária cola o fúnebre papel debruado de preto, com a sua cruz, com a foto, com o nome da rapariguinha bonita, com as informações imprescindíveis, com a dor da família enlutada.
«Sempre lhe digo, professor: vão os melhores e os filhos da mãe ficam, nunca lhes acontece nada… Passam sempre entre os pingos da chuva… Não percebo!»
Não demora a chuva.
Gosto deste lugar, do modo como a cabeça se me enche aqui de vazio. Nem damos conta de como a cabeça precisa tanto do vazio, tanto do silêncio, tanto da sombra, tanto de se apagar como se apaga às vezes o azul do mar debaixo de nuvens tão carregadas de dor como estas nuvens aqui!
«Tenho muita pena deste rapazinho deficiente, nem imagina! Ainda não percebeu bem o que sucedeu à amiga…»
É sempre bom caminhar sem destino, o casaco mais apertado, a tarde levando-me para muito longe (nunca sei para vou nestas tardes em que me vejo sem âncora), o frio lavando-me, a cabeça cada vez mais leve, os ténis voando (em breve estarei noutra dimensão), o mar sempre ao lado, o mar correndo quem sabe, às tantas, dentro de mim.
«Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?» perguntaste. Sabias que responderia com uma negativa. «Não me lembro», «Não faço a mínima ideia», «Meu caro, não sei dizer». Adquiriste, sem que isso me penalizasse por aí além, a expressão triunfante de um retor. «Mas, como podes tu escrever sobre coisas que não vives?», «Que eventualmente não conheces?», «Que desperdiças?».
E dando um jeito ao corpo, corrigindo os joelhos contra o balcão, escorropichando a aguardente, começaste a explicar.
«O nascer do sol. Não é o que pensas. Não é só a luz que vem. Não, meu amigo, o nascer do sol é muito mais do que um show-off da poesia e dos romances cor-de-rosa. Não é só a luz que acende o firmamento. Nem a hora em que os amantes se despedem. Nem a promessa do amor eterno. Nem o instante de quase silêncio em que as palavras se limpam com o ácido do remorso.»
Nada tinhas contra os poetas, fizeste saber. Eles falam da alba, do dilúculo, da aurora dos dedos rosados. «Isso é muito bonito, lá isso é».
«O nascer do sol é um milagre a que me habituei. Levantar cedo para cuidar de uma pequena quinta, como a minha, é mais do que suficiente para aprender os segredos desse armistício entre o dia e a noite. Tudo paira numa espécie de transe. Como quando nos é dada a inesperada chance de começarmos tudo de novo.»
Repliquei que isso era poesia. Talvez a excelente última frase de um romance cor-de-rosa. Juntaste os lábios. Como se me quisesses mandar às favas. O que quer que pensasses vinha cada vez de mais longe.
«O cheiro da terra, por exemplo, é maravilhoso… Um sem-número de ervas e de árvores espreguiçando-se até no lusco-fusco até ao cosmos. Nunca as plantas cheiram tão bem como à noitinha ou de manhãzinha… De um momento para o outro, é a passarada numa algazarra louca sobre os telhados e os jardins… Diz-me tu se conheces alegria mais genuína do que a dos pássaros… O nascer do sol é muito mais do que se pensa… Muito mais do que o lento despertar de cada coisa… De cada roda que volta a chiar na rua, de cada janela que se abre, de cada cabeça entorpecida que espreita por ela… É como se em cada em cada objeto, em cada animal, em cada pessoa, houvesse subitamente um riscar de fósforo… Como se todos e tudo tomássemos parte na convulsão do tempo e do espaço… Não sei explicar bem, pá!…»
Bebias o terceiro ou o quarto copo. Bebias demais. E, no entanto, ao contrário de mim, as palavras pareciam soltar-se-te e com elas os pensamentos. Devia estar tão sério que me deste uma cotovelada.
«O teu mal é andares distraído». Devo ter feito uma careta. Julgo tê-la desenhado. Fi-la de certeza. Prosseguiste.
«Estou convencido que, tal como os lugares se transfiguram e deixam de pertencer-nos, também os nossos gestos precisam de ser reaprendidos… No que me diz respeito, sou agora incapaz de escrever uma frase. Perco-me no meio das palavras. Isto apesar de admirar o efeito que têm sobre nós. A minha vénia, a quem o tem, o talento de as vergar…»
E sorriste.
«Volto ao princípio… Tu escreves… Mas, e desculpe lá a observação, viverás o suficiente para escrever?»
Não era má a aguardente de medronho. Dei um gole mais. Acabei o segundo copo. Reparei que a taberna estava a encher-se de clientes. Pescadores. Lavradores. Operários das fábricas ao redor. Senti fome. Cansaço. Irritação. Não respondi.
«A vida, essa coisa que nos passa por dentro das veias e ao mesmo tempo sobre a pele, num leve torpor de energia, dor, prazer, sei lá…, a vida exige-nos esse ritual…»
O bom cheiro do mar, como a vaga memória de um tempo a que não fui capaz de aceder, tornou-se veemente. Vinha pela porta um aroma de salsugem, limos, sargaço, de iodo, de rocha e areia húmida, de pó, de combustível varreram-me. Estava frio.
«Faz-me o favor de prometer que vais passar a assistir ao nascer do sol… Ao menos uma vez por mês… Ao menos uma vez em cada estação… Verás como todas as coisas passarão a fazer sentido…»
Saí. Estuguei o passo. O cais ficava ali perto. Nuvens de um cinzento azul, ou púrpura, talvez alaranjadas, de um leve rosado, cintavam o horizonte. O sol, como o combinado, não tardaria.