O teatro

Fotografia de Constantin Shestopalov
.

Na aldeia de San Romano criara-se um grupo de aficionados de teatro, que uma ou duas vezes por ano levava a palco uma nova peça, sempre muito aplaudida, fosse qual fosse a qualidade do texto, o rigor da encenação, a exuberância do guarda-roupa ou a beleza do cenário. Investira-se ultimamente numa estrutura amovível de madeira, com uma porta ao centro e duas saídas nas laterais, de forma a permitir a movimentação dos atores e impregnar a atmosfera de um certo sabor clássico, imitativo das tragédias e comédias antigas.

Em novembro, o novo encenador, um bem-intencionado professor de literatura, Carlo Ettori, sugeriu a representação de Bodas de Sangue. A peça deveria estrear em março do ano seguinte, funcionando como uma continuação de A Casa de Bernarda Alba e uma ponte desta para Yerma, que talvez representassem no ano a seguir. Era ambicioso, era curto e ignorante o elenco, escasso o tempo. Mas a magia do teatro, segundo Ettori, consistia em tornar possível o impossível, dar à luz o fruto da obscuridade, arrebatar do público a boa catarse que tudo compensa e nos enche de fascínio.

Ettori não perdeu tempo. Traduziu, à falta de uma boa edição italiana, a obra de Federico García Lorca, enchendo-a de glosas e de apontamentos, na mesma altura em que sondava vizinhos para enriquecerem o grupo. Precisava nada mais nada menos do que vinte e uma personagens, juntando a este número o contrarregra, técnicos de som e de luz, cenógrafos, costureiras, maquilhadoras, além de um ou outra alma caridosa, que pudesse assisti-los nos ensaios, abrindo armários, auxiliando na roupa, distribuindo e recolhendo guiões, trazendo água, varrendo o sobrado, desligando por fim as luzes, encerrando as portas. Seria imprescindível, mais tarde, acrescentar um ou dois miúdos versados em filmografia, entendidos em design, especialistas em tecnologia e comunicação social, tudo para produzir fotografias e vídeos, cartazes e notícias, publicidade e público.

O mais difícil de tudo, porém, era preparar cada um sete “quadros” em que se organiza o texto, alimentar do primeiro para o segundo atos e deste para o último a sensação de poético desconcerto e beleza simbólica com que Lorca nos recebe em cada uma das suas peças. Havia as negras paisagens da floresta noturna, onde os lenhadores esgrimiam supersticiosas frases em forma de lâmina e havia as doces imagens da boda, entre as quais se passeava o marialva Leonardo, arrogante, desafiador, desprezando a honesta mulher pela cobiça da outra, da noiva, da noiva a quem as raparigas solteiras tinham ornado a casta cabeça com flores de laranjeira e cujos olhos viam somente o noivo e depois o viram criminosamente a ele. Havia a lua cantando a sua litania sangrenta. Havia a estranha mendiga que ia aos poucos desvelando (como quem revolve nevoeiro) o bafo de morte. Misturavam-se nessa espantosa produção sonho e mistério, realidade e maravilhamento.

Ettori emocionava-se com os progressos, com as vozes que debaixo dos holofotes faziam vibrar as palavras, com os gestos cada vez mais harmoniosos e obedientes, com o rebuliço nos bastidores, com o entusiasmo com que lhe faziam chegar adereços, tecidos, mobília, objetos de antiquário capazes de fazer recriar o espírito andaluz. Tinha o grupo consigo e dentro de si. Mesmo as crianças sabiam já de cor as suas deixas. Mesma a personagem Morte, tão dura de ouvidos, débil no timbre vocálico e presa de movimentos, conseguia já dar o ar da sua graça, abarcando e engolindo com o seu xaile negro e os seus braços abertos a imensidão da sala, cada um dos pequenos estalidos, a própria respiração do encenador, cujo pescoço no final dos ensaios parecia estar empalado, de tão rígido e dorido que ficava.

Uma das grandes alegrias do teatro é justamente poder descomprimir depois do grande momento. Em palco cada ator é a personificação da vida. Cada fala que diz, cada gesto que faz e refaz, cada movimento que desenha entre poscénio e proscénio, cada olhar que deixa petrificado durante a sua atuação, o tom da sua voz, a dignidade do seu sofrimento, a liberdade do seu riso, o jogo de luzes e de sombras, o acerto do silêncio e das falas, a honestidade da representação, tudo isso era para Ettori a essência desta arte que se confundia no antanho com a própria religião.

Costumava proferir no fim dos ensaios uma breve palestra. E foi numa delas que pediu a Cinzia Pelegrino, a quem cabia o papel de esposa traída de Leonardo, mulher simples e de discreto fogo artístico, que preferisse uns sapatos rasos ou mesmo umas meias grossas. A razão não podia parecer-lhe mais evidente e inofensiva: evitar o sistemático e enervante estampido que os tacões da atriz produziam sobre o tablado. Carlo Ettori escandalizava-se que uma figura tão parcamente espetacular na peça pretendesse nos exercícios realizados duas noites por semana dar tanto nas vistas. Era cada vez mais indisfarçável, quase escandaloso, que Cinzia viesse vestida como uma rameira, abusando dos vestidos de couro, justos e decotados, calçando botas altas, de tacão, procurando destabilizar a harmonia reinante.

Ettori ouvia comentários, percebia os gracejos, media o ódio crescente de mulheres veteranas como Valeria Carbone ou Claudia Rizzo, entendia que no bastidor se compunha uma teia invisível. Cinzia provocava os homens, tinha sem dúvida algum na mira, desejava com toda a certeza desforrar-se do pouco protagonismo que Lorca e, ele próprio lhe destinavam. A Carlo Ettori só lhe faltava essa, que uma puta lhe estragasse os planos. Não foi simpático o diálogo que se seguiu. Cinzia não se conteve. De dedo em riste, fez saber que tinha “tudo no sítio”, tinha “uma boa cabecinha para pensar, olhos para ver e boca para falar”. Ser “divorciada” não tirava no seu entender nenhum um pedaço à condição de mulher digna, emancipada, moderna, bem pelo contrário. Disse-o diante de todos, atirou-o com uma malignidade feroz, cravando no encenador olhos felinos e ardentes.

Ettori, perplexo, atrapalhado, com um lápis e um exemplar de Bodas de Sangue nas mãos, demorou a responder. Tinha ali a sua personagem mais veemente, o Leonardo que lhe faltava. Se nos ensaios este lhe parecia frouxo (não havia meio de Mattia Fiore deixar de lhe parecer pusilânime e artificial no seu papel de protagonista), ela, a mulher traída, cuspia lume e revolucionava.

– Não faltava mais nada. Nem o meu ex-marido me ditava o que vestir. Eu visto-me como quero. Ninguém tem nada a ver com o que visto ou deixo de vestir!

– Senhora Pelegrino, não confundamos as coisas. Não me interessa a sua condição civil, as suas preferências indumentárias, a relação que possui com o passado. O meu papel aqui é de olhar pelo grupo, nada mais. Nada de pessoal, nada de particular. Nas minhas peças, os atores fazem o que eu peço. A partir daqui, fora daqui, a senhora vista-se e calce-se como quiser. É problema seu…

Havia uma grande ansiedade no rosto de todos. O anfiteatro pesava tremendamente sobre os ombros de todos. Acrisolava-se a disputa. Ettori desferiu a ameaça.

 – Pois muito bem. A senhora aqui veste-se como eu lhe digo. De outra forma, pode sair e não volte.

– Mais depressa sai o senhor. O grupo sabe organizar-se, não precisa de si para nada!

O encenador fez uma ronda com o olhar. Os atores e o pessoal baixavam instintivamente os olhos à passagem do seu rosto. Percebeu que a cobardia tomara posse daquele amontoado de amadores, habituados a literatura basculha e a teatro de revista da qualidade mais medíocre que se fabricava na província. Poisou o lápis e o guião e saiu em silêncio.

Ninguém o seguiu. Ninguém lhe rogou que regressasse.

Daí a semanas a peça estreou. No folheto não constava qualquer referência, alusão ou implicação do grupo de teatro de San Romano com o professor de literatura e tradutor. A própria fotografia do cartaz era uma mise-en-scène sua, apenas adulterada pela pose atrevida, ridícula, da mulher de Leonardo, que também aí surgia como um macho diminuído e não como o protagonista da tragédia.

Carlo Ettori sentiu-se enojado. Sempre amara a arte de Dioniso, mas aquele golpe teatral, aristofanesco, ardiloso, absurdo, fazia-lhe pensar numa peripécia de ópera bufa. Era uma punhalada nas costas. Lorca haveria de abominar aquilo. Mas quem se importava?

.

O que é um grande poeta?

Fotografia de Aaron Burden

.

O que é um grande poeta? Sim, um poeta, digamos, da dimensão de Homero? De Safo? De Petrarca? De Shakespeare? De Baudelaire? De Breton? De Celan? De Herberto Helder? O que é preciso em rigor para se ser um?

Um professor de literatura garantia há não muitos anos que a comparação de grandezas, fosse entre poetas, impérios ou galáxias, depende muito mais do nível de satisfação sexual dos observadores do que da massa, densidade, tamanho ou longevidade dos observados. A frase chocou. Uma vez, duas, três vezes, sempre. Porque este professor de literatura parecia não levar nada a sério, mesmo quando publicava artigos capazes de rivalizar em erudição e hermetismo com Husserl, Russell, ou Georges Steiner. «A grandeza ou a pequenez é, antes de mais, coisa para se averiguar na casa de banho [sic], com a ajuda de uma vulgar régua de desenho…» Extravagâncias…

Não que não existisse por ali uma pontinha de génio, como anotaria Eça de Queirós. Não que não houvesse mesmo um fundo de verdade, uma frincha para a luz, digamos, porque havia. Havia até uma resposta para essa malsinada pergunta que me ocupa o título da crónica e a cabeça, não agora, mas desde os vinte anos. Porque alguma coisa subsiste de inútil na comparação de factos, de factos que só seriam efetivamente comparáveis num universo regular e coerente. E o nosso é tudo menos regular e coerente. Menos ainda eterno. Um dia destes as estrelas apagam-se, as galáxias esgarçam-se, o Big Bang perde a sua imensurável força, encolhe (ou será que explode? Ou que implode?) e cá se acabam as comparações…

Mas, mas (e insisto no mas), um leitor de poesia sabe distinguir o poema que agrada do poema que faz tremer as mãos. Sabe diferenciar o poeta bom, que se saiu (afinal) bem com a aguardente de medronho, do poeta que nos leva às lágrimas. Não falo dessas lágrimas sujas de rímel e pó de arroz, mas daquelas que verteu Mecenas e Otávio César Augusto: lágrimas de espanto. De incrédulo reconhecimento da perfeição. De agradecimento!

O leitor de poesia sabe comover-se com a Ilíada. Uma epopeia, uma batalha que decorreu (se é que alguma vez teve realmente lugar) algures na costa turca, onde os gregos (ou os seus antepassados) semeavam uma zona de influência. Homens matam, homens morrem, uns heroica, outros covardemente. Outros sobrevivem. Um, o mais singular de todos, volta as costas à querela, furioso com o chefe da sua hoste, o pastor dos homens, que o maltratou… O leitor de poesia vê que os deuses conspiram, (uns por despeito, outros por amor), vê que as mulheres e filhos dos troianos se assustam com o fragor das sucessivas batalhas. Que esse terror é ainda o nosso terror, que essas mães e essas crianças são ainda as nossas e foram as de sempre, em toda a história ensopada de sangue, que é a nossa!

Em contrapartida, o leitor cansa-se com a interminável subida das almas ao Purgatório de Dante. Sente-se torturado pelos maneirismos de Gôngora, nos floridos de Boileau, com as exasperações românticas de Byron. E coça a cabeça (por não saber muito bem o que achar deles) ao ler alguns poemas do Pessoa ortónimo, que são muito alarido inteletual, muito enfatuamento estilístico, um não-ir-a-lado-nenhum, como um cachorro em círculos, abocanhando a cauda…

Porque a mesma infinita embriaguez que nos faz delirar lendo em voz alta ou em silêncio, as grandes odes de Walt Whitman, Álvaro de Campos ou André Breton, a mesma corrente elétrica que percorre os textos megalómanos de Ruy Belo, a mesma satisfação que se sente no final dos inteligentes poemas de Wisława Szymborska ou Tomas Tranströmer, a mesma finura e delicadeza que entrelaça os versos de Elaine Feinstein, a mesma densa metáfora de Salah Stétié, a mesma musicalidade de Fiama Hasse Pais Brandão – particularmente na última fase –, é a que nos faz amadurecer a razão para a grande poesia de Píndaro, Anacreonte ou Alceu, para o poder de concisão (e precisão) da poesia japonesa, para o gosto pela luz crepuscular (primeva versão da nossa saudade) da poesia árabe, para a vastidão filosófica da poesia persa, para a metáfora metapoética da poesia chinesa (a que primeiro denotou um amor narcísico pelo desenho gráfico), para a violência dos elementos da poesia escandinava, etc…

A questão mexe por dentro, como um pinto dentro do ovo: o que é um grande poeta? O que distingue um fundador de um imitador? Um poeta capaz de atingir a essência de um poetastro que a circunda eternamente? Um Homero de um Horácio? (Porque Horácio nunca me seduziu, nem mesmo na famigerada Epístola aos Pisões) O que separa a água consoladora de um poema de Lorca, Auden ou Jabès da água tonta, inquinada, ácida de tantos e tantas que se dedicam a multiplicar títulos, a elogiar perversões, a gastar ideias, a alimentar mediocridade, a repetir, repetir, repetir…

O que é, em suma, um grande poeta? Um poeta do clube restrito de Omar Khayyām, JalāladDīn Rūmī, Pierre de Ronsard, Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot ou Sylvia Plath? Um que não desmerecesse a companhia de Kavafis, Pessoa ou Miłosz?

«Uma bizantinice, uma questão de lana caprina!» garantia o reputado professor de literatura…

Mesmo assim, quem deixa de o perguntar?

Não será um grande poeta, aquele que ocupa a estante principal da nossa biblioteca? Aquele a quem conhecemos composições inteiras de cor, a quem citamos o vulnerável equilíbrio de uma verdade incrustada nas suas palavras? Não será um grande poeta, aquele que, por (in)voluntário incitamento, por seu exemplo, por sua inspiração, por contagiante mestria, gera outros grandes poetas? Não será aquele que, pretendendo-o ou não, acaba por produzir palavras, textos, ideias que nos servem de referência – como de referência são os Evangelhos e o Corão, a bondade universal, a palavra ahimsa e o nirvana, o amor de uma mãe, a limpidez da água numa nascente, ou a fraternidade entre todas as criaturas no nosso mundo?

Um grande poeta é uma resposta, provavelmente individual, provavelmente consensual, ao espaço mais fundo que a consciência, a fé, a memória e o sonho demoraram a construir em conjunto no nosso espírito! Um grande poeta ocupa o lugar vazio que a vida sublimemente cava com o passar dos anos. E só ele pode ocupá-lo, como só ele pode desocupá-lo.

Quando lemos no Canto VI da Ilíada o desespero de Andrómaca, o susto de Astíanax, a réplica enternecedora de Heitor, é precisamente esse vazio o que nos permite absorver cada pedaço da cena e amar cada uma das belas palavras com que Homero nos solda ao sofrimento das personagens: («Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará! / Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim, / desafortunada, que depressa serei a tua viúva.»; («Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me / envergonharia dos Troianos de longos vestidos, / se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.»

Quando se lê ao longo dos vinte e quatro maravilhosos cantos deste poema símiles, sentenças, imagens, metáforas semelhantes a «palavras apetrechadas de asas», «a morte chega a quem nada faz e muito alcança», «a escuridão cobriu os olhos», «Por toda a terra espalhava a Aurora o seu manto de açafrão», «Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.», é ainda a sublime poesia a que nos imprime a mais viva emoção de um encontro: o que une a gramática à prosódia, a sabedoria e a transfiguração estética.

Colecionei com os anos incontáveis volumes de poesia de todos os tempos e lugares. Com eles forro o meu escritório e o meu quarto, procurando resposta a essa que julgo ser uma questão fundamental. Porque saber o que é um grande poeta é ser capaz de reconhecer o que é a poesia na sua dimensão mais pura. Leio-a todos os dias. Leio-a desde sempre. E, com Simone Weil, creio bem que nenhum poema se superiorizou, ainda, ao canto homérico, particularmente ao de Ílion.

Assim sendo, um grande poeta será sempre o mais parecido que houver de ser de Homero. O mais parecido que houver de ser da espantosa vivacidade da Ilíada, da coexistência de carnificina e amor, sublime poético e calão, arcaísmos e uma notável intemporalidade na leitura da condição humana…

Porque é a intemporalidade a que arbitra a questão. E é essa intemporalidade de Homero (seja ele um único homem, ou vários) a mais espantosa resistência e a melhor prova de o primeiro amor é o melhor amor de todos!

.