Cada vez que regressava, a jovem punha-se a murmurar uma indecifrável ladainha ao rio. Era uma coisa antiga, um esconjuro que aprendera em criança com velhos da sua terra. Se alguém dava conta desta crença, ela punha-se a divagar sobre os mistérios que correm debaixo das águas enevoadas e que de manhã cedo se erguem como almas em farrapos ao céu.
Em todo o caso, as orações em língua estrangeira pouco nos importam. Apenas na nossa fala compreendemos a angústia e o sentido das ameaças ou das alegrias que deslizam sorrateiramente das florestas aos rios e destes ao mar. Na boca dos outros que mal-entendemos tudo nos parece distante e frio, como garatujos que os antepassados escreveram nas pedras.
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Esperava amar e ser amado. Porém, ela deixou-o e no lugar do amor ficou o ressentimento.
Deu-se conta, no início, de que o irritavam os risinhos dos jovens casais na rua, o estalar dos beijos entre sucções bruscas (por causa da pastilha elástica), o efeito moroso de certas interjeições demasiado teatrais.
Depois tornaram-se-lhe abomináveis os operários da construção civil, rebarbando eternamente pontas metálicas. E os táxis buzinando a toda a hora e em toda a parte. E as sereias das ambulâncias. E os apitos dos elevadores e dos micro-ondas. Com o tempo, o seu ódio estendeu-se aos latidos dos cães à noite, ao miar imaginado do persa que ela levou depois do divórcio, à algazarra das crianças no recreio ou no parque defronte o seu apartamentozinho. Não tolerava os estalidos de madeira, o zumbir do frigorífico, o súbito aumento de decibéis no intervalo dos programas televisivos, o timbre metálico de certas vozes que o chamavam, interpelavam, interrogavam.
A misofonia e crescente misantropia eram nomes, uma explicação. Nada mais.
Nos sonhos, a cena do crime e o cadáver profanado, desfeito, transportado com empenho e ardil até ao alto do paredão e trinta e três vezes lançado à albufeira em trinta e três meticulosos e sinistros sacos herméticos, todo esse empenho vinha à boca e ele falava. Os pesadelos dobravam-no, enlouqueciam-no. Eram como terramotos que retorcem e amesquinham o aço.
Esse o seu castigo.
Ninguém suporta que lhe digam, especialmente nos sonhos, que até a vida indigna de um assassino o é por alguma razão. Que até para ela há um sentido, uma cura, um perdão.
Ao sol está agora uma roupa tão branca que parece, sob a força do primeiro, uma cascata de lâmpadas acesas. O jovem padre olha-a enternecido. Gosta de contemplar a castidade onde quer que ela se encontre.
Na sua terra natal, a esta hora cheirará ao preparo das cozinhas, a alho e a azeite, a refogados e a estrugidos. Em breve rescenderá a peixe frito. No lugar onde costumava beber o seu café matinal, três esquinas adiante da velha Sé de pedra basáltica, ver-se-á o recorte da costa no Atlântico, a sombra azul das ilhas desertas, e há de misturar-se no corpo atento de quem ali um instante repousar o lume roxo dos jacarandás, a aragem das casuarinas e araucárias, o travo vestigial e amargo do café, o paladar doce do papel velho, o ruído manso dos transeuntes na Baixa e pela marina.
Mas vive agora na grande cidade. Aqui são o rio e o Cristo gigante de braços abertos que dominam a sua atenção. E essa luz forte que chega a doer. E esse rumor indecifrável de um milhão de coisas simultâneas e em conflito entre si.
O padre bem se esforça por anotar ideias, juntar frases, trazer de volta o seu dom. Depois do serviço religioso, vem até esta parte. Caminha largos minutos a pé, em absoluto silêncio, procurando absorver a paisagem. Visita os jardins, vê os telhados, escuta os barcos no meio do azul. Os novos paroquianos saúdam-no. Ele acena-lhes. A brisa de junho é macia, impregnada no aroma das tílias.
Morar aqui não é assim tão diferente de viver lá.
E, no entanto, a poesia ainda não regressou. A sua alma verdadeiramente virá quando ela vier, somente quando ela chegar. Entristece-o saber que assim é e que assim será. É uma espécie de pecado mortal que não pode sequer confessar.
A rapariguinha estugou o passo. Não demoraria a chuva. Era uma tarde estranha, uma rua comprida, uma gente de rosto frio. De quando em quando, sempre que a acometia ao de leve uma suspeita, uma voz mais alta, uma ameaça, acariciava o ventre: bendito o fruto que ali devagar, desapressada, maravilhosamente, crescia.
A rapariguinha levava as golas do sobretudo erguidas, a bolsa a tiracolo, o coração aos pulos. Queria chegar a casa, descalçar os sapatos, abrigar-se no seu canto, sentir o aconchego das paredes e do silêncio, ser tocada pelo pulsar dos objetos conhecidos. Havia muito de umbilical ali: uma promessa de conforto, uma sensação de perenidade e de paz, uma resistência contra tudo e contra todos. Era dentro dela que gostava de pensar, de sonhar o futuro, de acalentar o rebento por nascer.
A rapariguinha à noite, quando ninguém a poderia escutar, dizia ao gato e ao sofá e às lâmpadas acesas, dizia como quem gostasse de ser ouvido «Este meu filho triunfará», «A este menino não faltarão o amor ou que comer», «Ninguém fará mal a esta criança, que eu não deixo».
A rapariguinha estremecia ao murmurar estas palavras. E era toda ela uma coragem, toda ela uma certeza, toda ela o encarnar de uma força desconhecida. E não chovia. E ninguém se atravessava entre si o tempo. E nenhum perigo se aproximava sequer do filho acalentado. E ela era tão franzina. E a criança tão pequena.
Teodorico, o Rei tinha-o mandado chamar e ele foi. Três dias de jornada até perto da capital, até à praia onde o esperava um ror de gente. O desgrenhado eremita entrou no areal, trajando farrapos, segurando um longo cajado, sem um esgar de ansiedade, medo ou hesitação. À medida que avançava para o baldaquino ou tenda real abria-se à sua frente uma clareira de espaço e de silêncio. Por fim, João deteve-se diante do monarca.
Teodorico levantou-se impressionado e deu um pequeno passo na sua direção, mas o monge barbudo recuou um passo maior ainda. Depois, em modo de compasso, o monge escreveu com o cajado um círculo na areia. Ninguém poderia nele entrar, sob pena de extrema maldição e vergonha para a posteridade. O bispo enojou-se do cheiro e do aspeto dos seus andrajos, os nobres arregalaram os olhos, o povo sussurrou.
Teodorico sentou-se e disse:
– Bom homem, agradeço que tenhas vindo. Há muito que te procuro. Os meus batedores trouxeram a boa notícia de que vinhas. Sei da tua santidade, conto com ela para que me ilumines o pensamento!
Os guardas trouxeram então, atados e sujos, sem sinal da anterior opulência e de magnificência, o deposto Almostancir e seis dos seus filhos, califa e senhores das ricas províncias do sul, terras ímpias e infiéis, em cujos palácios se cultivava agora o hábito de lançar seguidores da religião de Cristo a covis de leões e de víboras.
Teodorico não sabia que destino dar a tais prisioneiros. Confundia-o o amor devido ao próximo e o ódio merecido a estes distantíssimos inimigos da fé. Dar-lhes a morte atentava contra os preceitos, deixá-los vivos contra a vitória dos seus exércitos e a segurança do seu império.
– Este homem, rei nascido e agora execrado, matou impiedosamente, com ódio absoluto, incontáveis dos nossos irmãos. Quis a mão de Deus que se fizesse justiça. Tu, o mais desapegado dos filhos de Deus, que escolheste as montanhas para refúgio de todos os perigos do mundo, dirás o que fazer com ele e com os seus descendentes!
O monge ouviu estas e todas as palavras de Teodorico.
– Escutei as palavras do nosso bispo (o bispo afetou uma vénia ao ser apontado pelo rei), escutei as palavras dos meus generais (os chefes militares endireitaram mais o tronco), escutei os homens mais sensatos de entre os mesteirais e camponeses (os representantes do povo ergueram orgulhosamente o rosto), mas em boa verdade o digo: Deus por ti falará!
Viviam-se tempos agónicos, apocalípticos. Nunca como então, no virar do milénio, se desejara com tal veemência o ouro, em lado nenhum como ali se desprezava tanto o sagrado exercício de Paulo de Tebas, Antão ou Macário, santos anacoretas. Era preciso que as Escriturasvoltassem a ser lidas, era preciso que as palavras de Jesus voltassem a soar, nesse terrível século de lutas, limpas e desembestadas, como soaram outrora nas praias da Judeia.
O eremita olhou o rei nos olhos, profundamente, demoradamente, afetivamente. Depois sentou-se no meio do círculo, fechou os olhos, cruzou as pernas, colocou sobre elas o bordão e permaneceu imóvel, ausente, sem uma palavra, durante muito tempo. Teodorico, inquieto, escutava os cochichos crescentes dos conselheiros, o murmurar da multidão, o abespinhar das ondas, o grito selvagem das gaivotas.
Por fim, cansado, impaciente, cheio de tédio, perguntou.
– Então?
O asceta abriu os olhos de novo, levantou-se, fitou o céu e, brandindo o cajado, declarou:
– Porque me perguntas, Teodorico, o que tu próprio sabes já?
O corpo dos prisioneiros pendia, exausto, macerado, sem esperança. Teodorico, o Rei voltou a inquirir.
– Como podes tu saber o que eu sei?
– Foste ungido. A tua semente nasceu da semente d’Aquele que entre nós viveu um dia, as palavras d’Ele habitam as tuas palavras, o que Ele disse tu o dirás… Não perguntes mais!
Depois, perfurando pelo meio da multidão, pelo mesmo caminho por onde veio, o eremita partiu, infundindo nela o mesmo temor de antes. Afastavam-se os homens à passagem, juntavam as mulheres curiosas cabeças nas suas costas. Em breve desaparecia, sumindo-se na floresta que havia de o levar aos lugares trogloditas onde gastava os seus dias.
O monge dissera nada e tudo dissera. As suas palavras eram a afirmação de uma ideia, mas podiam sê-lo também da ideia contrária. Teodorico, perplexo, quis saber o que pensavam os outros da enigmática resposta do monge João.
Era um doido, declarou o anelado bispo: a resposta dele era um opróbrio, uma estultice, uma marca do demónio. O que o eremita quis dizer era óbvio, defenderam os generais, olho por olho, dente por dente: aqueles cães moiros mereciam ser atirados a um poço e deixados apodrecer à fome e ao frio! Isso não, corrigiram os homens do povo, devia era negociar-se a sua vida, exigir-se os resgates devidos a um rei e a príncipes: se o nosso dinheiro é útil, o do inimigo é-o duas vezes mais, para curar as feridas da guerra!
Teodorico levantou-se. Todos se ajoelharam.
Era mister que olhasse para o fundo, para dentro, para onde não podia mais enganar-se. Ele sabia, sim. O monge acertara. O paradoxo é inerente à condição de mandar.
Beijou a cruz que trazia no peito e ergueu-a para que os infiéis conhecessem o novo poder. Depois, brandindo a espada fê-la descer sobre as odiosas cordas que sujeitavam os cativos. Libertou-os, sem saber porque o fazia ou com que riscos. Ordenou que os montassem nos cavalos saqueados.
E eles foram, pelo mesmo caminho do eremita, a caminho da floresta. Ninguém sabia em direção a que deserto.
Foste a única pessoa que conheci até hoje que não matou um único animal. Exceto talvez os piolhos, se os tiveste alguma vez. Exceto talvez as lombrigas… Foste a primeira pessoa a recusar, numa célebre vindimada, a cabidela da minha avó e a provocar o caos nos grandes potes de ferro, onde a galinha acabava de cozer sob a vigilância de minhas tias e progenitora.
‒ Ó minha mãe, o que é que o homem vai comer?
‒ Eu sei lá o que é que ele vai comer! Olha, come um caldo de coibes!
Cheiravas a sabão clarim (nunca me lembro da feição das pessoas, mas dos cheiros sim – fica-me deles a fotografia penetrante e inesquecível): a camisa de linho arregaçada nas mangas, as calças com suspensórios, as socas de grandes tachas douradas nos pés, a navalha nas mãos e o perfume do sabão (será sempre o melhor de todos), como se nenhuma mácula pudesse tocar-te.
Vejo-te ainda, velho amigo, sentado na mesma tampa de cimento do poço, os cães aninhados entre as tuas pernas, os pássaros a comer-te das mãos (bicando por entre os dedos grossos e cheios de cicatrizes), os pintos amimalhados seguindo-te no quintal, a abelha amestrada que exibias com gosto mas sem vaidade. Vejo-te ainda na mesma posição, quieto e profundo, como um apóstolo fora do tempo.
‒ Isto aqui é uma paz… Assim que debe ser…
Porque aquilo ali, a casa do avô, tinha o seu quê de pacífico, entre eucaliptos e carvalhos, caminhitos de terra batida, tanques e regos de água, ervas e nastúrcios, um cento de plantas de todas as formas e aromas… Aquilo ali era uma paz. Vinham os andorinhões e as magníficas pegas-rabudas… Vinham os ouriços-cacheiros e às vezes a raposa… Vinham os soberbos torvelinhos de ar puro dos campos, das magnólias e árvores de fruto de ao redor da casa.
Mas era com a bicharada que te entendias melhor.
Era com ela que partilhavas a alegria do verbo durar. E os bichos pareciam compreender-te, procurar-te, querer-te. Os gatos preferiam o teu colo. Os pardais respondiam aos teus assobios. As borboletas vinham poisar-te na nuca. As pombas gingando o pescoço pareciam dançar para ti. Vejo-te, ainda, sorrindo e fechando os olhos, como um franciscano fora do tempo, enternecido e um pouco doido.
Uma vez vi-te a ajudar um louva-a-deus a pular a parede até à esquadria da janela e a convidá-lo a ir.
‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…
E o louva-a-deus, como iria um aranhiço, uma formiga ou uma mosca enjaulada, foi.
‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…
Lá, em casa do avô (onde, tocados pelas recentes modas francesas, subíamos escaleiras no lugar das escadas e nos deliciávamos com a chofagem, que ventilador era coisa que não se dizia), todos te julgávamos c’est fou, um c’est fou adorável, adorável e raro, por causa daquela coisa nas minas.
– Trabalhei acajo quinze anos nas minas de Llombera, em Espanha. Aquilo era duro… quinhentos metros abaixo do chão, ou mais …
Andava já na escola. Quinhentos metros eram dez vezes seguidas o nosso recreio. E sempre para baixo, como num abismo.
‒ Nem as mulas queriam ir… Bem lhe punham bendas nos olhos, mas as coitadas já sabiam pró que iam… Punham-se a dar pinotes…
‒ Ó Sinhor Romão, e as mulas iam lá pra baixo porquê?
‒ Atão? Para ajudar nos bagões…
Não há quem resista a uma boa história contada na primeira, nem a uma boa crónica revista na terceira pessoa. Nós éramos olhos e ouvidos e um nariz. Um bando de miúdos esquecidos das mãos, das fisgas e das caixas de fósforos, caçando imaginariamente o breu e os sons que subiam da terra, aonde tu te entranhavas doze horas por dia, de picareta em punho.
– Depois sucedeu o que tinha de suceder.
– O que sucedeu?
– A explosão.
– Qual explosão?
– Foi um arrebentamento… Um morreu logo. Outro morreu depois. Eu fiquei todo desfeitinho, as tripas bieram cá para fora, mas escapei… Para dizer a berdade, não sei como escapei!… Tiberam de as pôr num lençol. E cum elas assim postas à minha beira fui parar ao hospital… Depois disso nunca mais trabalhei…
Imagino agora, à distância limpa em que os factos se veem melhor, o relâmpago ensurdecedor, o sismo nas galerias do inferno (tábuas esfarrapadas, o elevador avariado, o urro das alimárias), o cadáver e os corpos esfacelados, o sangue espirrado nos filões do minério, o pânico nos olhos imersos em escuridão, em suor e em cansaço, tu levado numa ambulância anacrónica, desde as montanhas até Madrid, moribundo, com as vísceras ensacadas num lençol arranjado à pressa.
Foste a única pessoa que sabia já em miúdo ser uma pessoa única. E eu respirava o cheiro do sabão, sem poder compreender que aquela tua serena brancura ao sol (a navalha nas mãos, as socas de grandes tachas douradas nos pés, as calças com suspensórios, a camisa de linho arregaçada nas mangas, em cima da tampa do poço) pudesse alguma vez ter sido conspurcada pelo horror de uma noite tamanha.
Escrevo para ti, Romão, com saudade. Cada vez mais preso a esse maravilhoso arquipélago formado pelas memórias, intocado e intocável, onde sobressaem rostos e nomes e façanhas. Talvez por compreender cada vez menos este oceano desprezível de dias informes e sem fundo. Tu eras soberbo (um c’est fou) e eu devia-te, devo-te há muito, este texto. Se em algum lado estiveres, um abraço, o meu abraço, velho amigo!
A meio e no alto do bosque fica o eremitério. Escassa gente atravessou estes portões nos últimos cem anos e nas centúrias anteriores quem o fez pôde descrevê-lo como nós o descreveremos agora: é um lugar ermo, tosco, bendito, impoluto.
Os adjetivos nada dizem, reconheçamos. Haverá quem deseje um relato pormenorizado sobre as suas escadarias, sobre as suas varandas e jardins incultos, sobre a cozinha com forno e celas desertas, sobre o oratório. Mas nem esses serão bem sucedidos. Não há que descrever mais do que paredes e arestas descarnadas, granitos com manchas de humidade e tenebrosos entrançados de silvas ameaçando o lintel das janelitas, junto à cumeeira do tugúrio.
Tudo se mantém inalterado desde a era dos primeiros santos que aqui resgataram a sua existência ao bulício e ao sorvedouro das grandes cidades. A natureza só não submergiu por completo esta edificação pelo caridoso ofício do irmão Anthony Montague, a quem cabe a guarda destas vetustas e gastíssimas lâminas, com que vai limpando como pode as balaustradas, os tetos e as esquinas de pedra musgosa.
Mas o visitante importar-se-ia sobretudo com o silêncio.
De manhã à noite, a maior gratidão do eremita é para o depurado silêncio que brota de todas as coisas em redor, por fora e por dentro de tudo. O bom silêncio envolve-o numa paz profunda e ao ter-se a ele acostumado de tal forma disciplinou o ouvido que alcança facilmente os mínimos estalidos, os mais distantes assobios, o sussurro da água nas fontes do bosque, a súbita mudança do soprar do vento na cabeleira dos pinheirais. Ao mastigar o bocado de pão à noite, os estertores da boca ou o crepitar da lenha tornaram-se palavras inteligíveis de que gosta mais do que das antigas, cujo significado lhe pareceu tantas vezes embaciado e inútil. Mesmo as orações, que medita e repete várias vezes ao dia e durante o serão, prefere pronunciá-las sem articular a língua, dizendo-as com o seu timbre de voz interior, tão belo e abafado tanto tempo. O silêncio tornou-se o seu modo de estar com Deus e o único motivo por que vale a pena continuar vivo.
Montague vive no eremitério há somente cinco anos. Veio de Dublin, onde foi casado e onde exerceu os cargos mais distintos na vida política e também na empresa multinacional EMPIRE.
Depois de nesse dia de outono ter contemplado na paisagem a formação de bulcões, sobre uma brisa quente e pressaga, lava-se agora à chuva abundante da noite com um quadrado de sabão. A tempestade faz as sombras mais suspeitas, com rebrilhos de relâmpago. Ao lume tem o eremita o seu caldo de feijão e sobre a mesa o De Civitate Dei, que vem há muito decompondo gulosamente em epifania e amor pelo próximo.
Depois de se secar num monte de trapos, sentindo a pele exalar o doce torpor da purificação, Montague dirige o olhar para o firmamento. Há no imo da sua alma qualquer reminiscência druídica, pois a natureza por si só o comove como um deus e lhe apetece alimentar-se de raízes e ervas para reencontrar um caminho perdido.
Escuta então um restolho. Um restolho e um gemido. Julga ouvir, também, o mover das bisagras e o raspar de metal sobre um lancil. Não tem dúvidas de que algo ou alguém vem aí. A pele empola-se, os pelos estão eriçados. Nunca lhe sucedeu igual. A sua santidade, tão duramente procurada nestas paragens, não o impede de apossar-se do tronco de carvalho que lhe serve de cajado e de o projetar defensivamente. É uma arma tão boa como qualquer outra e não tendo outra é esta melhor ainda. Um halo argênteo e azulado corre as paredes, invade-lhe o interior do casebre. Prepara-se para brandir o que segura nas mãos, quando uma voz o imobiliza.
– Olá, está aqui alguém?
II
A rapariga sorria e agradeceu muito o cuidado. Encontrar um chão seguro, poder abrigar-se da chuva e comer algo quente era muito melhor do que podia esperar. Não sabia explicar como ali fora parar, apenas que se perdera do seu grupo e que caminhara sozinha e desesperada durante horas, especialmente depois de anoitecer.
«Graças a Deus, descobrira aquele oásis no meio do deserto!»
Montague, aturdido, envergonhado, estremeceu ao som da palavra «Deus». Deitou uma concha de sopa no prato dela. Achou que talvez fosse avareza. Serviu-lhe outra concha. Não sabia se devia sentar-se a seu lado ou se devia comer num canto da cozinha. Ela falava, falava depressa, repleta de gratidão e de ruído. Como a rapariga não se decidia a começar a comer e o olhava fixamente, ele sentiu-se na obrigação de a acompanhar. Partilharam a refeição, depois de rezarem. Montague não percebia bem o que ela dizia, não tanto pela rapidez da sua fala, mas sobretudo porque o coração lhe batia descompassado e lhe tolhia a lucidez.
«Vivo muito perto de Cardiff, mas sou de Bristol. Na última década vivi em sete países diferentes. Adoro explorar a natureza, sabe? Passo a vida a viajar e a fotografar os sítios mais encantadores do nosso planeta…»
O lume, avivado pela mão diligente do eremita, parecia mais rubro que um rubi. Na face angulosa do granito, a silhueta da rapariga aparecia distorcida, como se da cabeça aos pés inúmeras hastes se descobrissem e a tornassem monstruosa. Por outro lado, a sua voz, vencida agora pelo cansaço e pelo sono, era menos vigorosa, mas muito mais dócil, quase sedutora.
«Quase não abriu a boca… E eu tão tagarela… Fale-me de si. Afinal, é o meu querido salvador… O que seria de mim, se o não tivesse descoberto esta noite?»
Os pelos dos braços e das pernas de Montague voltaram a erriçar. Depois de ter desaprendido determinadas facetas do mundo, aquela linguagem perturbava-o, tornava-o de novo refém de um mecanismo de que se libertara, a seguir à morte da sua mulher, muitos anos antes. O silêncio e o isolamento trouxeram-lhe o caminho do êxtase e encerraram atrás de si portas e corredores de cuja memória não estava já muito certo.
«Não sei o que lhe diga… Vivo só… Aqui… Há muitos anos…»
«Meu Deus, estou tão fascinada! O senhor é um daqueles santos, que se afastaram do mundo para conquistar o direito ao Paraíso!… Tão bonito!»
«Sim.»
«Não consigo imaginar o que tem sido viver longe de tudo! Sem conforto. Sem tecnologia. Sem o toque de uma outra pessoa!»
«Vivo com Deus.»
«Mas Deus é amor. Deus quer que nós amemos, que nos amemos uns aos outros!»
E ao proferir as palavras «Deus» e «amor», a rapariga soergueu o tom, como para espicaçar o entendimento de Montague. Sorria. Para sublinhar o poder do seu raciocínio, colocou-lhe a mão por cima da sua própria mão. O contacto da pele delicada com a pele áspera surpreendeu mais o eremita do que a afoiteza das palavras. O sorriso da rapariga fê-lo recuar. Precisava de retirar-se para orar. Tinha já passado o tempo devido.
Então, a rapariga aproveitou para lavar os dois pratos, estender o saco-cama, cuidar como podia da higiene pessoal. Depois despediu-se do anfitrião, sorriu com um «Boa noite, meu salvador!» e deitou-se.
Montague, mais uma vez, não conseguiu decidir entre usar a sua cela ou acompanhar a rapariga. Não raras vezes precisou de lidar com vermes e répteis, atraídos pela humidade ou pelo calor daquele antro. Receou que soasse a má criação não velar pelo sono da sua visita. Tanto mais que as horas noturnas durante as tempestades lhe pareciam um ensejo para descortinar a vontade de Nosso Senhor.
Ficou, por isso, diante da lareira, não muito longe do perfume que a rapariga exalava e que o entontecia. Era como uma tentação.
Rezou. Pediu perdão a Deus por todas as impurezas que nesse final de dia o pudessem ter cometido. Especialmente, quando se lembrou de Rose, a sua falecida mulher. Porque se lembrou dela nesse final de dia, sim, não da Rose murchando numa cama de hospital, mas da Rose do namoro e do casamento, bonita e insensata, que o desafiava a toda a hora, sem temer ou admitir sequer a têmpera do pecado.
«Não consegue dormir? Ou simplesmente nunca dorme?»
Montague estremeceu. A rapariga dirigiu-lhe nova pergunta.
«Assustei-o?»
«Não.»
Apesar da fadiga, do calor da fogueira, do som aconchegante da água precipitando-se das alturas, a rapariga explicou que não conseguia adormecer. Intrigava-a aquele modo de vida de Montague, aquela decisão de voltar as costas ao mundo, aquele silêncio e solidão no alto e no meio da floresta.
«Não voltei as costas ao mundo…Voltei-me para Deus…»
A rapariga abriu o fecho do saco-cama, soergueu-se (dorso encostado à mochila) e, iluminada pelas achas, disse que também Zaratustra viveu nas montanhas, mas que ao cabo de dez anos, segundo as sentenças de Nietzsche, precisou de voltar para junto dos seus semelhantes.
Um pouco depois, o eremita e ela, na mesma posição em que haviam jantado, estavam um dia diante o outro, sentados à mesa. No mesmo tom sereno, no mesmo ritmo apaziguado, disse muitas palavras doces. De quando em vez, a rapariga mexia no cabelo e sorria. A camisola que envergava tornava-lhe o desenho dos seios mais óbvio, como se ao mesmo tempo os guardasse e os expusesse. Montague não ouviu quase nenhuma das palavras que lhe foram destinadas.
Então, animada pelo assentimento do eremita, reparando mais na beleza dos seus olhos azuis (que as barbas desleixadas não podiam senão evidenciar), afogueada pela gratidão que sentia em relação a esse homem invulgarmente casto e sóbrio (mais atraente lhe parecia o seu carácter assim), a rapariga tomou-lhe as mãos e beijou-as, acariciou-lhe o rosto, percorreu com os dedos a comissura dos lábios e, por fim, beijou-os também. Montague nada fez para interromper estes desvelos.
III
O eremita acorda sempre antes alba. Hoje não. Os olhos, terrivelmente cansados, avistam uma leve coluna tisnada a subir e a tocar o cume da cozinha. É uma língua de fumo que sai do raizeiro sobre a laje da lareira. Sobressalta-se, de chofre, ao dar-se conta das orações negligenciadas. Sente frio. A fome revolve-lhe o estômago. Recorda-se da tempestade, que durante a noite recrudesceu. Agora que os sentidos recobram o seu préstimo, percebe também um perfume diferente no ar, pairando como uma memória difusa. Lava o rosto, medita as primeiras orações, come um pouco de pão e, então, sim, compreende a indolência do seu corpo: acode-lhe à cabeça a rapariga.
Não pode descortinar um único sinal dela. Não percebe quando, como e porque partiu. No chão, onde o saco-cama foi estendido, não se perscruta o mínimo vestígio. Somente o areão e alguma folha ressequida, algum inseto sossegado e em trânsito entre esconsos.
Montague, aturdido, lembra-se do corpo nu da rapariga, do corpo quente e meigo que roçou no seu próprio corpo e o submeteu. Mas o chão, o puro chão do seu tugúrio, nada informa sobre o amor que ali existiu.
A rapariga, cujas palavras irresistíveis, cujo sorriso invencível, cuja doçura o fizeram mergulhar num sono profundo, desapareceu. Procura um só indício de que a sua cabeça o não engana. Na pedra onde costuma lavar o seu prato, não pode avistar senão um prato. Não possui dois pratos, aliás. Em cima da mesa, na exata posição em que o deixou ontem, o De Civitate Dei de Santo Agostinho.
A demanda prossegue. Fora, a manhã mostra-se esplêndida, como todas as manhãs de sol que sucedem às noites de procela. Montague verifica o granito sem lama da escadaria, a pequena vereda de acesso sem sulcos ou estrias de calçado, o portão que permanece tão fechado como um segredo por confessar. Treme.
O que foi tudo? Um sonho? Uma visita do demónio?
O frio fá-lo tiritar. Sente-se horrivelmente só. Pela primeira vez, nesse lustro, as forças faltam-lhe. O que foi tudo aquilo? Uma epifania? Uma prova de fé a que Deus o sujeitou?
Treme. Sente-se doente. Na pedra da lareira acumula-se a cinza da noite. Nenhum calor, nenhuma chama, nenhuma centelha aviva os seus olhos. Somente um fiozinho de fumo resta no corpo ardido do raizeiro. Montague pensa que chegou o seu momento: divino ou demoníaco, o sopro da vida está prestes a expirar. Não sabe, não o censuremos, que interpretação dar a tudo isto…