A vinha

garrafa e vinho tinto; bottle and red wine; bouteille et vin rouge; bottiglia e vino rosso
Fotografia de Vinotecarium

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A vinha estende-se por uma área pedregosa, calcária, atingindo com o seu verde às vezes ralo as encostas mais a sul do rio. Não é ainda uma paisagem bonita, nem suficientemente encorajadora quer em número de litros, quer na qualidade neles encontrada.

Mas de Bernard Mureau não se pode afirmar que seja pessoa para deitar os bofes de fora à toa. Agora mesmo o vemos, tinto como uma cereja, a teimar com a picareta no torrão endurecido de um panascal, com o propósito firme de o transformar em terra produtiva.

Grandes revoadas de pó saem de ao pé de si e vêm encosta abaixo, assentando entre as folhas mortas destas videiras obstinadas. O pó cobre os carreiros de formigas e as formigas, iguais a fantasminhas teimosos, avançam na direção dos montículos açucarados em que se transformaram ao fim e ao cabo os gaipelos abandonados no chão. Em breve não haverá calor, nem carcaças doces de uvas, nem motivos para aqui processionarem as formigas.

Mureau tem uma visão.

É um desses loucos determinados a deixarem a sua marca, desses que britam a pedra por um quinhão de celebridade, por um nome, por um aroma inconfundível.

Além, mais perto da casa do que da pedreira, nas caves desensarilhadas para já de teias de aranha, no interior de cubas herméticas e imaculadas, repousa o primeiro manancial da quinta. Mureau torceu o nariz, sabe-o ainda titubeante, insuficiente, em formação.

Mas se, por um lado o assalta a ideia de parar por aqui, de acabar com a sísifica tortura de esventar pedra e de viver o seu tempo com um mínimo de paz e de prazer, por outro, espicaça-o a insânia de transformar rocha em vinho, de vencer impossivelmente, de impor à terra o seu tributo implacável. É neste segundo estado que se sente mais quem é. As mãos enrijam, a longa lâmina da picareta endurece, todo ele esmilha com mais vontade a penedia escabrosa.

Ninguém duvida que um dia se beberá daqui a melhor pinot noir de toda a Toulon, da região da Provença, do sul da Europa. Cavando e escando, há nesta sua férrea determinação a escrita profética de um demente.

E os dementes assustam. Ah, se assustam…

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Logótipo Oficial 2024

A fome

Fotografia de Simone Miotto sobre a seca
Fotografia de Simone Miotto

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«A fome veio para ficar» disse o padre Paolo Gentile, pondo os olhos muito longe, nos vitrais, na pomba do Espírito Santo, nos olhos atordoados dos apóstolos.

Na aldeia, os ricos tinham-se tornado remediados, os remediados pobres, os pobres em gente miserável. Tudo por culpa da chuva, da chuva que não havia modos de cair, dos campos transformados em camas de pó, das árvores secas, dos rios vazios… Tudo por culpa da ganância, dos açambarcadores poderosos, dos cruéis monopolistas que impunham os preços. Do pouco faziam muito e o muito do pouco engordava-os. Os monopolistas açambarcadores eram os únicos a dar-se bem com a fome, a lucrar com ela, a compreender verdadeiramente as homílias do padre. Eram os únicos a manter a contradição: por isso, tornavam-se mais intocavelmente inumanos, iguais aos próprios santos para onde Paolo Gentile dirigia o olhar cismoso e condoído.

Havia pessoas a precisar de massa, de arroz, ovos, carne, azeite, pessoas que pouco tempos antes doavam com facilidade massa, arroz, ovos, carne e azeite. Não se percebia bem como tinham tropeçado na desgraça, como tão depressa, tão meticulosamente, tão à vontade as havia castigado o destino.

O padre erguia ambos os braços em grandes gestos apelativos, lembrava Cristo, circumpunha exemplos pródigos de amor e de solidariedade pelo próximo. Repetia a máxima de São Columba de que «A roda da fortuna mexe tantas vezes e tão depressa que ninguém está a salvo do seu cirandar cruel». Contudo as esmolas eram iguais à terra gretada. Tocavam-lhes as mãos e logo desapareciam em farrapos polvorentos, grãos irrisórias de coisa nenhuma.

Em Sant’Angelo, a carestia foi enorme nesse tempo. Cozinhava-se algum peixe com algas uma vez por dia e não raro desenterrava-se tubérculos e raízes de arbustos. Usava-se ervas bravas e folhas de urtiga para suprir a falta de fruta e hortaliça. Os afortunadas que as encontrassem podiam apanhar bagas e amoras, se o sol as não havia crestado. E com elas almoçam ou jantavam.

No início do outono, o céu encheu-se de ódio e cobriu toda a ilha com nimbos. A chuva mergulhou sobre Forio, Casamicciola Terme, Ischia, Piano Liguori, Serrana Fontana, enxurrando em simultâneo terrenos agrícolas, veredas, baldios, canteiros e jardins. O ocre, o almagre, o grés, o amarelo do capim extenuado, transformaram-se em feios espelhos de água barrenta. Os silos, onde os agiotas guardavam com mil olhos e dez mil canos de espingarda o caviloso recheio de sua avarícia, não puderam impedir que a tempestade e o aluvião entrassem pelas frinchas, pelas janelas, pelos telhados varridos e encarquilhados, pelos umbrais sem porta.

De modo que então, sim, tudo se perdeu. E a fome, único poder legitimado, assenhoreou-se das almas cristãs como uma praga bíblica, como uma verdade, como uma paga violenta e irrespondível, com nenhuma, com toda a razão…

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Logótipo Oficial 2024

Páraic O’Reilly

Patou Ricard
Fotografia de Patou Ricard

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Dezembro verte uma fina camada de vidro sobre as casas. Em toda a parte doem os nós dos dedos e os ossos. Páraic levanta as golas do sobretudo e sai da taberna. Na Irlanda, a lua cheia é neste mês uma presença transfiguradora: os telhados e chaminés húmidos das aldeias, os bosques e rios atafulhados de velhas divindades mágicas, os promontórios cheios de espuma lá em baixo, tudo para onde o nosso olhar se dirige espelha uma majestade que as palavras não sabem dizer, tal como acontece nos sonhos. Páraic vê nessa iluminação (e em nenhum outro lugar mais do que nela) a presença antiga e visceral de Deus. Não o entendem.

Desde que abandonou o mosteiro (porque foi monge este Páraic O’Reilly), escreve, bebe e às vezes ensina. É vagamente o que se imagina ser um poeta e sem dúvida o homem mais só em todo o condado de Clare nesta noite solsticial de vinte e três, ou vinte e quatro.

Emborcado o último gole da última cerveja em Killarney, toma a resolução. Vem caminhando perpendicularmente ao bojo negro da Catedral de Santa Maria, onde os coros locais ensaiam já, ou ainda, cânticos de louvor ao que nasceu e ao que há de nascer nesta data. Páraic mete-se no carro e arranca para norte. São duas horas e meia, a andar bem, mas vale a pena.

Aqui viveu a infância, aqui vive ainda a melhor parte de si. Páraic sente o formidável cheiro do mar misturado com o do campo. Ardem-lhe os olhos, a garganta também dá sinal de si. Não será por muito tempo. Encontra-se pertíssimo das falésias de Moher. A meia-noite não tarda. Calculou com minúcia cada etapa da viagem. Abandona o automóvel num estradão, espiado somente pelo olhar atónito das corujas, e avança em passo firme até ao extremo do penhasco onde ergueram a Torre O’Brien.

O revérbero lunar nas águas do Atlântico hipnotiza-o. A beleza das coisas não pode provar senão a magnificência do Senhor. Os homens deviam contemplá-la assim, amá-la sem limites ou subterfúgios. De nada serve rezar se não se compreende o encantamento da perfeição divina. Desde que abandonou a condição de monge, foi-lhe ministrada por completo a lição mais dolorosa da sua vida: os caminhos do Senhor são, não apenas insondáveis, como sobretudo paradoxais. É um eremita, um pária, e conhece melhor do que ninguém o significado da busca de redenção, agora que passou à vida secular e se sente odiado por toda a gente.

Lá ao fundo as ondas fosforejam, o vento glaciar empurra-o, todos os seus sentidos o impelem a seguir em frente. Liscannor oferece passagens excecionais para o outro mundo: um passo avante e será um salto, duzentos metros de voo e o fim de todo o seu suplício.

Mas é, então, sugado para o âmago de um círculo de fogo. À sua volta, à meia-noite em ponto, uma claridade terrena acende-se como por milagre. São fogueiras altas, deflagrando desde as escarpas de Doolin, a norte, até aos promontórios de Baile an tSéipil, a sul. Páraic ouve, de chofre, um cântico levantar-se, nascido na garganta de centenas de mulheres que ali de súbito, será um prodígio, surgem do meio das trevas, vindas do nada.

É uma festa pagã, um ritual de que ouvira falar uma vez há muito, mas em que não acreditara. Talvez em honra de Dagda (deusa da sabedoria), ou de Fand (deusa do mar), ou de Tan Hill (deusa do fogo), ou de Arianrhod (deusa do lar), ou quem sabe de Aine de Knockaine (fada do amor e da fertilidade). A vozearia multiplica-se com o rufar de tambores e guizos e ululantes saudações ao inverno que chega.

As mulheres dançam frenéticas, percorrem o manto esverdeado do litoral e atiram os braços à lua cheia. Depressa engolem na sua roda Páraic, apertam-no contra os seios e as coxas, beijam e acariciam-no. Trazem-no de volta à vida para que nelas produza a vida. Esta, insuflado por uma espécie de êxtase orgíaco, cumpre. Cumpre com todas as suas obrigações, não sabe como, nem com quem. Dizem que nessa noite gera setenta filhos.

Evidentemente que as lendas mentem. Do sémen de Páraic O’Reilly vêm ao mundo, quem sabe, sete, três, um filho, talvez nenhum. Setenta, juram por cá.

E que diferença faz?

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Nascer do dia

Gary McParland
Fotografia de Gary McParland

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Acorda todos os dias muito cedo. Faz o menos barulho possível enquanto trata da higiene pessoal e de tomar o pequeno-almoço. Há pessoas a dormir e a necessitar do trabalho profundo dos sonhos.

Quando abre a janela do quarto, espreita sempre com muito interesse: a adivinhação da luz ou da falta dela (conforme a época do ano), o estado do tempo, o cenário com que a rua se apresenta, tudo o impressiona como se em cada manhã nascesse outra vez.

Porque se levanta cedo? Tem pressa de ir para o emprego?

Na verdade, não trabalha já. É um aposentado. Mas dá-se pressa de assistir ao nascer do dia.

Ao longo da sua já considerável vida, sempre o alvorecer (devota grande amor a essa palavra e a outras praticamente sinónimas, como alba, alvorada, aurora, arrebol, dilúculo), dizíamos, sempre o alvorecer lhe pareceu o truque de magia mais extraordinário do universo.

Sai para o terraço com uma chávena de café nas mãos, imaculadamente vestido, impecavelmente penteado e entrega-se à contemplação. A essa hora o cheiro das folhas molhadas pelo orvalho ou pela chuva, o sopro meigo e frio do vento nas árvores, o curto saltitar dos pássaros entre as telhas ou no quintal, o perfume misturado da murta, da terra e do café são como dádivas intraduzíveis.

Um pouco antes de o horizonte ser atingido de lés a lés pela labareda do sol, diverte-o a confusão de linhas esbranquiçadas que os aviões deixam à sua passagem. São traços gelatinosos, translúcidos, como aqueles que os pachorrentos caracóis desenham no cimento.

Vive com o filho, a nora e quatro netos. Ninguém em casa compreende este ritual. Ver a luz nascer, ainda que no inverno, sobretudo quando a cama tanto apetece, não é coisa de somenos importância.

Espera-se uma vida inteira pelo prazer de combinar estas coisas todas. Não há aqui qualquer toque de religião ou de poesia. Um homem em certo momento da sua vida prescinde de tudo. Menos de si.

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