Nunca digas «Deste vinho não beberei!»

Mart Production
Fotografia de Matt Bradoc

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Vivemos hoje num estranho mundo em que os vizinhos se olham uns aos outros com ar ciumento e com aquela expressão “Vós é que a levais boa!» É o resultado deplorável do desconhecimento que mantemos sobre as casas alheias. E, nesta matéria, ninguém é mais vítima deste desconhecimento recíproco do que o Padre Inocêncio.

Pobre sacerdote. Pese o adiantado dos anos, com os seus achaques de asma e do reumático e dos acessos de gota, todos lhe invejam a rotina sossegada e solitária.

«Esse», dizem as línguas compridas e os dedos estalejantes «Esse anda sempre na fresca ribeira. Ninguém o azucrina!»

E, no entanto, leitor, nada mais falacioso e despropositado.

O Padre Inocêncio arrosta como todos nós, os demais, provações e amargos de boca. Quantas vezes os seus pensamentos se inundam em segredo de tristezíssimas, e lhe sibila o peito durante as insónias, e se deixa o coração aferroar pelas tenazes malignas dos inumeráveis problemas que, corriqueiramente, lhe entram vida adentro, noite fora, alma a fundo.

Um exemplo.

Todos sabemos que ele e o rebanho de que é responsável celebraram há pouco a quadra pascal. Ouvir em confissão os paroquianos, sermonear-lhes a palavra boa das Escrituras, presidir aos cortejos da Santa Semana, organizar a equipa dos zeladores da igreja, certificar-se de que as flores brancas decoravam todos os altares, etc., não, não foi pera doce!

O Padre Inocêncio ministra as suas eucaristias de um modo solene e rigoroso. Tudo tem de passar pelo seu crivo.

Pois, leitor, ao infeliz Padre Inocêncio sucedeu-lhe no final da Missa de Ramos precisar de puxar as orelhas aos quatro jovens acólitos que, durante a cerimónia, se puseram a esgrimir as hastes de oliveira como se se tratassem de espadas. E que fizeram do Hossana uma bulha digna das melhores páginas de Alexandre Dumas.

O senhor Padre Inocêncio repreendeu-os muito. Uma missa é uma coisa séria, ou não? Seria hora e lugar para farras, porventura? Que desavergonhamento tinha sido aquele? Todos na assembleia a rir, quando deviam todos chorar, chorar de amargura em atenção à paixão de Jesus que se aproximava bíblica e inexoravelmente.

No Sábado de Aleluia, o velho sacerdote quis que se cumprisse a preceito a Vigília Pascal.

E vigiava o bom homem. Vigiava com carão severo não apenas o regresso da luz, durante a lucernário, «Christus heri et hodie, Principum et Finis…», como o comportamento dos travessos sacristães que de quando em quando (podia adivinhá-lo) se entreolhavam com um riso, com um esgar, com um subentendimento (pressentia-o) verdadeiramente malévolo.

Muito espirrou nessa noite o Padre Inocêncio. A cada atchim enterravam-se-lhe os olhos, arrascanhava-se-lhe a garganta, melava-se-lhe a voz. Tapavam-se os ouvidos. Lá tinha de erguer a sobrepeliz e retirar da algibeira o lenço encharcado de muco.

O quarteto de ajudantes lá lhe ergueu o círio e lhe segurou a caldeira da água benta, lá lhe trouxe o turíbulo e lhe levou de volta o óleo quaresmal.

Em dado momento, já numa agonia de moribundo, o Padre exclamou «Eis o cordeiro de Deus…» e ingeriu um pedaço do corpo sagrado de Cristo. De seguida, malditos espirros que não paravam, assou-se com os olhos afogados em lágrimas e ingeriu um pouco do sangue sagrado de Cristo.

E quando os paroquianos proclamavam que o mesmo Cristo não era digno de entrar em suas moradas, o Padre Inocêncio (num arranque de vómito, numa golfada sonora e aflitiva, numa cuspidela em funil que borrifou a toalha do altar, o Missal Romano e a primeira fila da assistência) devolveu-lhes Cristo inteiro!

«Bah, que puta de zurrapa!» arrepiou-se todo. E isto alto, isto para que todos ouvissem bem, que ele já mal escutava.

Mas que tinha ele afinal bebido?

Soube-se (tudo se apura onde as orelhas esticam) que os quatro mafarricos haviam, entre si, jurado substituir no cálice o vinho por vinagre. Um desavergonhamento!

«Mas olha, não fraquejaram aqueles…, aqueles… (faltava ao Padre Inocêncio o termo exato). Não fizeram como São Pedro, lá nisso… E não se atraiçoaram. Nem um só deles foi capaz de entregar os outros… Não fizeram como Judas, lá nisso, aqueles…, aqueles… (continuava a escapar o inocente vocábulo do insulto). Lá nisso, não imitaram o Iscariotes…».

E cismou o pobre homem ao longo dessa noite magnífica em que Cristo ressuscitava e a sua alergia (acirrada pelo fedor cítrico), lux in tenebris, dava aos poucos, finalmente, lentamente, sinais de se finar.

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Um milagre

Nevoeiro, Franz Bachinger
Fotografia de Franz Bachinger

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Nesse ano de 1371, ou 1372, ou 1375 (as crónicas incoincidem), um grande nevoeiro estendeu as suas mortalhas sobre a aldeia de Santa Chiara d’Oro, isto nos começos de fevereiro, ou de março, ou de maio, e tendo-a inteiramente coberto no que nela cabia (bosques, campos, o mosteiro das monjas, os casebres tortos de calcário), não mais o sol acudiu aos pomares e aos estábulos, nem aos pátios, nem às leiras de centeio, adormecendo tudo e todos num esquecimento mortal como jamais antes ou depois a pena dos cronistas pôde contar.

Era aquele povoado uma terra maldita. Ninguém amava ninguém, espírito nenhum se importava com o seu semelhante. O almocreve roubava na praça e era assaltado na falperra. O vizinho atraiçoava e era apunhalado pelo vizinho. O camponês enganava na quantidade de pão e na qualidade do vinho, mas iludiam-no no valor da prata. As que serviam a Deus escondiam sob os travesseiros e no fundo dos sonhos palavras e promessas do demónio. A ignomínia e a avareza e a lascívia tinham afogueado os corpos e enegrecido a parede das almas.

De modo que as névoas tornaram ainda mais sombrio o viver daquela gente. As crónicas anotam o castigo: a cerração durou meses contínuos, cegando os que viam e paralisando de todo os tórpidos braços que na terra ou no rio, em casa e na rua exerciam o seu ofício. Foi quando um misterioso vagamundo chegou à praça, um esfarrapado de olhos vivos e palavras poucas, um profeta, ou talvez um peregrino, um penitente, um proscrito.

Pediu guarida no mosteiro, onde sem afeto as clérigas o receberam e onde o faziam pernoitar num curro. Por quanto tempo não se sabe (as crónicas dissimulam mal esta ignorância), porém o bastante (e entre si corroboram-no as mesmas crónicas) para que lhes memorizassem este único brado: “As trevas, como o silêncio dos ladrões, guardam-se nos recessos onde vós não vigiais. Envergonhai e arrependei-vos, desgraçados!”

No dia da Santa, o décimo primeiro de agosto, todas as portas e janelas do mosteiro foram escancaradas, em todas as casas dos aldeães foram removidos os postigos, levantados os cancelos em todos os estábulos. Homens e mulheres comuns, monjas e animais expunham a sua intimidade para que o diabo não pudesse nela acoitar-se e, conhecendo as feições uns dos outros, soubessem reconhecer como Adão no Paraíso o sopro de Deus.

“Arrependei-vos!” bradava o forasteiro. “Abri a vossa morada. Deixai que nela irrompa a luz! Envergonhai e arrependei-vos, desgraçados!”

Um vento macio vindo das montanhas principiou, então, a empurrar o encordoado odioso das trevas e o sol finalmente reapareceu como uma lamparina milagrosa. Não se sabe o que foi feito do predicador, nem se a lenda recolhe alguma verdade de que valha a nossa pena.

A dos outros, a dos cronistas, escreve que a partir desse prodígio Santa Chiara d’Oro passou a ser nome próprio nestas paragens de Áquila, no coração rochoso dos Apeninos.

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João Ricardo Lopes, escritor português (escritor de Portugal), escritor fafense (escritor de Fafe), autor de livros de poesia, contos e crónicas.

O choro dos mortos

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Joe Lenio
Fotografia de Joe Lenio

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Numa pequena povoação entre o Camboja, o Laos e o Vietname, os montanheses têm por costume pendurar no alto das árvores um insólito instrumento constituído por longos emaranhados de fibras atados por tiras de couro e presos a uma espécie de cravelha, que os nativos constroem abrindo orifícios em ossos de tigre ou leopardo ou mesmo viverras, e que emolduram com ripas de figueira ou paineira.

Durante a noite a humidade faz encolher as linhas paralelas e mantém-nas em silêncio. Mas assim que o sol e o vento começam a retesá-las, a floresta enche-se de um choro sobrenatural, que o nevoeiro em dispersão torna ainda mais extraordinário. «São os nossos mortos que partem outra vez» ensinam às crianças.

Os mortos hão regressar com as monções, agora é o tempo dos vivos. Metade do ano para que a memória os guarde fielmente na outra metade que há de vir.

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João Ricardo Lopes, escritor português (escritor de Portugal), escritor fafense (escritor de Fafe), nascido em 1977.

História do Padre Angélico

Vulcão, Kanenori
Fotografia de Kanenori

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Saiu de Fiumicino em direção à Sicília, como faz todos os anos. Entrando no vulcão, cujo cone fez o tempo parcialmente derruir num amontoado de lixo basáltico, põe-se a alisar o solo cinzado e sujo onde, com a ajuda de uma vara, faz perfurações para nelas sepultar bolotas de carvalho vermelho. Lança-lhes um gole de água e persigna-se. Depois é com Deus e com a natureza.

Um ato tão incompreensível pede pelo menos uma explicação excelente.

Num dos seus sonhos de juventude, a pessoa de quem falamos viu-se num bosque primitivo, em cujo chão folhas recortadas brilhavam sob o efeito da lua e onde uma neblina translúcida se mexia a cada passo que dava. Não havia aí ruídos, intrusos, serpentes tentadoras. Via-se, nesse sonho, tão velho que as suas mãos aparentavam o aspeto calcinado de raízes. E tão feliz que não duvidou que o único lugar da terra igual ao de Adão fosse um onde a terra se pudesse reinventar, lavando-se (como num banho de vitriolagem) do bodum humano.

Aos vinte e cinco anos, já depois de ordenado, deixou aqui as primeiras sementes. Agora, no miolo do caldeira adormecida, vão brotando a esmo os miraculosos troncos da sua teimosia. Ou da sua loucura. Decidiu que a localização da choupana fica para mais tarde. Quando as árvores tiverem atingido a altura de um ciclope, virá construí-la, edificar o seu eremitério, provar a modernidade do seu sacrifício.

Onde antes era uma garganta para o inferno, Nosso Senhor quererá outro Éden. Desta vez sem Evas ou répteis. Sem anjos com espadas de fogo.

Um ato tão incompreensível deve ter outra explicação que desconhecemos.

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Via-se bem

Mulher idosa, por Panfil Pirvulescu.
Fotografia de Panfil Pirvulescu

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A velha, via-se bem, lacrimejava. Não havia meio de acender o fogão maldito. Já por duas vezes os dedos trémulos haviam precisado de imiscuir-se no buraco do serrim e de retirá-lo aos bocados. Recolocou o bastão numa das bocas e pela terceira vez, via-se bem que com irritação, pôs-se a peneirar a serradura para o seu interior. Depois com o cabo da foice começou a comprimir as aparas lentamente no espaço em volta. Vinha-lhe à cabeça a história do aerograma: que dor tão funda para aquela família! Retirou o bastão com cuidado, de modo a aguentar o espaço aberto no miolo do serrim e de seguida lançou pelo largo orifício um bocado de papel a arder. Era uma tarde inusualmente fria, não se recordava de um julho assim. Curvou-se mais um pouco e recomeçou a soprar. Fazer deflagrar a chama exigia perícia, paciência, temperança. A velha não tinha filhos, mas não os ter tido não significava que não se doesse da dor dos outros. De dentro do tubo mole das aparas começou a crescer uma língua de fogo. Dentro da cozinha às escuras, o fumo rodava, entretanto, mais espesso, mais azul, mais implacável. Fazia arder os olhos. A velha, via-se bem, chorava.

Os rapazes iam para África a mando do governo. Iam e às vezes não voltavam. Como se governavam lá não o sabia a velha, que fora sempre apenas senhora do seu mundo, enterrada desde a infância nos campos e nos montes, nas singelas coisas das pessoas simples. O filho da Aninhas foi dos tais: levaram-no de pé e trouxeram-no dentro de um caixão selado com chumbo. Uma mulher, ainda que velha e solteira, dói-se dos destinos funestos dos outros. Na solidão da cozinha podia soltar as lágrimas, ainda que lágrimas dolorosamente paridas no silêncio lágrimas e talvez estéreis. Sobre as bocas do fogão colocou as grelhas e sobre as grelhas as pequenas panelas enegrentadas. África é longe, a infância é longínqua, a morte é ainda mais distante, ainda mais intransponível. Pobre rapaz!

À hora habitual, a moça subiu o lanço de escadas e deu a fala acostumada.

– A bênção, madrinha!

– Oh, filha, Deus te abençoe!

– Venho da casa da Soledade. Venho parva…

– O que foi?

– Não sabe o que aconteceu ao Sê Pereira e à Aninhas?

– Já soube, filha. Já soube…

– Chegou um aerograma da Guiné, do Torcato.

– Já sei, filha. Já sei…

A velha regressou ao bolso do avental. Limpou o canto dos olhos com o mesmo pedaço de tecido esquálido onde se assoou a seguir. Seria um daqueles gestos mecânicos que repetimos sem pensar. Depois serviu-se de uma bacia com as batatas e a cenoura que descascou com uma tristeza doente. Que espinho para uma família receber um aerograma do Ultramar um mês depois de fazer o funeral ao filho que o enviou!

– Acho que foi para uma gritaria ontem à noite. Coitados…

A velha soergue o rosto sem dizer nada.

– O Torcato mandava dizer que estava bem, que graças a Deus já pouco faltava para acabar a comissão… que neste Natal já cá estaria para casar com a Rosalina e começar a construir a casa…

Lá atrás, num dia de nevoeiro, uma mulher bastante jovem vê-se engolida pelo desespero. Uma outra, mais adulta, sopra sobre um pedaço de pedra, onde o serrim teima em não arder. «Tudo se há de arranjar, tem calma rapariga.» O fumo circula como uma cortina ofensiva, dá volta às paredes mascarradas de uma cozinha onde o mais belo fruto da vida está guardado, envolto num cobertorzinho macio. «Tem calma, rapariga. Tudo se há de arranjar. Essa criança terá um pai e uma mãe e tu terás uma vida pela frente.» «Como será isso?» «Confia em mim. Se vais para a França, deixa-a a comigo. Tudo se há de arranjar.» «Vossemecê o que fará com o menino? Cria-o por mim?» «Não te aflijas. Nosso Senhor pensa em tudo, ele há de ter pai, mãe e casa.»

– Ai, madrinha. Uma pessoa fica maluca. A Aninhas queria tanto que o marido livrasse o Torcato da tropa… Dinheiro não lhes falta, nunca faltou.

– Sabe Deus o quanto ele tentou.

– Olhe que não é o que se diz por aí…

– O povo o que sabe? O povo fala com peçonha, que é para isso que o povo serve.

– Oh, madrinha. Se ele quisesse… O moço ainda agora estava vivo!

– Cala-te, rapariga! Não sabes da missa a metade… O Pereira bem quis untar os beiços a muita gente, mas os do governo não deixaram…

A noite demorava. A velha retirava de outra bacia as folhas carnudas da troncha para as inspecionar. As palavras, via-se bem, saíam-lhe penosas, amaras, pesadas. O nariz, via-se bem, pingava. Os olhos, via-se bem, pareciam pedrinhas em brasa. Uma devastação nova caía ali, como um pesadelo renascido. Talvez dissesse à rapariga para meter um punhado de caruma e uma pinha na lareira e umas achas e um toro. Não se lembrava de uma tarde de julho assim tão fria.

Dentro da sua cozinha, apenas alumiada pelas duas bocas do fogão rudimentar, sentia-se fulminada por uma estranha traição. Vinham-lhe sempre à cabeça o aerograma, as esperanças do rapaz, as malditas quelíceras da guerra, os homens do governo que arrancavam filhos às famílias para os lançar na imensa África dos caixões numerados e chumbados. A velha, via-se bem, secava a amargura. Era preciso, em todo o caso, suportar a vontade de Nosso Senhor, fazer o caldo, sobreviver.

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O fazedor de haikus

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Fotografia de Robson Hatsukami Morgan

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Esta é uma autoestrada que Ole Henriksen conhece bem.

Sobe e desce a E6 muitas vezes ao volante do seu Scania V8, um camião poderoso de 770 cavalos, atravessando (como agora) túneis pacientes em paisagens montanhosas, pontes ultramodernas sobre abismos azuis, florestas a perder de vista, cobertas boa parte do ano pela neve e por espinhos de gelo, mas também aldeias pitorescas cheias de cor, entre cidades grandes, frias e incaracterísticas, atravessando, enfim, a sua própria memória, repleta de vislumbres e de ecos e de vozes.

Viajar viaja-se de muitas maneiras sabemo-lo todos. Ole sabe-o mais do que nós.

De Trondheim a Oslo são seis horas e meia bem contadas, quinhentos quilómetros para sul, a que se seguirão outros quinhentos em sentido oposto, sem distrações, para transportar tudo aquilo que a espécie humana consegue decompor, embalar, vender e possuir dentro de quatro paredes.

Hoje, por exemplo, é responsável por uma carga de cerveja, toneladas e toneladas dela diretamente para um armazém da capital, que a fará distribuir (não tarda) pelos inumeráveis bares e restaurantes da Grünerløkka.

Ole nem sempre se desloca sozinho. O irmão Bjoern acompanha-o nos trajetos internacionais e não raro revezam-se na condução. Antes dele quem o fazia era Frigga, a mulher com quem casou e de quem se divorciou há não muitos anos.

Frigga era, sem dúvida a companheira ideal. Sabia gerir como ninguém o tempo de falar e o tempo de calar. Erguia no meio do nada uma narrativa, uma lenda, uma memória, uma frase pertinente. E possuía, além de olhos maravilhosamente bem feitos (cor de âmbar), uma voz sedosa, sem crispação e sem veneno. Nunca lhe escutou um ralho, um protesto, uma altercação. Frigga foi a melhor das mulheres e ele, digamo-lo nós sem rodeios, o pior dos maridos. E, por esse motivo, continua a amá-la e a aceitar o castigo penosíssimo de a não ter junto a si.

Bjoern, por seu lado, é um borrachão. Nas vésperas das grandes viagens, é necessário repetir-lhe regras, ameaçá-lo, fazê-lo dormir, vistoriar-lhe os bolsos do anoraque.

Portanto, a solidão não é muito má. A solidão enche-nos de pensamentos e os pensamentos, pese às tantas doerem demasiado, são o nosso modo de sobreviver. Acresce que no interior e no alto de um camião se pode captar, como pelo vidro de um ecrã, imagens que dificilmente se perdem nas anteparas da cabeça. Entre as imagens que aprendeu a valorizar, Ole aprecia o recorte acidentado dos lagos e dos fiordes, as linhas intermináveis de abetos, o dorso descarnado das cordilheiras do leste, especialmente no inverno, quando acima do manto espesso que nelas se acumula bruxuleiam as chamas verdes das auroras boreais.

Aprendeu a ver e aprendeu a escutar. Todas estas e muitas outras coisas em que não reparava vieram com Frigga, com a sua mania de as enfiar em versos.

Certa vez, perto de Esbjerg, na Dinamarca, brindou-o com esta observação:

– Que magnífica praia, Ole! As gaivotas assim todas poisadas parecem o nevoeiro à beira-mar, não parecem? Que estampa maravilhosa. Olha, estou mesmo a imaginar Hokusai ou Ohara Koson a pintá-la…

Para o motorista, as coisas não tinham de parecer-se com nada. Eram o que eram. Não se lhe afigurava muito sério que se dissessem as coisas como Frigga as dizia, sobretudo se por meio de palavras ritmadas, curtas, nada espontâneas.

Noutra ocasião, numa das encostas do Hardanger, saiu-se com uma ainda melhor:

– Para, para o camião, meu querido. Vamos encher os pulmões com o ar frio, enchê-los com o perfume daquele pomar!

Como podia ele parar o camião? As coisas na vida real passam-se de outro modo. Há compromissos, objetivos, prazos a cumprir. Encher os pulmões com o ar frio? Então, para que raio mantinha o ar condicionado naquela temperatura? Por quem, senão por ela, conservava a cabine do Scania tão esmeradamente cómoda, tão dedicadamente limpa, tão perfeitamente climatizada?

– Sabes do que me lembrei, Ole? De um poema de Kobayashi. É assim:

O brilho do sol.
Na carne das cerejas
um moscardo cai.

É um belo poema, não concordas, Ole? Dele ou de Bashô, já não sei ao certo… Mas é lindo! Não achas, querido?

Antes estas palavras soavam-lhe incompreensíveis. Agora já não. Ole Henriksen pensa que é espantoso ter permanecido tanto tempo na obscuridade.

Frigga amava a pintura, a literatura, a música, sobretudo as do Japão, essa exótica nação que ela queria visitar e ele nem por isso. Frigga sabia imensas coisas da civilização nipónica. Partilhava constantemente histórias de artistas, de guerreiros, de tradições, falava de flores, de árvores, de ilhas abençoadas. Reproduzia anedotas, mostrava-lhe gravuras do Fuji, aludia ao budismo, chegou a comprar e a aprender a dedilhar um shamisen. Oh, o som que saía daquela maldita viola!

Tudo isso o incomodava. Preferia que ela fosse uma pessoa normal, uma mulher mais igual às outras, capaz de proferir insultos, de comer fast-food, de aguentar em terra firme a cabeça sonhadora, capaz de o seduzir com insinuações animalescas, obscenas, escatológicas.

Ole fartou-se. Por culpa da sua estupidez, frequentou casas erradas.

Tudo isso regressa agora. O divórcio abriu devagar fissuras enormes, abriu em si como numa lona rasgões dificilmente reparáveis.

Agora que o sol passa, ele vê. Vê dentro de si moscardos entontecidos, cerejas rebrilhantes, o privilégio da ordem e da harmonia. Agora tudo é diferente. Os horários esvaziam-no, o ruído dos empilhadores irrita-o, a comida das estações de serviço provoca-lhe azia e náuseas. Agora tudo é diferente, embora demasiado tarde.

O primeiro haiku ocorreu-lhe justamente numa dessas estações de serviço, em Odda, no momento em que fumava no sítio exato (uma mesa de madeira, sob os troncos combinados de grandes bordos e plátanos) onde o fazia noutros tempos com a mulher.

Era outubro. A oxidação das árvores não lhe passou despercebida. Vieram-lhe à cabeça e depois à boca, quase involuntariamente, os três versos que reproduzimos:

O outono…
Folhas de ouro e rubi
crepitam no chão.

Espantou-se com o jogo de palavras. Depois de urinar à socapa, como gostava depois dos cigarros, repetiu a pequena composição em voz baixa, de si para si, e decidiu apontá-la num caderninho, apondo no final a data e o lugar.

Pouco tempo depois, registou um novo texto:

Cego inverno.
Triste, a água congela
nos olhos.

Ulvsvåg, 22/12/2014

Nesse precioso bloco de folhas foi registando outros poeminhas, que aprecia cada vez mais, que relê amiúde, que a espaços corrige. Não se julga senhor da técnica, mas anima-o a vontade de observar mais longe e mais fundo a natureza empírica dos elementos e de extrair dessa observação a voz de Frigga, como se em vez da sua fosse a voz dela a que dita os haikus.

Abril.
Renascem bosques sombrios:
a luz atravessa-os.

Brémen (Alemanha), 15/04/2015

Talhão de papoilas.
O vento medroso
brinca com fogo.

Carcassone (França), 10/05/2015

Se ouves o melro,
rejubila.
A tua alma vive.

Cantuária (Inglaterra), 21/06/2015

Pasmo jovem…
Olhos e nariz rendidos
à cizânia.

Essex (Inglaterra), 22/06/2015

A voz das ervas.
Os pássaros erguem-na
depois da chuva.

Dover (Inglaterra), 24/06/2015

Cinzas da luz.
De manhã também em nós
Se acende o riso.

Calais (França), 24/06/2015

Mantém na boca
a beleza da noite.
Vãs as palavras…

Antuérpia (Bélgica), 26/06/2015

Ole passou a registar com igual cuidado as palavras que lhe suscitam maior curiosidade e as que considera úteis para a sua escrita. Usa um velho dicionário escolar, onde sublinha a lápis o vocabulário mais apetecível. Dá por si a misturar termos e a lamentar que algumas palavras tenham mais ou menos sílabas do que as necessárias. Também se ofende bastante com a falta de rigor dos colegas de ofício, que estropiam a todo o instante o norueguês e o contaminam por tudo e por nada com empréstimos de outros idiomas. Ole considera muito criticável a preguiça, a mania, a ignorância dos motoristas profissionais em questões de língua materna.

Quanto à sua escrita, talvez decida publicar estas composições num livro. É algo de que se orgulharia, sim. Se o fizer, há de dedica-lo a Frigga, à sua Frigga, à laia de pedido de perdão.

Tristeza.
O lago volta-nos as costas,
a lua foge.

Mjellum/Mjøsa, 30/06/2015

Pensamentos.
Água podre e estanque
que urge vazar.

Trondheim, 18/08/2015

Prestes a partir,
os últimos pássaros
fecham círculos.

Estocolmo (Suécia), 20/09/2015

Silêncio.
Ao longe chocalham
as pedras da montanha.

Bolzano (Itália), 18/10/2015

Rio e mar drapejam
o mesmo azul.
Pulmões inchados.

La Coruña (Espanha), 20/10/2015

Abre-te na luz
ou no escuro.
Sê nu como um fruto.

Bilbao / San Sebastián (Espanha), 21/10/2015

Madrugada.
A brisa espicaça a luz,
meus olhos ardem

Oslo, 23/10/2015

No regresso a Trondheim existe um lugar bendito onde consegue, infalivelmente, descortinar outras variantes da sua poesia. Fica em Ler, um vilarejo no condado de Trøndelag. Sempre que na E6 se cruza com essa localidadezinha, vêm-lhe ao espírito as palavras meigas de Frigga.

– Sabes que na língua dos portugueses, Ole, o nome desta terra significar ler?

Deu para rir. A língua dos portugueses será bem estranha. Ler é um nome insignificante. Uma terreola a meio de lugares realmente importantes. Depois do divórcio, porém, a placa toponímica com esta palavra passou a constituir uma rememoração dura, os portugueses e a sua língua uma gente mais distante e esquisita, aliás, todas as palavras assim analisadas fora do seu contexto uma treta inconsolável.

Mas agora tudo voltou ao seu poiso. A vilazinha deste município de Melthus (com um nome que em português significa ler) despoleta em si o desejo de escrever novos poemas. As palavras ostentam, verdadeiramente, um poder muito seu de chocar e de nos seduzir. Em Ler Ole escreve. Assinalamos, como prova deste facto, este haiku que leva a data de 3 de janeiro de 2018.

Arte do pouco.
O mestre alumia
versos de ouro.

Não pretendemos fatigar quem nos lê com aquilo que o motorista profissional Ole Henriksen rabiscou e que foi recopiando para cadernos progressivamente maiores e mais luxuosos. A confiança e a vaidade são aspetos que devemos relevar nos poetas, sobretudo nos que em circunstâncias dolorosas fazem parturir os seus versos.

É o caso.

Maio.
Rosas bravas junto ao mar,
rochas castas, húmidas.

Aveiro (Portugal), 19/05/2019

Sangue e alcatrão.
Três cerejas esmagadas,
luta de pardais.

Guarda (Portugal), 20/05/2019

A toutinegra
no parapeito.
Coração de mármore.

Malmö (Suécia), 06/06/2019

Este malmequer.
Em torno do sol, leves,
pétalas voam.

Costa frísia (Países Baixos), 21/06/2019

A borboleta.
sobre o rosto da luz
escrita pura.

Oslo, 06/07/2019

Noite de verão.
O lume das paredes
morde as costas.

Jaén (Espanha), 20/07/2019

Pancadas do sino.
Às vezes o coração
frio bate.

Sevilha (Espanha), 21/07/2019

Deixámos para o fim as derradeiras composições que pudemos ler, à pressa, à puridade, num acesso de curiosidade, numa das certamente poucas ocasiões em que as suas mãos se terão distraído e negligenciado o segredo num aparcamento, em Oppdal.

Valha-nos a amizade de longa data que sustentamos com Ole Henrikson e as nossas (incontroversas) melhores intenções literárias. Contamos, a despeito disso, com a melhor discrição dos nossos leitores.

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A vinha

garrafa e vinho tinto; bottle and red wine; bouteille et vin rouge; bottiglia e vino rosso
Fotografia de Vinotecarium

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A vinha estende-se por uma área pedregosa, calcária, atingindo com o seu verde às vezes ralo as encostas mais a sul do rio. Não é ainda uma paisagem bonita, nem suficientemente encorajadora quer em número de litros, quer na qualidade neles encontrada.

Mas de Bernard Mureau não se pode afirmar que seja pessoa para deitar os bofes de fora à toa. Agora mesmo o vemos, tinto como uma cereja, a teimar com a picareta no torrão endurecido de um panascal, com o propósito firme de o transformar em terra produtiva.

Grandes revoadas de pó saem de ao pé de si e vêm encosta abaixo, assentando entre as folhas mortas destas videiras obstinadas. O pó cobre os carreiros de formigas e as formigas, iguais a fantasminhas teimosos, avançam na direção dos montículos açucarados em que se transformaram ao fim e ao cabo os gaipelos abandonados no chão. Em breve não haverá calor, nem carcaças doces de uvas, nem motivos para aqui processionarem as formigas.

Mureau tem uma visão.

É um desses loucos determinados a deixarem a sua marca, desses que britam a pedra por um quinhão de celebridade, por um nome, por um aroma inconfundível.

Além, mais perto da casa do que da pedreira, nas caves desensarilhadas para já de teias de aranha, no interior de cubas herméticas e imaculadas, repousa o primeiro manancial da quinta. Mureau torceu o nariz, sabe-o ainda titubeante, insuficiente, em formação.

Mas se, por um lado o assalta a ideia de parar por aqui, de acabar com a sísifica tortura de esventar pedra e de viver o seu tempo com um mínimo de paz e de prazer, por outro, espicaça-o a insânia de transformar rocha em vinho, de vencer impossivelmente, de impor à terra o seu tributo implacável. É neste segundo estado que se sente mais quem é. As mãos enrijam, a longa lâmina da picareta endurece, todo ele esmilha com mais vontade a penedia escabrosa.

Ninguém duvida que um dia se beberá daqui a melhor pinot noir de toda a Toulon, da região da Provença, do sul da Europa. Cavando e escando, há nesta sua férrea determinação a escrita profética de um demente.

E os dementes assustam. Ah, se assustam…

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